ROSEMARY
Basta, para se ter uma idéia do talento de Roman Polanski, a
tomada fixa da cabine telefônica em O
bebê de Rosemary (Rosemary’s baby, 1968), tomada demorada que concentra no
rosto agoniado de Mia Farrow toda a sua carga dramática e emotiva. Rosemary, a
personagem da atriz neste filme impressionante, apavorada por descobrir que
está sendo envolvida com uma seita diabólica, acaba de fugir do consultório de
seu médico especializado em obstetrícia por desconfiar que também faz parte do
complô, e refugia-se numa cabine para telefonar para o seu antigo médico. Com a
chegada de Rosemary à cabine – após deambular pelas ruas da cidade em
impressionante caracterização, grávida e desengonçada, Polanski se aplica num
plano fixo de seu rosto para desenvolver todo o clima de angústia e desespero.
É de pequenos momentos e de pequenos gestos que se fazem os grandes filmes.
Polanski é um realizador que sabe pensar cinematograficamente, que intui o
possível impacto que uma determinada seqüência possa ter pelo seu sentido agudo
no que se refere à utilização dos elementos determinantes da linguagem
cinematográfica. Na tomada em questão, uma lição de cinema, mas, antes de
concluí-la, o realizador de Chinatown,
faz uma brincadeira com a chegada, frente à cabine, de um corpulento homem que
parece o médico, mas que, na verdade, trata-se do produtor William Castle,
famoso por seus terroríficos classe B.
VAMPIROS DA NOITE
Por falar em William Castle, lembro de um seu filme, que vi
apenas uma vez nos anos 60, Trama diabólica (se não há engano memorialístico, o
título original é Homicidal). Visto
num poeira da Baixa dos Sapateiros, no Pax, precisamente, o filme, quando pouco
antes de atingir o clímax, tem sua narrativa interrompida e apareça, na tela,
um relógio com um tic tac macabro. Uma voz em off anuncia que o produtor do
filme vai conceder alguns minutos para que os “cardíacos e pessoas nervosas”
(sic, ainda que de memória) possam sair da sala de projeção, pois o clímax,
chocante segundo as palavras, pode provocar danos naqueles mais sensíveis. O
fato foi que, realmente, vi, e me lembro que vi, pessoas saindo da sala. Em
seguida (eu não saí), dá-se o desfecho pleno de apelações e planos de detalhes.
Castle gostava muito de assustar, chocar pelo estrépito das imagens. O que mais
assusta, na minha opinião, no entanto, é o desenrola sutil, a ausência de
choques no transcorrer da narrativa, reservados estes para os momentos certos.
William Castle, talvez sem o saber, foi um pioneiro no marketing. Não sei quem
foi o gênio baiano que inventou, aqui em Salvador, para o lançamento de O vampiro da noite (Horror of Dracula,
1958), de Terence Fisher, com Christoper Lee, em 1960, colocar, nos dois
cinemas em que a fita foi apresentada, uma ambulância na porta. Uma tabuleta em
cima da bilheteria avisava que “pessoas nervosas e cardíacos” (a implicância
com cardíacos, lembro-me bem, verdadeira) não deviam comprar os ingressos para
ver o filme, mas, se assim procedessem, e viessem a se sentirem mal, a gerência
dispunha de uma ambulância para a sua locomoção à emergência mais próxima.
NUAS, MAS NÃO VIOLENTADAS
O exibidor Francisco Pithon, que reinou no circuito
soteropolitano nas décadas de 60 e 70, gostava de promover alguns filmes que
lançava com certo estardalhaço e originalidade. Quando, em meados dos anos 60,
foi lançado no Guarany Sodoma e Gomorra,
de (sim, é verdade) Robert Aldrich, com Stewart Granger e Rossana Podestá,
Pithon contratou duas belas mulheres que se vestiram com a indumentária
idêntica à usada pelos personagens femininas de Sodoma e Gomorra, postando-as,
num pequeno pódio, ao lado, cada uma, das duas bilheterias. O público pensou
que fossem figurantes do próprio filme, que ficou, assim, muito badalado.
Aldrich, diretor americano renovador na década de 50 (A morte num beijo) e
desmistificador (da guerra em Morte sem glória/Attack), e do índio (Apache)
realizou Sodoma e Gomorra como encomenda. Vi apenas no lançamento há, portanto,
mais de quarenta anos. Recordo-me mais da promoão das moças seminuas e belas na
porta do Guarany do que do filme (parece que, no fim, Granger, embora
aconselhado a não olhar para trás, após o dilúvio das cidades, teimoso como uma
mula, não obedece o conselho e vira pedra). Rossana Podestá era uma atriz
italiana muito bonita (fez Helena de Tróia com Robert Wise), e esteve aqui, na
Bahia, para o lançamento de Os sete homens de ouro, acompanhada do marido Marco
Viccario, que era também o diretor do filme. Nesta ocasião, e quem sabe o caso
é o jornalista José Augusto Berbert de Castro, protagonista da história.
