A linguagem cinematográfica, já se disse aqui em algum post, foi sendo construída durante as seis primeiras décadas do século passado. Se a data da aparição do cinema se dá em 1895, somente quase 20 anos depois, em 1914/1915, é que se estabelece a configuração expressiva da sua narrativa, de sua linguagem, com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), de David Wark Griffith, e, logo adiante, em 1916, Intolerância (Intolerance), do mesmo diretor. Durante duas décadas (1895/1915), a linguagem cinematográfica tem seus elementos determinantes descobertos aos poucos e por acaso.
Um cinegrafista de Auguste e Louis Lumière (os inventores oficiais do cinema, embora muitos outros, na mesma ocasião, tentassem, em outros países, a projeção das imagens em movimento), Alexandre Promio, numa gôndola num canal de Veneza, liga o seu cinematografo e, a filmar os casarios com a barca em movimento, descobriu um movimento de câmera, o travelling. Um inglês, em 1901, G.A. Smith, da Escola de Brighton, Inglaterra, enquanto registra uma cena de uma mulher diante de um fogão, que está a ponto de explodir, em plano geral, tem a idéia de cortar e introduzir, neste, um close up do rosto da mulher aflita com o acidente prestes a acontecer. A descoberta da inserção de um close dentro de um plano geral é um grande passo na evolução da linguagem.
Assim como a montagem alternada, quando se vê, simultaneamente, vários espaços que se alternam em ritmo crescente até que se convergem num único espaço. A grosso modo, num filme do princípio do século XX, ainda nos primórdios da invenção, o exemplo da mulher que, amarrada aos trilhos por bandidos inescrupulosos (primeiro espaço), está quase a ser espedaçada pelo trem que vai vindo ao longe (segundo espaço) e que, com o desenvolvimento da narrativa, está cada vez mais perto, enquanto o mocinho, namorado da mocinha, toma conhecimento de que ela está em perigo (terceiro espaço) e vai em disparada salvá-la. No final, os três espaços se unificam no primeiro, com a chegada do mocinho, que consegue desamarrar a namorada dos trilhos, e fazer parar o trem. Outros elementos da linguagem são descobertos neste período, principalmente por Griffith em seu período na Biograph (ler, neste sentido, o fundamental livrinho da coleção Encanto Radical (Brasiliense, 1984) de autoria de Ismail Xavier: D.W. Griffith: O nascimento de um cinema ou, também muito importante, Serguei M. Eisenstein: Geometria do êxtase, da mesma coleção e editora, de Arlindo Machado).
Griffith, nos dois filmes citados, é aquele que consegue sistematizar, com eficiência dramática, as descobertas anteriores dos elementos da linguagem cinematográfica. Mas a linguagem ainda precisa de muitas décadas para se aperfeiçoar e se cristalizar, o que se dá em meados da década de 60. Os inventores de fórmulas (Hitchcock, Eisenstein, Orson Welles...) deixam de existir para dar lugar a um cinema de estilo.
Existem, a rigor, entre os realizadores cinematográficos, dois modos fundamentais de abordar o mundo: o cerebral/conceitual e o sensorial/intuitivo. Classificação formulada por Marcel Martin em A linguagem cinematográfica (pág 245), editado várias vezes por diversas editoras e livro imprescindível para um conhecimento básico da dita cuja. O exemplar que se está em mãos é da Brasiliense de 1990.
Nestes dois modos de abordar o mundo, os realizadores cerebrais/conceituais procuram reconstruir o mundo em função de sua visão pessoal, acentuando a imagem como meio essencial de conceituar o seu universo fílmico. Que outro cineasta mais cerebral e conceitual que Orson Welles. O autor de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) privilegia mais a imagem do que a chamada realidade e seu filme é, no fundo, como disse o historiador francês Georges Sadoul, "um retrato do artista por ele mesmo". Também se incluem como cerebrais/conceituais realizadores como Eisenstein cujo realismo, se assim se pode chamar, é um realismo conceitual, Carl Theodor Dreyer que, com seus quadraux mouvants (quadros moventes) sempre está a fazer exercícios cerebrais diante do tema exposto, a exemplo de O martírio de Joana D'Arc (La passion de Jeanne D'Arc, 1928), A palavra (Ordet), Vampyr, Gertrud, entre outros. E o esteta Luchino Visconti cuja forma privilegia na composição de sua mise-en-scène embora o propósito de fazer emergir uma realidade determinada (e Rocco e seus irmãos/Rocco i suoi fratelli, 1960, não seria, então, mais intuitivo?). Robert Bresson é cérebro e conceito, assim como Alain Resnais (cuja simbiose entre forma e conteúdo atinge as raias de um processo inextricável em O ano passado em Marienbad [L'année dernière a Marienbad, 1961], entre outras tantas obras de sua rica filmografia, que se considera uma das mais importantes do cinema em todos os tempos - recentemente Medos privados em lugares públicos [Coeurs], filme recente de um senhor em idade provecta, veio a mostrar diante de um cinema contemporâneo apático, a jovialidade, a inventiva, a grandeza desse cineasta francês desbravador de fórmulas que muito acresceu à evolução da linguagem cinematográfica. O filme permaneceu em cartaz por mais de um ano em uma sala paulista). E mais cérebros: Jean-Luc Godard, que praticamente inventou o filme-ensaio, Tarkosky, Orson Welles, entre tantos.
Os realizadores cinematográficos sensoriais e intuitivos procuram subtrair-se diante da realidade (como se desaparecessem diante dela), fazendo surgir, da representação da realidade direta o objetiva, a significação que querem obter. Para estes cineastas, o trabalho de elaboração da imagem tem menos importância que a sua função natural de figuração do real. Os sensoriais e intuitivos não almejam confiscar o espectador diante da fascinação da imagem, mas, pelo contrário, respeitam a sua liberdade. Assim, em seus filmes, a característica essencial está menos no caráter insólito de suas imagens do que na intensidade da representação da realidade. Marcel Martin diz textualmente: “E poderíamos acrescentar, ainda esquematicamente, que o período em que a linguagem (imagem, montagem) teve um papel predominante correspondeu ao triunfo dos cerebrais, ao passo que o progressivo abandono da linguagem tradicional assinala a preponderância dos sensoriais e de sua visão plástica não mais obcecada pelo conceitualismo.”
David Wark Griffith talvez seja o maior exemplo do cineasta sensorial e intuitivo, assim como Charles Chaplin, Robert Flaherty, Wilhelm Murnau, Yasujiro Ozu, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Vittorio DeSica, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Theo Agelopoulos, Wim Wenders, etc.
2 comentários:
Fico a pensar se os cineasnos que imperam por aí nos dias de hoje estão a reiventar o cinema, ou simplesmente enterra-lo para criar um novo tipo de comunicação.
Por vezes, também questiono se nós "já éramos"...
E ainda escreveram que o Snyder é visionário. O pessoal hoje em dia pensa que aa fotografia é tudo. Por isto é tão fácil encontrar críticas onde está escrito que o filme é ruim, mas a fotografia se salva. Se a fotografia é boa, então esqueça o resto.
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