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08 fevereiro 2009

Sobre o que se diz e o que está dito


A especificidade cinematográfica se dá através de seus elementos básicos: (1) a planificação; (2) os movimentos de câmera; (3) a angulação; havendo, ainda, um quarto elemento, a montagem, que também determina a sua especificidade. Existem, a rigor, os elementos determinantes (os citados) e os elementos componentes da linguagem fílmica. Estes, apesar de imprescindíveis, não lhe determinam o seu específico. Assim, o roteiro, ainda que fundamental para a estruturação da obra, é um texto escrito, não cinematográfico, uma pré-visualização do filme futuro - e a montagem é uma pós-visualização; já a fotografia ajuda a compor e a melhor definir o estilo, algumas vezes com a função dramática especial (é o caso de Vittorio Storaro, iluminador de Bernardo Bertolucci, cuja fotografia assume, em películas como O céu que nos protege e O último imperador, uma quase co-autoria); a cenografia, em raros exemplos (nas obras expressionistas e, em especial, O gabinete do Dr. Caligari), embora elemento componente, nestes casos excepcionais, é determinante e apresenta-se como processo deflagrador da evolução temática; assim como a parte sonora, os ruídos, os diálogos, a partitura musical...
Bela Balazs, teórico húngaro, atribui importância fundamental a três elementos da linguagem cinematográfica: o primeiro plano (close-up), a montagem, e a variedade de posições da câmera. O primeiro plano, além de ser, para ele, o fator que diferencia o cinema do teatro, cria um microcosmo desligado do espaço e da materialidade. O mundo da microfisionomia (rosto ampliado e isolado pelo close-up, como num microscópio) confunde-se mesmo com o "mundo da alma". É a dimensão de uma expressão humana isolada sobre a tela, e toda a referência ao espaço e ao tempo desaparece em vista de sua existência autônoma. Nossa consciência completa do espaço é abolida e nos encontramos em outra dimensão, a da fisionomia. O ponto de referência da Balazs é o filme A paixão de Joana D’Arc (1928), do dinamarquês Carl Theodor Dreyer.
Se a montagem fraciona a totalidade do tempo, o primeiro plano fraciona a totalidade do espaço. A montagem cria, assim, uma duração autônoma e torna-se responsável pela intensidade dramática do filme. É o senso de montagem que leva o realizador a introduzir o primeiro-plano, verdadeiro termômetro da sensibilidade do diretor. A montagem pode ainda sugerir associações de idéias. Por exemplo, no flash-back de uma pessoa recobrando a memória, lembranças surgem e se desvanecem em segundos, numa sucessão vertiginosa de planos rápidos. Só a linguagem cinematográfica pode transmitir a correlação irracional dessas imagens mentais: a velocidade em que se sucedem reproduz a velocidade real do processo de associação de idéias. Por isso os surrealistas acham que o cinema se revela como o instrumento real para a conquista da supra-realidade: a câmera é capaz de fundir vida e sonho; presente e passado se unificam e deixam de ser contraditórios; as trucagens podem abolir as leis físicas...Para o espectador contemporâneo, habituado à espantosa complexidade narrativa dos filmes modernos, torna-se difícil supor que a linguagem cinematográfica tivesse de ser conquistada lentamente.
A necessidade dos remakes pela indústria revela que o caldo cultural atual somente pode ser sintonizado com ele próprio. Por que refilmar, por exemplo, Psicose, de Hitchcock, se é um filme novo de 1960 e ainda hoje atual e impactante? Porque, além de ser preto-e-branco, a cultura de seus personagens, seus modos de agir, a gestualística, a maneira de ser e o tom - mais de sugestão e menos apelação - não satisfazem mais ao público que consome o cinema como mercadoria.
Voltando à linguagem, nos primeiros filmes de Lumière, o que se vê não passa de um registro de acontecimentos. Quando vários registros sobre o mesmo assunto se reúnem, o filme passa à categoria de descrição. Os primeiros cineastas desconhecem a montagem. Em 1900, na chamada Escola de Brighton (Inglaterra), segundo o historiador francês George Sadoul, parecem estar os rudimentos da montagem cinematográfica. Os realizadores da escola têm a idéia de articular os vários registros de uma regata. A uma imagem do público sobre uma ponte, faz-se surgir (ou seguir) uma imagem da competição. O resultado, que nos dias de hoje parece tão simplório, mas que tem uma importância assustadora, é o aparecimento da primeira frase cinematográfica: 'As pessoas que estão na ponte olham os barcos que passam'. Está aberto o caminho para a narração. Os elementos que possibilitam a narração especificamente cinematográfica, no despertar do século XX, estão na ação paralela - cortes alternados desencadeadores do conflito em movimento, da corrida contra o tempo (a mocinha amarrada aos trilhos do trem, corte para o mocinho que toma conhecimento, o trem que vem chegando cada vez mais perto...), quebra da distância fixa entre a câmera e o ator (a saída do teatro filmado, da imobilidade da câmera), a variação do ângulo visual (o espectador vê sempre aquilo que a câmera viu durante a filmagem).
A maior parte dos espectadores, no entanto, somente se preocupa com a história, a intriga, os personagens, as situações, a fábula, em suma, desconhecendo ser o cinema uma linguagem. Muitas vezes o significado vem através de um travelling ou de uma panorâmica (movimentos de câmera), de determinadas angulações, do sentido especial de determinado plano. Assim, necessário se faz distinguir a narrativa da fábula (esta aqui compreendida como a história, a trama, a intriga...). Porque o verdadeiro acontecimento narrado pelo filme não é o que se reporta ao comportamento dos protagonistas, mas o que se relaciona com o comportamento da própria linguagem cinematográfica. Existem, num filme, dois planos: um plano relativo à narrativa e um plano relativo à fábula. O primeiro refere-se ao como - ao conjunto das modalidades de língua e estilo que caracterizam o texto narrativo. À articulação feita pelo cineasta dos diversos elementos da linguagem fílmica. Como ele articula estes elementos é que determina o estilo de cada um. O segundo, o plano da fábula, refere-se à coisa da narração - à sua história. Na análise de um determinado filme, o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o da fábula, mas o da narrativa, ou do discurso cinematográfico. O lugar onde se individualiza a poética de um cineasta (ou a ausência desta, no caso de um artista medíocre) é na esfera da linguagem por ele utilizada sempre na condição de o ser o sentido polívoco e não banal. Polivalência semântica se constitui na conditio sine qua non da artisticidade, relativamente a qualquer sistema expressivo.A distinção entre narrativa e fábula pode parecer artificial quando se encontram obras em que os dois planos caminham paralelamente e em perfeita harmonia. É o que acontece nos filmes que seguem os cânones do naturalismo - nos quais a conotação tende para o grau zero e a coisa impõe uma espécie de ditadura sobre o como. Mas a distinção se legitima plenamente nos filmes em que os dois planos se dissociam para refutar-se, ou, pelo menos, controlar-se alternadamente. Pode acontecer que, no decorrer do filme, a mensagem expressa pela fábula seja contrariada pela mensagem expressa pela narrativa, ou seja, que esta última provoque sutilmente a erosão da primeira, a ponto de produzir um significado real oposto ou divergente do que se extrairia de uma leitura limitada exclusivamente aos valores da história.Em A laranja mecânica (Stanley Kubrick, 1971), por exemplo, a ironia da narrativa encarrega-se de neutralizar a violência da fábula, principalmente na seqüência do assalto, pelo bando de Alex, à casa do escritor. Enquanto este é brutalmente espancado, o delinqüente canta a música de Cantando na chuva como uma espécie de diluição do ato predador e desumano, instituindo o paroxismo. Aliás, uma das causas da incompreensão do derradeiro filme de Kubrick, De olhos bem fechados é o desconhecimento, por parte da intelligentzia paroquial, dessa importante distinção. Os críticos não compreenderam a poeticidade da narrativa kubrickiana, atendo-se, única e exclusivamente, aos valores da fábula. A verdadeira crueldade em Mouchette, a virgem possuída, de Robert Bresson, não reside tanto na matéria da história como no rigor formal que caracteriza o plano da narrativa. Assim também nos outros filmes desse excepcional realizador - como Pickpocket entre outros. Em Terra em transe, de Glauber Rocha, na "biografia de um aventureiro", há contrariedade evidente entre o que expressa a narrativa e a que expressa a fábula (vide Paulo Autran no Parque Lage andando sem rumo, rindo às gargalhadas, enquanto, em off, se ouve a narração da trajetória de sua vida).
Catalisador das emoções, formador de sensibilidade, fonte de descobrimento, o cinema é a manifestação mais rica do século XX
A imagem é de O céu que nos protege, de Bernardo Bertolucci.

