Com a decadência dos
suplementos culturais no jornalismo brasileiro, a crítica de arte sofreu severo
revés, e, aí, incluindo as artes plásticas, cinema, teatro, literatura, e ‘et
caterva’. Já se foi o tempo no qual os jornais dedicavam cadernos imensos,
verdadeiros calhamaços, mas calhamaços agradáveis, dentro dos quais se
encontravam, em letras miúdas, ensaios e artigos brilhantes que o leitor, feita
a leitura, e sem o contemporâneo afogadilho da pressa, ficava com pena de dar
ao lixo as ‘gazetas’ do dia anterior. A imperiosa necessidade, porém, de não se
puder acumular tudo, era resolvida com a tesoura, que recortava as matérias
mais interessantes, que, arquivadas em pastas, de vez em quando se davam às consultas.
O jornalismo cultural foi
definhando com o passar do tempo, mas, ainda nos anos 80, sem o vigor das
outras décadas, ainda se podia ver, aqui e ali, reflexões críticas. Com o
avanço tecnológico e a instauração do império do audiovisual , e para ficar,
apenas, nos limites daquilo que um dia se chamou de crítica cinematográfica,
esta se metamorfoseou em resenhas e comentários, deixando de se constituir em
ensaios ou, mesmo, críticas na expressão do vocábulo. Há muito tempo, hoje,
para se ver imagens – mas ver sem contemplar, e, pouco, muito pouco, para ler.
As humanidades estão mortas. Tudo, nesta contemporaneidade tão deplorável, está
dirigido para o pragmatismo, para o imediato, para o consumismo desenfreado e
doentio.
A crítica de cinema
praticamente desapareceu da imprensa escrita, e, em seu lugar, estão as
resenhas, que ‘orientam’ em função do consumo e sempre acopladas ao mercado, à
programação do circuito comercial. Os estudos mais sérios sobre o cinema se
encontram nas universidades, mas perderam, com o jargão acadêmico, o prazer da
leitura que, antes, proporcionavam críticos como Walter da Silveira, Paulo
Emílio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles, José Lino Grunewald,
Antonio Moniz Vianna, entre muitos outros. O cinéfilo fica então na condição de
um ‘sem-crítica’, pois, geralmente, não tem acesso às elucubrações teóricas
fabricadas nos desvãos da academia e, abandonado pela crítica, amarga as
resenhas insossas.
Acontece que os críticos
de cinema mais antigos eram homens cultos, preparados, que sabiam escrever.
Novamente se volta à questão de que as humanidades estão mortas, pois nas
escolas os professores generalistas, de ampla cultura, ‘causers’, deram lugar
aos pragmáticos e aos especialistas. Uma aula de Direito há algumas décadas
atrás era uma aula de filosofia, de história, acionada por um mestre que
dominava a oratória. Nos dias atuais, que viceja no pântano contemporâneo,
existem os ‘técnicos’ em Direito, especialistas, preocupados com este tão
pestilento e ameaçador ‘mercado’, que virou o Deus da pós-modernidade inculta.
A sociedade de consumo
determina a degenerescência do saber, promovendo a apatia genuflexória, o
entusiasmo fogo-de-palha, os arruídos do vácuo. A ver tudo isso, a melhor opção
talvez seja, como a de um personagem de Luis Buñuel, passar a maior parte do
tempo a olhar o bico de seu sapato. Vai-se a um cinema como se vai a um ‘fast
food’, e a sala exibidora, voltando, mais uma vez, ao assunto, virou mesmo um
‘fast food’. E as livrarias, ‘butiques’ mal assanhadas e mal ajambradas, de
livros capengas que mistificam o saber na tentativa de uma frustrada e enganosa
auto-ajuda. O politicamente correto ceifa o humor e restringe a liberdade de
expressão, condicionando os seres a uma postura ‘certinha’ e desinteressante. E
aqueles que pensam estar à vanguarda não passam de modernosos e vanguardeiros
de ocasião, desconhecendo que a grande revolução estética nas artes se deu na
década de 20 com uma reciclagem na de 60. A partir dos anos 80, com a ascensão dos
‘yuppies’, a vinda catastrófica do neoliberalismo, e a instalação de um
‘cientificismo’ desvirtuado, o homem ficou à míngua, ao léu e, mesmo,
poder-se-ia dizer, ao ‘deus-dará’.
