Nasci em 12 de outubro de 1950, no Rio de Janeiro, precisamente na
Tijuca, mas ainda em tenra idade vim para Salvador. Minha mãe, daqui,
conheceu meu pai durante um passeio à Cidade Maravilhosa. Casaram-se em
1948 e permaneceram no Rio. Grávida do terceiro filho, em abril de 1953,
meu pai, num sábado de Aleluia, chegando a casa, sentiu dor lancinante
no coração e, em questão de minuto, estava morto, roxo, com a fisionomia
deformada pela angústia e pela dor do enfarte agudo do miocárdio. Tinha
apenas 44 anos, deixando-me, como herança, a cidadania italiana - que
adquiri, pois ele era do sul da Itália, imigrante que veio no princípio
do século com os pais, descascando, menino ainda, batatas no porão do
navio - e uma pesada herança cardíaca, candidato a um heart attack,
que já tive, pois praticava, com muito prazer, o tabagismo desenfreado,
os porres semanais de álcool, o sedentarismo cômodo e delicioso de não
ter que me movimentar muito, exceção se faça ao exercício de
levantamento de copos, cuja habilidade, tenho-a comprovada.
Meu avô materno - também italiano que possuía fazendas de cacau em
Ilhéus - alternava a moradia entre esta cidade litorânea do interior da
Bahia e Salvador, onde tinha uma casa de muitos quartos, velha, mas
atmosférica, no bairro de Nazaré. Apesar de ter parentes no Rio por
parte da família Setaro, e, ainda, duas tias por parte materna, que
moravam nesta cidade cantada em prosa e verso, vim para Salvador por
causa do convite feito por meu avô. Como este ficava mais tempo em
Ilhéus, minha mãe teria a casa de Nazaré à sua disposição.
Assim entrei na baianidade pela porta da morte paterna. Sou baiano em
decorrência de uma estenose que explodiu de forma extemporânea. Naquele
tempo não havia os sofisticados exames atuais, fazia-se, se muito, um
eletro, uma tirada de tensão arterial. Meu pai nunca tinha ido a um
médico, apesar de já ter dado sinais da insidiosa arteriosclerose:
vermelho, a tensão parecia-lhe alta, queixando-se de taquicardia etc.
Os cinemas se concentravam no centro - Excelsior, Liceu, Art, Glória
(depois Tamoio), Guarany, Bahia (que somente foi inaugurado em 1968) e,
no Largo 2 de Julho, o Capri.
Na Baixa dos Sapateiros, ficavam o Tupy e, no corredor da rua J.J.
Seabra, os poeiras Jandaia - ainda majestoso, Aliança e Pax. Sem contar
os cinemas de bairro. Cada um tinha o seu: Oceania (no Farol da Barra,
no edifício do mesmo nome), Nazaré (na Praça Almeida Couto, no Jardim de
Nazaré), Amparo (no Engenho Velho de Brotas), Brasil, São Jorge e São
Caetano (na Liberdade), Itapagipe, Roma, entre muitos outros.
A Rua Chile era o ponto chique da cidade. A maioria dos consultórios
médicos - ainda não existia Rita Lee, digo a Garibaldi, das lojas, dos
dentistas, das livrarias, aí se concentrava. Tenho saudades da casa de
chá das Lojas Duas Américas - não esqueço da primeira escada rolante
instalada na Bahia, que os soteropolitanos ficavam admirando, parados,
estupefatos, onde uma tia minha tomou uma queda que a deixou dois meses
de cama - e da Sloper. E da porta da Livraria Civilização Brasileira -
que incendiou em 1965, quando estava dentro do Tamoio a ver Dr Fantástico (Dr. Strangelove),
de Stanley Kubrick. Lembro-me do misterioso crime da Livraria
Científica, quando mataram, à queima-roupa, o seu dono. Políticos e
intelectuais, a las cinco de la tarde, se reuniam religiosamente na
porta da Civilização, formando rodinhas onde o papo corria solto. As
moçoilas elegantes da época - e não as lacraias da contemporaneidade -
faziam o flirt, que consistia numa olhada rápida para um homem bem apessoado, podendo, nisso, dar-se o início de um namoro. E vice-versa.
