O que se observa atualmente dentro das salas de exibição cinematográfica é um, por assim dizer, ato de selvageria, que determina os gestos predatórios, os comportamentos esdrúxulos e incompatíveis com o homem civilizado. O filme pouco importa para aqueles que o assistem nos complexos (Multiplex, Cinemark, Aeroclube...), constituindo-se num mero pretexto - ou, mesmo, conseqüência - do ato de ir ao shopping ou, se quiser, shoppear. Vai-se aos centros de compras da cidade para passear, consumir, praticar o lazer, após a destruição das praças e dos jardins e do comércio tradicional que se fazia nas ruas e avenidas de um centro deteriorado pela inércia, falta de vontade política, descaso pela memória. O ir ao cinema, então, se transformou numa das etapas desse processo de shoppear. Após a perambulação pelo shopping, o desfile costumeiro, o encontro com amigos, surge o cinema como uma espécie de saídeira do passeio. A maioria do público, adolescente, que faz parte dessa chamada, muito propriamente, geração fim-de-mundo, não se programa para ver determinado filme com antecedência. Os multiplexados consumidores do lixo cultural ficam atraídos pelos cartazes, inclinando-se pela fita que, por acaso, sugira ação e aventura, sexo e violência e tenha, no seu elenco, um ator ou atriz da moda.
Após a tomada do circuito exibidor pelas multinacionais estrangeiras, com a entrada em cena da UIP que, com os complexos Multiplex e Aeroclube, conseguiu fechar os cinemas de rua, restando, apenas, pequenos oásis fora desse esquema - a Circuito Sala de Arte, o Espaço Glauber Rocha, e a Walter da Silveira, pode-se observar desde 1998 - data da inauguração do Multiplex - uma mudança nos hábitos, nas maneiras, no comportamento diante do espetáculo cinematográfico. Estimulados pelo modelo americano, os jovens associam o cinema à pipoca e as empresas procuram lhes dar a consciência de que é preciso comer para ver. Assim, a comilança tornou-se uma regra, com as companhias estabelecendo em suas salas de espera verdadeiros centros de fast food. O comer para ver virou um reflexo condicionado a ponto de os jovens não admitirem assistir a um filme sem a complementação das bacias de pipocas e refrigerantes gigantescos, além de hambúrgueres variados. E, para pasmo geral, como não bastassem tal festim de colesterol, vendem-se, agora, dentro das salas, os estimulantes guloseimosos que tanto desesperam os cinéfilos que gostam, em paz e sossego, de ver um filme.
Acrescente-se a isso, as conversas laterais, o atendimento solícito de celulares em plena audiência fílmica, os risos fora de hora, que geram a total ausência de integração entre a emissão da obra cinematográfica e a sua recepção. Para o amante do bom cinema, ir aos complexos de salas tornou-se um inferno.
Registra-se, com isso, dois fenômenos: o da incivilidade e o da falta de educação. Mas o interessante a observar é que no passado havia um certo respeito, um comportamento diferente mesmo nos chamados cinemas populares, os poeiras. Se, atualmente, nota-se uma apatia e desinteresse diante do filme, o que se observava antes era uma interação, ainda que barulhenta em salas de segunda, entre o público e o espetáculo cinematográfico. Gritava-se e batia-se nas cadeiras (de pau) quando a cavalaria chegava a tempo de salvar os personagens de um ataque de índios, torcia-se pelo herói, aplaudia-se um beijo romântico etc.
Qual a causa dessa selvageria, dessa decadência, dessa brutalidade? Entre outros fatores, um poderoso: a influência devastadora da teledramaturgia que condicionou o receptor a uma passividade absoluta. Considerando que um filme tem uma duração limitada, todo e qualquer plano lhe é importante. O que não ocorre na televisão com as novelas, pois, aqui, o enchimento tradicional de linguiça se faz no sentido de possibilitar a quem as assista uma desatenção já prevista. Assim, quem assiste a três capítulos de uma novela pode deixar de ver quatro ou cinco e quando retorna encontra a história perfeitamente inteligível. A história é sempre repetida em vários ângulos a fim de dar ao receptor uma possibilidade de encontrá-la sempre compreensível. Resultado: a deformação provocada pela teledramaturgia televisiva - no modo de recebê-la, no modo de assisti-la fez com que a nova geração pratique a mesma atitude descompromissada quando diante de uma obra cinematográfica.
Pensa-se numa choldra de débeis mentais, numa escumalha de aloprados imberbes, alucinados diante da tela luminosa da sala de projeção. Uma patuléia desvairada que se agita no escuro à procura de um modo de ser mais peculiar às tribos ágrafas. Ir aos complexos, hoje, principalmente nas sessões vespertinas de fim de semana, é um convite ao desespero, salvo se a pessoa também faz parte dessa patuleia, dessa choldra, dessa escumalha.
