A palavra (Ordet, 1954), de Carl Theodor Dreyer
Há quarenta e cinco anos morria em Copenhague (Dinamarca) Carl
Theodor Dreyer (1889/1968), um dos maiores realizadores cinematográficos de
todos os tempos, cujos filmes vieram a influenciar toda uma geração de
cineastas, principalmente os nórdicos, a exemplo de Ingmar Bergman, assim como
o contemporâneo e polêmico Lars Von Trier (Dançando
no escuro, Ondas do destino, Dogville, Os idiotas...). Seus filmes principais já foram lançados em DVD e se
constituem em obras fundamentais para o conhecimento não somente de um autor
excepcional, mas, também, e principalmente, de um cinema particular, sublime, e
extremamente expressivo na sua singularidade. Não se pode entender o cinema
contemporâneo sem as bases referenciais do pretérito. E Dreyer, neste sentido,
por artista criador, situa-se no Olímpio dos diretores da chamada sétima arte.
O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para
a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes,
colocou La passion de Jeanne D’Arc em primeiro lugar. O crítico tinha
verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem
alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu
Jean-Luc Godard no Cahiers du Cinema:
“Gertrud iguala em loucura e beleza
as últimas obras de Beethoven”. É preciso dizer, portanto, que o DVD está a
funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa
sobre A palavra (Ordet).
Seguindo o estilo de Dies
Irae – planos-sequências e recitações, lentos movimentos de câmera e
intercalação de breves close ups, A palavra (Ordet) representa a plenitude
de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua
dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D’Arc (1928) e Dies
Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como,
por exemplo, em Ordet, uma acusação
da intolerância e o orgulho dos exclusivistas
da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer
adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade
conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu
caso, como consequência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado.
Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a
morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação
consciente e coletiva. Ordet se
desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho
sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de
Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a
loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com
grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera
toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o
apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.
Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria
estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns,
que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e
ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam frequentar com a assiduidade das
bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de
sensibilidade artística. Ordet,
monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk,
pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e
que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi
logo morto.
A ação de Ordet
se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e
seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o
terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser
Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida,
tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel),
pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção
médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage
e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa
com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe,
morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos
do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido,
a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à
vida.
A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito
de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade
defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da
tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à ideia abstrata do amor e da
pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às
relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens
pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores
do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D’Arc. Mediante o
uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade
expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e
contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e
progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico
ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a
incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade.
Segundo o criador de Ordet, sem
estilo não há obra de arte.
P.S:Carl
Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e veio a falecer
nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o
sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos.
Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas
obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era
contemporâneo: anti esnobe, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio
condutor.
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