Publiquei ontem um brilhante artigo do Professor Jorge Coli a favor de A Troca. Peço licença a Marcelo Miranda (do jornal O Tempo - Belo Horizonte) e a Eduardo Valente (da Revista Cinética) para que sejam aqui transcritas as suas lúcidas e coerentes críticas positivas ao brilhante filme de Clint Eastwood.
MARCELO MIRANDA
"Já foi dito algumas vezes que Clint Eastwood faz um cinema não de adjetivos, mas de substantivos. É o mesmo que falar que o cineasta filma apenas o essencial e necessário para narrar a história que lhe interessa. Isto se aplica à perfeição - e como poucas vezes - a "A Troca", em cartaz nos cinemas. Neste drama histórico sobre uma mãe lutando contra instituições oficiais para provar que foi enganada em relação ao desaparecimento de seu filho, Eastwood realiza um mini-épico familiar cujos desdobramentos inesperados vão sendo revelados aos poucos, sem jamais permitir que a narrativa acumule gorduras ou excessos. Tudo que surge na tela, cada plano, movimento e diálogo, forma o mosaico da trajetória da protagonista dentro do que existe de mais fundamental a ser dito. Sendo "A Troca" um filme de quase 2h30 de duração, essa contenção só consegue fazer sentido nas lentes de um mestre como Eastwood.
Ele é capaz de permitir ao espectador ganhar tão forte intimidade com as figuras em cena que só resta sofrermos e nos surpreendermos com cada passo dado. Neste caso, é Angelina Jolie, como Christine Collins, quem carrega a visão do filme. Em atuação extraordinária, a atriz é o grande ponto de vista de "A Troca". Por mais que, a certa altura, o filme siga um caminho aparentemente independente de Christine (durante a investigação de um policial na fronteira com o Canadá), é sempre a ela que Eastwood vai se remeter, filtrando tudo à frente do que a moça é submetida. Talvez isso explique o porquê de alguns personagens surgirem como quase encarnações do mal diante de Christine - como o chefe de polícia e as enfermeiras da clínica: dar o olhar narrativo àquela mãe desesperada acaba permitindo (justificando?) que todo o impedimento para ela chegar ao filho ganhe contornos monstruosos. E há, afinal, um outro personagem que, sendo ele, sim, a encarnação do mal, é desenhado por Eastwood como uma figura detestavelmente fragilizada. É a forma humanista como o diretor molda seres comoventes ou desprezíveis: não os qualificando como tais. Substantivos, não adjetivos."
EDUARDO VALENTE
"Quando A Troca começa, com o primeiro dos logotipos usados pela Universal, o espectador mais imediatista talvez seja levado a pensar num tipo de relação fetichizante com a história do cinema, algo que temos visto com freqüência recentemente, indo desde um O Homem que Não Estava Lá, dos irmãos Coen; ao último Indiana Jones, de Steven Spielberg (em registros e resultados bem distintos). No entanto, o jogo de Clint Eastwood neste seu novo filme (mas já não o mais recente, uma vez que o ritmo do cineasta parece cada vez assombrosamente mais rápido, como se ele disputasse junto com Manoel de Oliveira uma surreal corrida contra o tempo) é de natureza bem diferente: ao usar esta logomarca que remete ao começo dos anos 30, ele não indica nenhum desejo de emular um cinema anterior (como tantos citaram), mas simplesmente colocar o espectador no espírito de uma época, já que a história se passa naqueles mesmos anos, cuja exatidão de reconstrução resulta tão crucial para a narrativa.