Hospedados no Grande Hotel da Barra, no praia do Porto (que foi considerada por
jornalista inglês uma das mais belas praias do mundo), Podestá, seu marido,
filhos, receberam a imprensa – nesta época, ainda que atento ao cinema e às
suas coisas, não militava no jornalismo e lia apenas as críticas e comentários,
adolescente que era. Bebert escrevia uma coluna sobre cinema no jornal A Tarde
e se formou em medicina, apesar de nunca a ter exercido. A família de artista
passou o dia inteiro no Porto e, de noite, um dos filhos, um garoto, teve
brutal insolação. Viccario e Podestá, desolados e aflitos, lembraram que um
jornalista, Bebert, era também médico. Embora um médico para ser temido, por
causa de seu afastamento da prática, Bebert atendeu ao chamado, pois
oportunidade de ouro para ficar mais íntimo de gente famosa, principalmente
Podestá, uma beleza de mulher.
UM COPPOLA ANTONIÔNICO
A conversação (The
conversation, 1974), de Francis Ford
Coppola, com Gene Hackman, revista recentemente, é uma obra que atesta o grande
talento desse realizador antenado com seu tempo e sua circunstância e,
principalmente, extremamente preocupado com a natureza da arte do filme. A
conversação, filme sem atrativos comercial e talvez por isso tão esquecido e
pouco visto, é uma obra que se aproxima, pela sua angústia narrativa, de Blow
up, de Michelangelo Antonioni. Sente-se, no personagem vivido por Gene Hackman,
aquele angústia para descobrir que atormenta o personagem do fotógrafo (David
Hemmings) no filme do mestre italiano. Mais de trinta anos depois, o impacto
continua o mesmo, ainda que o cinema, do ponto de vista tecnológico, tenha dado
saltos atléticos. Mas a beleza do plano final, com Hackman, apartamento virado
de cabeça para baixo na procura de algum objeto capaz de grampo qualquer, a
fazer de conta que toca o saxofone, é um dos pontos altos do cinema na década
de 70.
A MORTE DOS TRAILERS NA CONTEMPORANEIDADE
Os trailers contemporâneos estão todos padronizados e
submetidos à dolorosa estética do vídeoclip (nada contra esta em si, mas que se
restrinja aos videoclips propriamente ditos e não se incorpore, como está a
acontecer, na narrativa cinematográfica). A imagem surge rápida, e um
escurecimento, também na maior rapidez, engole-a, por assim dizer, para, em
seguida, surgir outra. Decididamente: já não se fazem trailers como
antigamente. Havia um savoir-faire de trailers no cinema americano que a partir
dos anos 80 foi se diluindo para emergir uma espécie assim de savoir-non-faire.
Dava gosto se ver os trailers, o que não acontece nos dias que correm – e
correm assustadoramente rápido, levando-nos com eles, a todos, sem exceção, ao
refúgio da Implacável, impressão da passagem temporal que varia de pessoa a
pessoa, atacando, esta impressão, principalmente os mais velhos. Antes dos
malditos trailers contemporâneos, que não gosto de vê-los – porque mesmo
trailers de filmes bons, a exemplo de Os infiltrados, estão construídos dentro
da pavorosa estética do vídeoclip, tinha prazer em conferi-los, chegando mesmo,
quando se podia fazer isso, a ficar para a outra sessão somente para rever os
trailers. No esquema atual, o espectador compra o ingresso para uma determinada
sessão e terminada esta é expulso da sala de projeção. Nos bons tempos que não
voltam mais (não creio ser saudosismo mas a constatação de uma época mais calma
e mais inteligente, e, caso saudosismo, que o seja, e daí?), o indivíduo que
comprasse o ingresso podia entrar, por exemplo, duas da tarde e só sair quando
da última sessão.
COM A CARA DE QUEM ESTÁ ACORDANDO
Lembrei-me agora que gostava muito de ir às sessões das 22
horas. Pelo menos aqui na Bahia (interessante observar que se chama a cidade de
Salvador de Bahia, ou seja, ao invés de aqui em Salvador – que pode também ser
usado, aqui na Bahia, como está sendo usado por mim neste blog) as sessões eram
assim estabelecidas: 14, 16, 18, 20 e 22 horas. Quando o filme tinha duração
acima de 120 minutos: 14, 16:30, 19 e 21:30 horas. Em caso de duração maior:
14, 17 e 20 horas. Nas superproduções como ...E o vento levou, Ben Hur,
Spartacus, duas únicas sessões, uma vespertina, outra noturna, ou, como se
gostava de dizer (e aí sim com ênfase saudosista), uma matinée, e uma soirée,
às 15 e 21 horas. Mas estava querendo contar uma história sem importância
acontecida comigo. Há algumas décadas (volto ao assunto, mas parece que a nova
geração se esqueceu que existe o verbo Haver, pois encontro em todo canto
expressões do tipo: a dez dias fui ao cinema, etc), indo a uma sessão das 22
horas, dormi um sono profundo nas poltronas do finado cinema Bahia, que ficava
à rua Carlos Gomes e atualmente abriga os apóstolos da Igreja Universal de
Deus. Pois muito bem! Finda a sessão, os funcionários, ainda que sempre
fizessem revista, não me encontraram, e continuei nos braços de Morfeu até a
manhã seguinte, quando encontrei o chão sendo lavado e a porta, aberta,
possibilitando-me sair com a cara de quem está acordando. A cara de quem está
acordando é um dos fatores ocultos que determinam a desordem conjugal.
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