Tuna Espinheira, veterano cineasta baiano, concluiu, há alguns anos, o seu primeiro longa metragem, Cascalho, mas até hoje amarga a sua falta de distribuição para que possa ser visto, ainda que um dos escolhidos para a mostra competitiva do Festival de Brasília. Conheço Tuna desde o século passado, tendo participado, olha vejam só, como ator, de um filme seu datado de 1982, O cisne também morre, que gostaria de ter uma cópia em DVD. Abaixo três artigos do velho Tuna e um de Angela Vilma. Vamos lá sem mais delongas.
Velho André
Estou curioso com sua futura matéria, anunciada em seu último texto, sobre o cinema baiano. Tá na hora. A Bahia continua provinciana, como tal, com o pescoço exposto ao lobby vampiresco. Exemplo tácito foi a liberação (saiu na coluna Tempo Presente, de A TARDE, notícia colhida no Diário Oficialk do Estado, verba "heroicamente" doada pela BAHIATURSA para a pré estréia de "Ó, PAÍ, Ó", no valor de 150 mil reais). O filme é da Globo Filmes, gastou uma orgia de dinheiro no lançamento e a província doou sangue. Causa indignação porque até o momento não se fala do Edital do Estado, este com recursos existentes no orçamento. A "Classe" não se pronuncia e, triste Bahia, la nave va. Estou enviando. em anexo, conforme combinado, quatro textos de minha autoria. O recontato é "tudo vale um brinde". Grande abraço e muito axé.
Cascalho, o filme -
e uma pedra no caminho da comercialização
François Truffaut, no seu emblemático filme, “Noite Americana”, compara a aventura de uma filmagem com uma viagem de diligência no velho oeste, quando nunca se tinha certeza de se chegar ao fim.
Entretanto, para os cineastas fora do eixo Rio/São Paulo, ligados à produção independente e compulsoriamente obrigados a trabalhar com um orçamento de baixo custo, o buraco é mais embaixo. É preciso remover terríveis pedras do meio do caminho. Caso o roteiro não traga em seu bojo ingredientes novelescos, pornô, clip/MTV e outros adereços das estéticas da moda, aí então o bicho pega.
O surgimento das leis de incentivo, Lei do Audiovisual e Lei Ruanet, baseadas na renúncia fiscal do governo, trouxe um grande alento, confiava-se que esta medida pudesse, de fato, apreciar os projetos com bons ventos democráticos. Foi necessário um bom tempo para se perceber o enorme círculo vicioso. Foram griladas as oportunidades de captação ou, como diz a máxima popularizada: “todos são iguais perante a lei... só que alguns são muito mais iguais”.
Cascalho, o nosso filme em questão, por mais de sete bíblicos anos, metamorfoseou-se em uma alma penada, virou assombração, arrastando as famigeradas leis de incentivo, aquelas que excluem os periféricos e autorizam os empresários a fazer cortesia com o chapéu do governo.
Aqui, na terra mãe, cansamos de ouvir o repetido refrão: “nossa cota de renúncia já está comprometida com o filme tal”. Os filmes eram do sul maravilha, as empresas eram, em sua maioria, as estatais que restavam. A Bahia exercia o triste papel de colônia, afirmava sua condição de província doadora de sangue.
De repente, não mais que de repente...deu-se o estalo de Vieira na Secretaria de Cultura do estado e era declarada a temporada de caça do cinema baiano. Por decreto governamental foi instituído um concurso público para projetos de filmes de curta e longa metragem. O roteiro de Cascalho ganharia o edital Fernando Coni Campos. Desta forma pudemos, com muita alegria e disposição, embarcar na incerta carruagem citada pelo diretor de “Jules e Jim”, para viajar os perigos de rodar um filme.
Apesar da indigestão de ter comido tanta poeira, continuamos tentando qualquer espécie de resultado via captação, era um filme de época e precisávamos, em desespero, mais algum aporte. Desta vez acreditando mais, tínhamos líquido e certo, o dinheiro do prêmio estatal e, portanto, a garantia de botar o filme na lata, como se diz no nosso dialeto.