A armadilha deste primeiro olhar é tão grande quanto a de dizer que o filme é “filmado à moda antiga” (seja lá o que isso signifique), ou voltar ao batido tema de Eastwood como “o último dos cineastas clássicos”. Fazer isso tudo é receber A Troca pelo que ele tem de mais epitelial, ignorando o que o filme deixa mais que claro: que o cinema de Eastwood se consolida cada vez mais como uma arte que, (re)conhecendo plenamente uma história do cinema (americano, principalmente), se coloca de maneira definitiva para além de denominações como clássico ou moderno. Por isso mesmo, se de fato impressiona no começo do filme uma característica cara ao melhor do cinema americano do período considerado “clássico” (a limpidez extrema de narrativa e linguagem, numa forma de ir direto aos fatos que interessam com um domínio quase absoluto das ferramentas do tal storytelling cinematográfico), mais para a frente, na medida em que o filme avança e a trama quase kafkiana (tão mais impressionante porque verdadeira) vai se desdobrando, o cinema de Eastwood começa a fazer uso de uma série de elementos absolutamente contemporâneos, desde sua divisão em narrativas paralelas com entrecruzamentos distintos até o uso de uma câmera ágil (que desmonta totalmente qualquer argumento sério de uma filmagem “clássica”), passando por uma ida ao primeiro plano de uma série de elementos da linguagem (como a edição de som nas sequências no hospício) que se aventuram para além de qualquer noção de “transparência” na forma de narrar uma ficção no cinema, como se fazia "antigamente".
A introdução dos personagens e da situação primordial do filme é realizada com uma exatidão de elementos assustadora, que combina trabalho de atores, escritura de diálogos e situações e colocação da câmera frente ao mundo que se vai habitar com o filme – e sua posterior montagem. Só que aquilo que a princípio (e, de novo, numa superfície muito rasa) se prestaria a narrar uma história de obstinação de uma heroína pura frente a um mundo duro e insensível (principalmente na esfera das instituições, encarnadas na polícia de Los Angeles e especificamente no delegado Jones), logo começará a dar passos muito mais perturbadores e difíceis de enquadrar. De fato, antes do tão citado melodrama, se há um gênero que parece mais adequado ao filme depois de um certo momento é mesmo o filme de horror –não o horror entendido como o gênero onde o sobrenatural é encarnado para causar sustos no espectador, e sim o horror primordial do homem frente ao que ele não consegue compreender ou lidar com (em última instância, a morte – tema eastwoodiano por excelência).
Pois é este o mergulho doentio que a narrativa toma a partir da internação da personagem de Angelina Jolie no hospício. A partir dali, o horror é de fato o registro do filme (algo, aliás, antecipado pela presença do falso Walter no começo do filme, sempre filmado como algo próximo a uma assombração ou um monstro – sendo que ele de fato representa as duas coisas ao mesmo tempo), e inclusive algumas das ferramentas mais óbvias do cinema do gênero vêm de fato à tona, como a já citada edição de som criando uma atmosfera de tortura quase surreal, mas também o uso dos enquadramentos e das interpretações (e nisso as cenas de eletrochoque são exemplares). Não por acaso é justamente neste momento em que surge uma cisão narrativa e o filme começa a acompanhar duas histórias, num movimento que alguns têm caracterizado como irregular ou derivativo, mas que de fato é central ao que Eastwood deseja com o filme: fica claro então que ele não está falando aqui da luta do indivíduo contra a instituição/o sistema, mas sim do Homem (encarnado aqui numa mulher, mas não só ela) frente ao inexplicável – seja ele a crueldade institucionalizada (ecos claros de Hannah Arendt no delegado Jones e no diretor do hospício), seja a insanidade individual dos atos de Gordon Northcott (e aí é particularmente interessante descobrirmos que a história de vida do verdadeiro Northcott tem lances muito semelhantes ao perfil que se desenvolveu justamente no cinema sobre os serial killers – abuso sexual, incesto, infância perturbada – mas que Eastwood prefira ignorar isso ou qualquer tentativa de “explicar” Northcott).