Adorava o cinema Guarany com aquele cheiro de ar condicionado que se
sentia de fora, na Praça Castro Alves. E, ao lado, o famoso Restaurante e
Bar Cacique, onde, na parte ao ar livre, os intelectuais da época
gostavam de ficar tomando cerveja. Entre o Guarany e o Cacique, mais
para o fundo, o Tabaris, que, menino, ficava olhando curioso,
principalmente aquela placa azul onde estava inscrito: rigorosamente
proibida a entrada de menores de 21 anos. Diziam-me adultos que o
freqüentavam - sempre de paletó e gravata, manga de camisa era para
vagabundo, assim como barba de dois dias - que mulheres lindas ali
faziam ponto, vindas da França, Polônia, Argentina etc. Dançava-se e
bebia-se ao som de orquestra de sopro regida, muitas vezes, pelo saudoso
Vivaldo da Conceição, quando não apareciam - e apareciam sempre -
orquestras nacionais e internacionais.
Uma noite, saindo do Guarany, com 13 anos, fiquei olhando para aquelas
mulheres lindas, frustrado por ser menor de idade, com o porteiro me
olhando feio, apontando para a placa impeditiva. O Tabaris encerrou suas
atividades etílicas, musicais e sexuais em 1968, quando completei 18
anos.
Menino de Nazaré, aproveitava os terrenos baldios para jogar um baba,
com a bola feita com meias velhas. E, num elevado perto de minha casa,
gostava de empinar arraias. Tinha todo o material necessário: cola para a
linha, vidro picado e as grandes e belas pipas, coloridas, bonitas de
ver no céu, paradas, enquanto as controlava com os meus dedos
insignificantes, sentindo a força de seu puxão. No mais das vezes,
andava e andava - chamava-se de paleta, paletar - muito,
conversando com os camaradas de ocasião, espiando as meninas do Convento
do Sagrado Coração de Jesus, ajudando a missa de Padre Lemos todos os
domingos na Igreja do mesmo nome, que fica, ainda, em frente à famosa
Mendoeira e ao lado da antiga e saudosa Faculdade de Filosofia, onde
tinha um pé de jambo que gostava de roubar. Havia ali, entre a igreja e a
faculdade, a banca de Seu Paranhos, onde, todos os sábados, meio-dia,
avistava um caminhão jogar um pacote de jornais A Tarde, que
comprava com assiduidade neste dia para ver os filmes que iam estrear na
segunda-feira - naquela época os cinemas mudavam as suas programações
neste dia.
Lia também livros, como Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, Servidão humana, de Somerset Maugham, livros de George Simenon, José de Alencar, Morris West (A filha do silêncio, O advogado do diabo),
Harold Robbins, Joaquim Manoel de Macedo, Graciliano Ramos, e os que
encontrava na biblioteca da escola. E gostava de comprar o Correio da Manhã aos domingos, revezando com o calhamaço de O Estado de S.Paulo e o Jornal do Brasil.
Nestes bons tempos, os jornais do sul somente eram vendidos na Praça
Municipal e quem os quisesse adquirir tinha que ir até lá. Foi aí, com
12, 13 anos, que comecei a ler o crítico do Correio Antonio Moniz Vianna.
O primeiro filme que vi foi Um estranho no paraíso, musical de Vincente Minnelli, naquele cinemascope do Guarany. Lembro-me da estréia de Os dez mandamentos,
de Cecil B. De Mille, em Salvador, em 1959. Para se ter uma idéia do
atraso dos filmes, esta superprodução é de 1956 e somente três anos
depois chegou a Salvador. Neste particular, os filmes eram lançados
primeiro no Rio e São Paulo e levavam, muitas vezes, mais de um ano para
aqui serem exibidos em Salvador. Assim, como ia muito ao Rio, pois
tinha hospedagem gratuita, assistia, em primeira mão, a muitas fitas que
somente muito tempo depois aportariam nestas plagas. Mas voltando a Os dez mandamentos,
o seu lançamento, no Tupy, foi um acontecimento. Filas quilométricas
por toda a Baixa dos Sapateiros. Duas sessões apenas: às 15 e 21 horas.
Duas filas: uma para comprar o ingresso e outra 'para entrar'. Lembro-me
que cheguei às 14 horas, consegui comprar o ingresso às 16 horas e
fiquei na sala de espera apinhada de gente a esperar a sessão das 21.
