A tortura do medo (Peeping tom, 1960), de Michael Powell, quando lançado na Inglaterra, apesar de assinado por um cineasta famoso, recebeu as mais severas críticas e o público, incomodado, se retirou das salas, a ponto de comprometer a carreira de seu diretor, que ficaria anos sem poder exercer a sua profissão pela recusa sistemática dos produtores. Na verdade, esta obra-prima, que trata do voyeurismo, incomodou os britânicos pela sua franqueza de exposição e pela habilidade de colocar o espectador na mesma posição de voyeur de seu personagem principal, um assassino que se compraz em matar mulheres para ver, nelas, o medo estampado no rosto enquanto estão a morrer e sendo filmadas pela sua câmara portátil. O espectador gosta de ser cúmplice de determinadas situações, quando, por exemplo, o personagem não tem ciência do perigo que corre, mas já sabido pelo público que é, pelo cineasta, "avisado" com antecedência. Em Um corpo que cai (Vertigo), obra-prima do cinema e de Hitchcock, a platéia já sabe que Judy é Madeleine, mas o apaixonado James Stewart continua ignaro da situação.
Desprezado pela crítica e pelo público, Peeping Tom precisou esperar mais de uma década até que foi redivivo nos anos 70 e considerado, por realizadores e críticos como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Claude Beylie, entre tantos, uma obra-prima. Scorsese, inclusive, chegou a comprar o negativo em 35mm para restaurar o filme em suas cores magníficas. Com o advento do DVD, a Criterion (distribuidora que somente lança obras luminosas e bem definidas) distribuiu Peeping Tom no mercado americano. A Silver Screen, embora não mantendo a qualidade das cópias da Criterion, lançou, há dois anos, o filme no Brasil. É um acontecimento importante para o cinema e para quem gosta de cinema já que o circuito comercial, honradas as exceções de sempre, impõe ao mercado o lixo cultural oriundo da indústria americana.
Mark Lewis (interpretado por Karl-Heinz Boehm, conhecido como o imperador, marido de Romy Schneider, na série Sissi) é um jovem cameraman que vive, para cima e para baixo, com sua câmera portátil 16mm debaixo do braço. Tem prazer em filmar, com ela, as prostitutas que o abordam na rua e matá-las com um estilete dissimulado no pé da máquina. Para aumentar seu prazer, ele mostra a suas vítimas, no momento crucial, um espelho parabólico que reflete a imagem de seu pavor na hora exata de morrer. Ele faz confidências à vizinha (interpretada por Anna Massey, que, mais de dez anos depois, em 1972, Hitchcock, quando filmou em Londres seu extraordinário Frenesi/Frenzy, a convidou para o papel da namorada de Jon Finch, vítima de estrangulamento pelo serial Barry Foster – e não a dúvida que o mestre se influenciou muito no filme de Powell em Frenzy) e exibe, no seu quarto, através de um projetor 16mm, para ela, os filmes amadores feitos pelo seu pai, um psiquiatra que utilizava o filho como cobaia para estudar a reação das pessoas diante do medo. Interessante observar que o pai (visto nos filmes projetados em preto e branco) é interpretado pelo próprio Michael Powell. Renomado psiquiatra tem como objetivo a investigação do pavor no ser humano. O filho passa a infância sendo filmado a toda hora e a qualquer momento. O que lhe provoca nada menos que um imenso trauma. Seu gosto perverso pelo voyeurismo vem daí.
A polícia, no entanto, consegue pistas de sua localização. Acossado, Mark decide se suicidar e filma a si próprio com sua câmera portátil, a registrar a própria morte em película e, no derradeiro momento da agonia, vê o rosto no espelho. Há, entre outros, dois momentos antológicos: aquele no qual a atriz Moira Shearer (Viv) dança para Mark antes de ser morta e a última sequência no quarto deste, quando decide filmar a própria morte. Michael Powell usa as cores com bastante funcionalidade graças ao talento de seu diretor de fotografia Otto Heller.
Powell, cineasta essencialmente inglês, foi produtor dos primeiros filmes de Hitchcock e, antes de Peeping Tom, era muito considerado por causa de filmes como Neste mundo e no outro(A Matter of Life and Death, 1946), Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp” 1943), com Deborah Keer, Narciso negro (Black Narcissus, 1947), também com Deborah Keer e Jean Simmons, e, principalmente pelo fascinante Sapatinhos vermelhos (The Red Shoes, 1948), que tem no seu elenco a mesma Moira Shearer de Peeping Tom. Fala-se que este filme revolucionou o balé. Todos os citados, menos Peeping Tom, foram dirigidos em parceria com Emeric Pressburger.