8 comentários:
Espantou-me o fato de ter ido ao cinema anteontem para assistir "A fita branca" e notar que alem de minha mulher e eu, todos desligavam seus celulares (ouvia-se pelos barulhinhos típicos) e não havia cheiro ou ruído de pipocas no ar...
Depois, pensei c'os meus botões que eu estava em um “nincho” de primeiro mundo, numa sala do Estação Botafogo, tradicionalmente ligada a filmes mais sofisticados (para evitar a tão batida expressão cinema de arte).
Mas foi gostoso poder assistir à obra-prima de Haneke sem incômodos e interrupções que tanto molestam àqueles que vão ao cinema para assitir um filme, não esta "patuleia" a que você se refere com toda propriedade, meu caro Professor Setaro.
Ainda bem que existem oásis de tranquilidade para se poder assistir a um filme com paz e sossego. Aqui em Salvador, infelizmente, terra do "já foi", a situação é diferente: até nas chamadas salas alternativas, onde circulam uma escumalha de pseudocinéfilos, há celulares ligados, conversas fora de hora, risotas débeis e mentais. Mas antigamente não era assim, não, caro Jonga. Havia, na Bahia, por incrível que possa parecer, respeito, civilidade, educação, que se foram com o vento com o passar do tempo.
Noutro dia, vendo justamente esse mesmo filme, "A fita branca", um debilóide típico, que se sentou, para a minha infelicidade, na mesma fila em que estava, ainda que a sala meio vazia, conversava em alto e bom som no seu potente celular e comia uma bacia de pipoca. De repente, saiu, o que me deu imensa alegria. Passageira, porém, porque o imbecil voltou com mais uma bacia (de pipocas naturalmente). Detesto os anúncios que anunciam determinados filmes e, depois, acrescentam: "E não se esqueçam das pipocas!"
...esse notebook aqui encontra-se sem acentuação.Logo,releve,Andre...
Aqui, no interior de Minas, depende mais do que dia em que se vai e, por vezes,do film mesmo.
...de certa forma,acho que sou um saudoso do ritual de cinema,com aquela musica ao inicio nos preparando com a calma e a concentração pedidas.
Abr
Diante desse cenário de filme-catástrofe, ao qual se pode assistir "ao vivo", permita-me uma brincadeira: tua justa indignação é tanta que ainda deu um "acento" para (a) patuleia, quando ela já não tem, embora, talvez por vingança, por ter perdido esse destaque agudo, a patuleia tenha tomado de assalto todos os outros assentos.
Mas, a sério, talvez o cinema (e o Cinema também) tenha(m) encontrado sua verdadeira vocação, e o que nós insistimos em pensar como Cinema (de verdade, incluindo aí o da mais pura diversão) é só uma fantasia, resultado da soma de aspirações estético-espirituais diversas.
Bravo, Setaro! Bravo!
abs
Janot
Concordo com vc Mas sou um pouco mais otimista, no meio desta "Geração fim de mundo" tb têm uma garotada inteligente, que faz um cinema criativo e os novos cinéfilos. Há esperança.
André, um fenômeno interessante ocorre com os jovens desta geração mais interessados por cinema de qualidade: nós vivemos uma espécie de nostalgia por uma época que sequer vivemos - acreditamos, e temos certeza graças a depoimentos diversos, que a situação já foi bem melhor; não são apenas os filmes que são inferiores e desinteressantes, mas também há o público vulgar, que é exatamente do jeito que você escreveu. A impressão que temos (ou eu, pelo menos) é que estamos perdendo alguma coisa, como se estivéssemos desligados temporariamente da nossa geração. No final das contas, talvez seja apenas uma espécie de autodefesa.
André
O comentário de AC sobre o ritual do inicio das sessões remete-me a Itapebi-BA dos anos 50 (a cidade antiga,às margens do Jequitinhonha,não a atual sede do município)onde o italiano Silvio Tosto, dono do cinema, recebia as "películas" nas latas que chegavam conduzidas ou por aviões "teco-teco"ou pelas lanchas que faziam linha regular Belmonte-Itapebi.A expectativa pela sessão começava quando da chegada das latas,passava pela feitura dos cartazes em tinta cor de anil com fotos de cenas do filme,as conversa com o projecionista (Tatá)para saber se o filme era bom e desembocava nos acordes da música "O despertar da montanha" prefixo das matinés e soirés.
Emilio Suzart
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