Carlos Heitor Cony, em artigo recente na
Folha de S.Paulo, escreveu sobre a literatura de ação e a literatura de
reflexão, e citou Glauber Rocha, que disse certa ocasião que a obra de José de
Alencar é um rio caudaloso enquanto a de Machado de Assis uma torneira que
pinga. Queria o realizador de Deus e o
diabo na terra do sol dizer que nos livros de Alencar a ação prepondera em
detrimento da reflexão enquanto nos de Machado é esta que determina a sua
fruição. O mesmo poderia ser aplicado ao cinema.
O que se convencionou chamar erroneamente de
cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não
existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são
comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas,
sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman,
Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos
outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes
que não tinham ainda muito público e o mercado era restrito. Queriam eles
dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de
arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação.
O fato é que não existe, a rigor, cinema de
arte. O filme pode ser excelente seja ele de ação ou de reflexão. Sobre
produzir um monte de lixo, a indústria cultural de Hollywood também realiza
grandes filmes, como, por exemplo, e filmes do ano em curso, Sangue negro, de Paul Thomas Anderson, Onde os fracos não têm vez, dos Irmãos Coen.
E os primorosos filmes de Clint Eastwood, Martin Scorsese, Sidney Lumet, entre
outros tantos, não são oriundos da indústria? Se vingar a expressão cinema de
arte como a significação do verdadeiro e bom cinema, filmes que são
obras-primas como Rastros de ódio (The
seachers), de John Ford, por serem de ação, estariam fora dela. O que seria
um absurdo e uma patologia mental.
O que determina o valor de uma obra
cinematográfica é a maneira pela qual o realizador articula os elementos
da sua linguagem. Não importa se a articula em função da ação ou da
reflexão. O que importa, na verdade, é o talento, o engenho e a arte. Também na
literatura o que determina o valor literário de um livro é a maneira pela qual
o escritor articula a sintaxe da língua. A ação pela ação (e também a reflexão
pela reflexão), se não estiver apoiada numa escrita bem articulada, nada vale.
A confusão, porém, ainda é muito grande. A
maioria dos pseudo-cinéfilos que toma conta das salas alternativas da cidade
somente considera filmes válidos aqueles voltados para a reflexão. Mas se a
reflexão não tiver aporte numa expressão estilística elevada não tem valor e,
muitas vezes, é veículo para a aporrinhação do espectador. Neste caso, muito
mais vale um filme de ação bem articulado do que um de reflexão de pouca
polivalência no estilo.
Um belo dia, deparei-me com um impertinente
pseudo-cinéfilo, desses que gostam mais de ficar na sala de espera para ser
visto do que no interior da sala exibidora, e ele ficou admirado quando
manifestei minha admiração pelos filmes de Clint Eastwood. "Mas não é
aquele cowboy italiano que depois virou o perseguidor implacável?"
Existem, por outro lado, cineastas que a priori pensam fazer cinema de arte e,
na verdade, seus filmes são estímulos fortíssimos à sonolência. O verdadeiro
cineasta faz seu filme de acordo com a sua necessidade de expressão. Se vai
conseguir um bom mercado exibidor ou ficar restrito às salas alternativas,
isto, outra história.
Howard Hawks, brilhante realizador
americano, fez um filme que mistura ação e reflexão numa solução de gênio em Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), com John Wayne, Dean Martin, Angie
Dickison. Western clássico, a ação de
Rio Bravo, tirante poucos momentos de
ação, transcorre quase toda dentro de uma pequena sala da delegacia ou no
interior de um hotel das circunvizinhanças. A reflexão, a análise do
comportamento dos personagens, e os diálogos são mais importantes do que a
ação. Em outro filme desse genial diretor, Hatari!,
a sua maior parte está concentrada na espera da caça e não nesta, quando se tem
a ação. Hatari!, filmado in loco, na África, é sobre um grupo de
caçadores de nacionalidades diferentes que está à procura de animais selvagens
para os levar para os zoológicos de seus países. Mas Hawks concentra todo o
filme nos momentos fracos, nos momentos de pausa, nos momentos em que os
personagens estão à espera da caçada. Uma característica de Hawks, um
realizador que se dividiu entre os westerns
e as comédias com admirável talento (inexistente no cinema contemporâneo).
O cinema de arte, portanto, é uma falácia e
uma grande mentira.
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