1) Sempre fico com uma pulga atrás da
orelha quando vou ver um remake de um
filme famoso. Na verdade, não gosto de remakes,
salvo quando feitos pelo próprio realizador, a exemplo de Alfred Hitchcock, que
refez O homem que sabia demais (The man who know too much) em
meados da década de 50, porque, segundo ele, a primeira versão, de sua fase
inglesa, ainda que elogiada pela crítica, poderia ser aperfeiçoada com os
recursos de produção do cinema americano. Gus Van Sant, o prestigiado diretor
de Elephant, cometeu, na minha
opinião, um assassinato fílmico no remake
de Psicose (Psycho, 1960), que está a
completar, no ano em curso, 50 anos. Mas, li numa revista francesa, que Van
Sant realizou Psicose para mostrar a
impossibilidade, mesmo copiando plano por plano, como ele fez, de se refazer
uma obra do quilate de Psycho.
2) O remake
é feito por uma questão cultural, para adaptar os comportamentos e os gestos à
cultura contemporânea. Mas, neste ponto, sou irredutível. Certos filmes, por
antológicos, não podem ser refeitos e qualquer interferência para uma adaptação
soa como uma espécie de anátema. Como pensar, por exemplo, num remake de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles? Como admitir
uma releitura de Um corpo que cai (Vertigo), a obra-prima de Hitchcock? Como aceitar
uma nova versão de Hiroshima, mon amour
(1959), de Alain Resnais. E de tantos outros momentos antológicos da sétima
arte.
3) Mas o pretensioso Rob Marshall foi
mexer logo em Oito e meio (Otto e mezzo,
1963), de Federico Fellini, a transformá-lo em Nine
(Nove ), um musical. Diretor de um outro filme do gênero, Chicago, que ganhou o Oscar, Marshall
teve a coragem de refilmar Oito e meio
em nova roupagem. Otto e mezzo trata de uma crise de um cineasta
impotente que se debate em angústia pela impossibilidade de fazer um novo
filme. Trata-se de uma reflexão bem felliniana sobre o próprio processo de
criação no cinema. Considero-o um filme-farol, uma das obras mais importantes
de toda a história do cinema. Fellini, depois de A doce vida, tinha medo de não poder mais exercer a criação plena.
E Otto e mezzo é um reflexo dessa
angústia. Mas o resultado é magnífico e se tornou um filme divisor de águas, um
filme essencial, uma obra de arte, um momento sublime na história da arte do
filme.
4) Nine,
justiça se lhe faça, tem bons momentos musicais, mas um filme não se completa
apenas por boas sequências. No cômputo geral,
Nine não justifica os esforços de Rob Marshall e, além do mais, encontra-se
léguas de distância de um Vincente Minnelli, Stanley Donen, George Sidney,
entre outros mestres do gênero. Chicago,
numa época em que o musical já se tinha encerrado como gênero, agradou por
tê-lo revivido, mas nada de compará-lo com os grandes espetáculos do gênero do
pretérito. Marshall, no entanto, vence pela teimosia e algum talento. Mas não
poderia ter feito o mesmo filme sem fazer alusão à obra de Federico Fellini?
Gosto, em Nine, particularmente da performance de Stacy Ferguson como a
inesquecível Saraghina.
5) No lugar do divino Marcello Mastroianni
(que em Otto e mezzo faz o cineasta
Guido Anselmi), Daniel Day-Lewis (aquele excelente ator de Sangue negro e Meu pé
esquerdo, entre outros), que enfrenta a crise da meia idade aos 50 anos.
Para amenizá-la, envolve-se romanticamente com várias mulheres, a incluir,
neste harém, sua esposa Luisa (Anouk Aimée no filme de Fellini, Marion
Cotillard, que fez Edith Piaf), a amante Carla (ao invés da esfuziante Sandro
Milo, Penépole Cruz), a sua musa como estrela (Nicole Kidman), a confidente (a
esplendorosa Judi Dench), uma jornalista de moda made in USA (Kate Hudson), a prostituta de seus belos anos,
Saraghina (Stacy Ferguson), e last but
not least, sua mamma (Sophia
Loren). Como se pode observar um elenco maravilhoso.
3) Quando Vincente Minnelli chegou a
Hollywood, vindo da Broadway, revolucionou o musical americano ao integrar os
números musicais à ação dramática. Marshall faz o contrário em Nine e os números são partes dissociadas
da ação. Não se pode negar, por outro lado, que Nine tem alguns momentos inspirados no tocante à coreografia da
música e da dança. Alterna o preto e branco, durante a narrativa, com o
colorido, porque, segundo Marshall, o touch
ficaria mais artístico e charmoso.
4) Que Nine,
pelo menos, sirva para que os cinéfilos procurem o DVD do original Oito e meio, esta, sim, uma verdadeira
obra-prima. Vi este momento antológico do cinema, literalmente de boca aberta,
estupefato, ainda adolescente, no extinto cinema Liceu da rua Saldanha da Gama
numa sessão domingo de manhã, às 10 horas. Antigamente, os lançamentos eram
feitos nas segundas e. no domingo anterior. tinha sempre uma pré-estréia.
Muitas pessoas saíram sem compreender o filme, porque o tempo não é narrativo,
mas psicológico. A mesma coisa aconteceu quando da apresentação de O ano passado em Marienbad, de Alain
Resnais, anos antes. Mas Oito e meio,
na verdade, é límpido como uma água, não há nenhuma confusão, mas, na época, as
pessoas não estavam bem acostumadas a filmes que fugissem do esquema narrativo
linear padronizado pelo cinema americano.
5) O filme custou cerca de R$ 174 milhões,
tem direção de Rob Marshall e é uma versão do original apresentado na Broadway
em 1982, vencedor de cinco prêmios Tony Awards, incluindo o de Melhor Musical.
As mulheres que circundam o depressivo cineasta interpretado por Daniel
Day-Lewis são fabulosas e, na verdade, não fosse a diegese estabelecida, seriam
capazes de curar qualquer depressivo no fundo do poço.
6) Quando a indústria cinematográfica
hollywoodiana se viu ameaçada pela concorrência da televisão, tratou logo de
lançar a tela larga (o CinemaScope - que se projeta através de lente
anamórfica) e o som estereofônico e, ainda, o Cinerama (três telas côncavas e
três projetores). E até mesmo o cinema com cheiro, que não deu certo.
Atualmente, com o surgimento de novos suportes (DVD, Blue-Ray, possibilidade de
se baixar filmes da internet), aciona a Terceira Dimensão. Seria esta o cinema
do futuro? Seria Avatar um dos pontos
de partida do que vem por aí em termos de espetáculo cinematográfico? É esperar
para ver. E, desde já, vou me demitir de tais espetáculos.
7) Acabou de chegar, em encomenda via internet do site da Livraria Cultura, o importante livro A mise en scène no cinema - Do clássico ao cinema de fluxo, de Luiz Carlos Oliveira Jr, ensaísta cinematográfica que escreve, entre outras, na revista Contracampo, que oferece uma abordagem histórica, estética e crítica de um dos principais conceitos do vocabulário fílmico: a ideia de mise en scène. Não há, na escassa bibliografia brasileira, uma obra que trate do assunto com tanta amplitude e importância. Obrigatório para todos aqueles que pensam um dia entender de cinema.
Nenhum comentário:
Postar um comentário