Sobre
ser o crítico de cinema um intérprete privilegiado da obra cinematográfica, na
suposição de ter um repertório fílmico capaz de capacitá-lo como exegeta, não
significa, com isso, que proceda, na sua análise, de maneira arrogante,
impositiva e pedante. Mas muito pelo contrário: a verdadeira crítica deve ser
um condutio para evidenciar ao leitor
as valências ocultas de um filme. O crítico deve ser um intérprete e dar, nos
seus escritos, a sua impressão sustentada por um embasamento teórico.
Existem
várias espécies de críticos: o ensaísta, o crítico, o comentarista e o
resenhista. Se, em outros tempos, o crítico de um jornal tinha uma titularidade
no seu veículo, nos dias que correm, no entanto, todo mundo se acha no
direito de ser crítico de cinema, assim como todo brasileiro se considera um
técnico de futebol. O vocábulo crítico caiu numa geléia geral de tal modo foi
degradado e vulgarizado.
Quando
me perguntam o que é a crítica cinematográfica, gosto de responder: a
rigor, a função da crítica de cinema é ajudar o espectador a percorrer o
itinerário do filme com um mínimo de conhecimento da sua linguagem, de modo a
permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que
não é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação
estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução
em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos
procedimentos de significação que lhe são próprios. É necessário que o
aspirante a crítico construa primeiro um repertório para depois se aventurar na
análise fílmica. A crítica é a arte da paciência.
Quando
se faz uma crítica a um filme estrangeiro ou mesmo a um brasileiro, tomando o
olhar de um crítico que exerce a sua função na Bahia, a exegese, quando
depreciativa, cai na vala comum do esquecimento. Mas quando se trata de filme
baiano, tudo se modifica, considerando que o crítico conhece os realizadores da
província e, de hábito, um comentário, mesmo que fundamentado e diplomático, é
visto como ofensa ou tentativa de denegrir o cineasta. Surge, portanto, para o
crítico, a angústia de criticar o cinema baiano, a aflição de, constatando a
ausência de inspiração desse ou daquele realizador, emitir uma opinião
desfavorável. E não se pode fechar os olhos para as dificuldades imensas que é
se fazer cinema na Bahia. A angústia
crítica, que interfere, inclusive, no processo neurovegetativo do crítico,
é avassaladora. Devo confessar que, quando vou ver um filme baiano, entro
sempre na sala de projeção querendo gostar da obra anunciada. Por outro lado,
muitas vezes, o crítico, para não ferir suscetibilidades - e aqui não se trata
de covardia ou omissão, mas compreensão de um panorama de mendicância, confere
à sua imaginação as asas da ficção, dando ao texto um tom mitológico e até
parnasiano.
P.S:
Já comentei aqui por várias vezes que a incorporação da estética do vídeo-clip
à narrativa cinematográfica prejudica sobremaneira a sua perfeita fruição,
dando ao espetáculo um verniz de superficialidade. Nada contra o vídeo-clip em
si, que pode ser muito bom (Thriller,
com Michael Jackson, entre tantos!), mas é intolerável que seja incorporado ao
discurso cinematográfico. Capitães de
areia, de Cecília Amado, neta do escritor Jorge Amado, sofre muito dessa pressa narrativa, ainda que bem
produzido, bem alinhavado. E se a estética referida investe com força na
primeira parte, por outro lado, a injeção de romantismo da segunda tira, ao
filme, um corpus estrutural uniforme.
Capitães de Areia, o filme, é muito
inferior ao livro, sendo, apenas, pálido reflexo deste. Li Capitães de areia na minha adolescência ao lado dos outros livros
de Jorge Amado, excelente narrador, criador de tipos interessantes. Amado, com
raríssimas exceções, não tem sorte com as adaptações de seus livros. Nelson
Pereira dos Santos, sim, ele mesmo, o grão-duque do cinema brasileiro, matou Jubiabá, e desconfigurou Tenda
dos milagres. Carlos Diegues fez turismo em Tieta do agreste. Marcel Camus carnavalizou Os pastores da noite. E Cecília Amado ilustrou Capitães de areia em função das expectativas narrativas da
contemporaneidade.
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