Tal é a profundidade deste mergulho nos horrores do mundo, que ninguém sai limpo, e parece particularmente importante tratar da alongada conclusão do filme para entender que a Eastwood não interessa nem um pouco uma narrativa direta e precisa (clássica), a qual se assim desejada (“people Love happy endings”, diz o capitão Jones), poderia dar-se por encerrada tranquilamente na saída triunfal de Christine Collins do hospício. Ao fazer deste o primeiro de vários possíveis “finais” do filme, Eastwood deixa claro o tamanho do buraco onde sua narrativa nos mete, se tornando tão mais incômodo e preciso quanto mais ele protela o final (e aqui um parêntese anedótico: lá pela terceira destas protelações radicais, na sessão onde revi o filme uma espectadora externou sua angústia em voz alta com um “eu não agüento mais!” – exatamente o ponto).
Nessa parte do filme é especialmente impressionante o movimento que o filme faz em tornar auto-cambiáveis os “dois lados” da moeda (algo deixado absolutamente claro – à la Eastwood também – na excepcional cena em que Collins e Northcott se confrontam na cadeia, com ela terminando atrás das grades enquanto ele sai de cena). Por um lado, os discursos do advogado e do pastor (interpretado por um John Malkovich cheio de uma sutil dualidade pouco elogiada/percebida) que, para “fazer justiça”, usam dos meios mais discutíveis (demagogia, a manipulação da mídia, retórica absurda); por outro, tanto Jones quanto Northcott, de perto, soam absurdamente humanos, entre a covardia e a real crença no próprio discurso do primeiro (onde as grotescas risadas da platéia do julgamento deixam claro sua dimensão patética) e o desespero demente do outro (e a cena da execução é exemplar não só da banalidade do mal que ele representa – Arendt, de novo? – mas também da dimensão igualmente patética da noção de “punição” possível).No entanto, é mesmo a personagem de Christine Collins que mais encarna neste final a disposição de Eastwood de ir até o fim. Pois, ao passar por todos os estágios posteriores de provação que lhe são impostas após a saída do hospício, podemos ver que aquilo que no começo seria determinação, logo dá a ela uma característica latente de insanidade e de obsessão. Para todos os efeitos da experiência racional do mundo, Christine Collins ultrapassa qualquer barreira de normalidade, e sua busca eterna pela inocência perdida (aquela tão bem filmada nos curtíssimos cinco ou dez minutos iniciais do filme) se expande para além do filme, através da imagem do alto onde ela se perde na multidão da cidade, com o crédito final revelando sua pena perpétua (“ela procurou pelo seu filho até o fim da vida”). Irmanar-se com ela, portanto, como o filme nos faz cumprir, passa a ser mergulhar na loucura e admitir, ao fim e ao cabo que, frente ao insondável e uma vez tocados pela tragédia e pela violência do mundo, não é possível voltar atrás, prosseguir da mesma forma, nem achar qualquer tipo de redenção."
3 comentários:
Eastwood a cada dia se supera mais um pouco.
É impressionante que um ator que começou sua carreira nos (então despretigiados) westerns spaghetti ainda nos anos 60, para ser mais exato em 1964 com "Por um punhado de dólares" chegou ao nível de genialidade como diretor em gêneros que fogem aos seu início de carreira, como "Menina de Ouro" ou os dois brilhantes filmes sobre Iwo Jima. E agora neste eletrizante "A troca".
Mil votos (e longa vida) a Eastwood, que aos 77 anos está em plena forma e como realizador é de se tirar o chapéu... e reverenciar de joelhos.
Já li por aí que o novo dele, GRAN TORINO, que estreia no dia 6 de fevereiro, é ainda mais poderoso que A TROCA. Haja coração!
O filme é muito bom! Eastwood cosegue fazer pelos movimentos de câmeras, um roteiro muito bem elaborado e uma organização boa do figurino e ambiente da década dos anos 20/30. A idéia de mostrar a força do leviatã estatal paira nessa obra. A lei é dura, mas é a lei. Apesar de toda fragilidade e sofrimento feminino e infantil que o filme nos revela, no final ele conclui com uma palavra que é simples, mas complexa pela dimensão da história. A palavra: Hope ou Esperança! Um clássico filme americano. Parabéns!
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