Tinha também vendedores de ingressos, os cambistas, que, lógico,
cobravam mais caro. O mesmo aconteceu com o lançamento de Ben-Hur e, antes, antes mesmo de Os dez mandamentos, com A volta ao mundo em 80 dias,
de Michael Anderson, com David Niven e Cantiflas e um elenco de
centenas de astros em pequenas pontas como Marlene Dietrich, Frank
Sinatra, Fernandel...
Minha formação cinematográfica se fez indo ao cinema e através do cinema de gênero: épicos históricos, comédias, musicais, thrillers,
aventuras, policiais, e, principalmente, o western. O cinema nacional
vivia a sua fase de chanchada. Vi muitas, com Oscarito, Zé Trindade,
Grande Otelo, Ankito, Colé, Vagareza, Violeta Ferraz, Renato Restier,
Cyll Farney, Sonia Mamede, Fada Santoro, Adelaide Chiozzo etc, etc.
Filmes como De vento em popa, O homem do sputnick, Nem Sansão nem Dalila, Matar ou correr, todos estes de Carlos Manga, e, com Zé Trindade, Mulheres, cheguei!, O batedor de carteiras, O camelô da rua larga, O massagista de madame, Aguenta o rojão. Não posso citá-las aqui, porque transbordaria o espaço. Falava-se muito na Vera Cruz e, principalmente, em O cangaceiro, filme nacional, o mais visto até há poucas décadas. De repente, vi Rio zona norte,
de Nelson Pereira dos Santos, e estranhei Grande Otelo em papel
dramático, que perde o filho assassinado, como um compositor popular que
tem suas músicas roubadas por um aproveitador.
Nesta época o cinema americano médio não tinha a nulidade dos tempos
atuais. Era, na verdade, um grande cinema, aquele do qual François
Truffaut considerou como o cinema do 'grande segredo'. Nos anos 50,
havia realizadores como Stanley Kubrick, Robert Aldrich, Budd Boeticher,
William Wyler, John Sturges, John Ford, John Huston, Vincente Minneli,
George Cukor, Richard Brooks, George Seaton, Frank Tashlin, Alfred
Hitchcock, Roger Corman, Raoul Walsh, Henry Hathaway, Jacques Tourneur,
Howard Hawks, Leo McCarey, Anthony Mann etc, etc e mais etc. Que outra
cinematografia reunia uma galeria de talentos tão grandes? Atualmente a
maioria dos grandes diretores morreu e os estúdios são controlados por
multinacionais estranhas ao cinema, como a Mitsubishi, a Coca-Cola...
Ver Spartacus, de Kubrick, na tela do cinema, foi uma experiência duradoura, assim como a comédia Se meu apartamento falasse, de Billy Wilder, ou Rio Bravo, western de Howard Hawks, ou 'Deus sabe quanto amei', melodrama refinadíssimo de Vincente Minnelli, ou a estesia melodramática de um Douglas Sirk - Palavras ao vento, Imitação da vida, 'Tudo isso e o céu também'. A infantilização do cinema americano se deu há algumas décadas com as guerras nas estrelas.
O cinema como expressão da arte ou, melhor dizendo, o filme como arte,
conheci-o aos poucos, com minhas idas ao Clube de Cinema da Bahia.
Estudante secundário do Colégio Estadual da Bahia, filava aulas aos
sábados para ver filmes no Guarany, onde Walter da Silveira, o
programador do clube, os exibia em 1966. A primeira vez que me impactei
com uma obra cinematográfica, considerando-a 'verdadeira expressão da
arte', foi com O eclipse (L'eclisse), de Michelangelo Antonioni. Também fiquei muito extasiado quando vi Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. No clube, conheci Eisenstein, Resnais, Fellini, Luchino Visconti (seu Rocco e seus irmãos é uma obra-prima absoluta), Akira Kurosawa, François Truffaut, Yasujiro Ozu, Masaki Kobayashi, Kenji Mizoguchi (seu Contos da lua vaga me assombra até hoje), Godard, Jacques Rivette, Welles, Jules Dassin, Murnau, Fritz Lang et caterva.
3 comentários:
André, que bacana esse relicário sobre a sua trajetória (imagino que seja uma introdução, com mais capítulos). As primeiras experiências na literatura marcaram bastante a sua geração. Sempre presto atenção neste detalhe, é um ponto em comum com outros contemporâneos seus. Talvez daí venha a verve... Abraços
Obrigado, Andrea!
Maravilhosas recordações!
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