3 comentários:

Emmanuel Mirdad disse...

Muito obrigado, caro mestre! Sinto-me muito honrado por seu comentário. Devido às atribulações da vida, estou um pouco afastado da sétima arte, concentrado nos afazeres da produção cultural, mas em breve devo retornar, com carinho e atenção, e quero rever aquele nosso entreato, e conseguir captar o triunfo inegualável de John Ford que este Felliniano ainda não experimentou. Abs, meu amigo!

Jonga Olivieri disse...

A importância da linguagem cinematográfica passa despercebida para grande parte dos espectadores, até porque, como você bem exemplificou, muitos deles prendem-se à história.
Todavia não conseguem alcançar o quanto a própria narrativa, através da câmera, da montagem, e de todos os elementos que compõem um filme e sua gramática podem pesar na opinião final.
Por isto acho muito importante uma matéria didática como esta. Somente assim um público cada vez maior poderá compreender a totalidade do cinema como expressão artística.

Carlos Siqueira Campos disse...

Excelente o seu post deste domingo sobre a linguagem cinematográfica. Mas o que queria dizer é que também tinha Moniz Vianna como mentor. Achei que fez uma bela homenagem ao mestre. Muitos que dizem não conhecê-lo é porque os que se denominam críticos de cinema hoje, principalmente os que pululam na internet nos blogs e sites, são jovens demais para terem conhecido Moniz. Ele, como você bem sabe, começou a escrever em 1946 e seu grande auge foi nas décadas de 50 e 60. O pessoal que se encontra mais aguerrido na crítica nasceu após 1980, embora devesse ter conhecimento do passado, dos grandes mestres da crítica cinematográfica. Lembro-me de você, na faculdade, a falar sobre Moniz Vianna, Walter da Silveira, Francisco Luiz de Almeida Salles, Paulo Emílio Salles Gomes, etc. Naquela época havia uma espécie de fla/flu: os que admiravam Moniz eram inflexíveis e 'inimigos' daqueles que tinham Alex Viany como mentor. Mas como disse muito bem Sérgio Augusto, Viany não escrevia tão bem como Moniz. E era de um stalinismo irritante.