Filme fantástico do segundo ou mesmo do terceiro grau, sentenciou o crítico francês Claude Beylie a respeito de Peeping Tom, esta obra surpreendente apresenta o caso de um Jack, o Estripador, moderno, que teria visto muito Um cão andaluz, de Buñuel, e Janela indiscreta.
Beylie, aliás, se impressionou tanto com A tortura do medo que o colocou entre os melhores filmes de todos os tempos em seu imprescindível livro As obras-primas do cinema (editado aqui no Brasil pela Martins Fontes, mas esgotadíssimo). Segundo o ensaísta, "Este filme que seríamos tentados a atribuir a algum epígono de Buñuel ou Hitchcock, é obra de um respeitável cidadão britânico, Michael Powell (nascido em 1905), que, até então, dedicara-se a trabalhos prestigiosos (mas já marcados por um sólido humor) como Coronel Blimp ou ‘Neste mundo e no outro’. Retrospectivas recentes permitiram aquilatar a dimensão de um talento que não é indigno dos mestres americanos do cinema de aventuras ou do musical”.
Ainda Beylie: “A escolha de uma história – bastante sórdida – que evoca os romances de crime de Edgar Wallace, e apimentada com private jokes, pode surpreender. De fato, não só tudo neste filme gira em torno da escoptofilia, concebida como uma variante inquietante da cinefilia, mas o diretor multiplica-as ‘as piscadas de olhos’: ele próprio faz o papel de um pai indignado que filma os medos de um garoto (seu próprio filho), enquanto o deux ex machina cabe a uma senhora alcoólatra e cega! Para coroar tudo, Powell afirma tranqüilamente que não há nada de malsão nisso, que se trata, ao contrário, de um filme ‘terníssimo, delicadíssimo, quase romântico’. Em todo caso, a obra impressionou várias gerações de espectadores – e de cineastas como Martin Scorsese e Brian De Palma”.
5 comentários:
Li esta sua cr´tica no Terra Magazine e gostei muito.
Aliás, curiosamente não conhecia este filme realizado em época em que fui muito ao cinema.
Também, nesta grande e inesquecível época, ia muitíssimo ao cinema e não me lembro dele ter sido lançado em Salvador.No seu país de origem, a Inglaterra, foi um grande fracasso, e, talvez, penso, foi lançado meio escondido em outros. Antigamente alguns bons filmes sem sucesso comercial eram lançados em 'poeiras' em programa duplo. Vi "A tortura do medo' graças ao DVD, que, para mim, virou santidade.
Excelente reconstrução de época. Como tenho o privilégio de acesso a cópia da esgotada da edição As obras primas do cinema de Claude Beylie,Livraria Martins Fontes, 1987 ( Les Films-Clés Du Cinema)percebo ao ler seu texto que podemos ampliar o olhar, ir além com a seguinte filmografia do período: A Aventura, Michelangelo Antonioni; Entre Deus e o Pecado, Richard Brooks; Tudo começou no sábado, Karel Reisz; Sombras, John Cssavetes;Olhos sem rosto, Georges Franju e Zazie no metrô, Loius Malle. Podemos não conseguir restaurar as cópias, mas temos cinematecas e bibliotecas ainda a serem re-descobertas.
E obrigada por apresentar-me a Claude Beyllie, atual e sempre-vivo.
Stela,
A segunda metade dos anos 50 e a primeira dos 60 foram fundamentais para a evolução da linguagem cinematográfica. Na França, surge a Nouvelle Vague, na Inglaterra há, também, um sopro de renovação com o 'Free Cinema', a exemplo de 'Tudo começou no sábado', No Brasil, o Cinema Novo. Nos EUA, o cinema 'underground' novaiorquino, a exemplo de 'Sombras' ('Shadows'), de John Cassavetes. E a contribução da 'desdramatização' de Antonioni em sua famosa trilogia. E o gênio alucinante de um Alain Resnais, etc, etc.
Professor, o que o senhor acha deste "Cinema 3D"? Seria mais uma inovação enriquecedora ao cinema, ao apenas comercialismo?
No início, eu achava que era balela, pura comercialização banal, mas, agora, começo a achar que pode ser mais uma possibilidade de expansão das fronteiras da linguagem cinematográfica, além de uma retomada da experiência dentro de uma sala de cinema como algo essencialmente único, que não se encontraria em outro lugar.
Acho que um post a respeito, aqui, com sua opinião, poderia ser bastante interessante.
O crítico Pablo Villaça publicou um pequeno texto chamado "A linguagem do cinema 3D" no blog dele: http://www.cinemaemcena.com.br/pv/BlogPablo/ , acho que vale a pena uma lida.
Abraço!
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