Tudo em vão. Não conseguimos captar nada e ainda ficamos de fora das verbas tradicionalmente distribuídas como apoio às produções por empresas e instituições como a Ancine, o Bndes, Petrobrás, Correios, Banco do Brasil, Furnas, etc. Felizmente, nos estertores, uma tábua de salvação – ganhamos o concurso de finalização do Ministério da Cultura.
Era uma vez um roteiro peregrino que virou filme, através de dois concursos públicos e contou com apenas com as verbas dos respectivos prêmios. Foi uma produção franciscana, pero mui digna.
No momento estamos com uma enorme pedra no caminho: e filme “Cascalho” corre o risco cruel de não chegar às salas de cinema. Neste Brasil de agora, filmes que não seguem a regra do gênero clipe, besteirol, realidade maquiada, pornô erótico etc etc, estão fadados à orfandade pelo sistema de distribuição.
Tem cada vez menos Brasil nos filmes brasileiros. A enorme pedra citada impede o acesso a qualquer espécie de circuito comercial para “Cascalho”, mesmo para o circuito sem holofotes dito alternativo. Continuamos insistindo: no momento estamos apostando no edital da Petrobrás - difusão de filmes de longa metragem – cujo resultado sairá neste dia 23 de setembro.
Os lobistas e as bruxas estarão soltos. Vai ser uma briga de foice em noite sem lua. Como a esperança teima em ser a última que morre, torcemos por “Cascalho” neste momento de angústia e suspense, a derradeira bala na agulha. E gostaríamos de pronunciar as palavras mágicas: Vai que é tua, Tafarel!
e uma pedra no caminho da comercialização
François Truffaut, no seu emblemático filme, “Noite Americana”, compara a aventura de uma filmagem com uma viagem de diligência no velho oeste, quando nunca se tinha certeza de se chegar ao fim.
Entretanto, para os cineastas fora do eixo Rio/São Paulo, ligados à produção independente e compulsoriamente obrigados a trabalhar com um orçamento de baixo custo, o buraco é mais embaixo. É preciso remover terríveis pedras do meio do caminho. Caso o roteiro não traga em seu bojo ingredientes novelescos, pornô, clip/MTV e outros adereços das estéticas da moda, aí então o bicho pega.
O surgimento das leis de incentivo, Lei do Audiovisual e Lei Ruanet, baseadas na renúncia fiscal do governo, trouxe um grande alento, confiava-se que esta medida pudesse, de fato, apreciar os projetos com bons ventos democráticos. Foi necessário um bom tempo para se perceber o enorme círculo vicioso. Foram griladas as oportunidades de captação ou, como diz a máxima popularizada: “todos são iguais perante a lei... só que alguns são muito mais iguais”.
Cascalho, o nosso filme em questão, por mais de sete bíblicos anos, metamorfoseou-se em uma alma penada, virou assombração, arrastando as famigeradas leis de incentivo, aquelas que excluem os periféricos e autorizam os empresários a fazer cortesia com o chapéu do governo.
Aqui, na terra mãe, cansamos de ouvir o repetido refrão: “nossa cota de renúncia já está comprometida com o filme tal”. Os filmes eram do sul maravilha, as empresas eram, em sua maioria, as estatais que restavam. A Bahia exercia o triste papel de colônia, afirmava sua condição de província doadora de sangue.
De repente, não mais que de repente...deu-se o estalo de Vieira na Secretaria de Cultura do estado e era declarada a temporada de caça do cinema baiano. Por decreto governamental foi instituído um concurso público para projetos de filmes de curta e longa metragem. O roteiro de Cascalho ganharia o edital Fernando Coni Campos. Desta forma pudemos, com muita alegria e disposição, embarcar na incerta carruagem citada pelo diretor de “Jules e Jim”, para viajar os perigos de rodar um filme.
Apesar da indigestão de ter comido tanta poeira, continuamos tentando qualquer espécie de resultado via captação, era um filme de época e precisávamos, em desespero, mais algum aporte. Desta vez acreditando mais, tínhamos líquido e certo, o dinheiro do prêmio estatal e, portanto, a garantia de botar o filme na lata, como se diz no nosso dialeto.
Tudo em vão. Não conseguimos captar nada e ainda ficamos de fora das verbas tradicionalmente distribuídas como apoio às produções por empresas e instituições como a Ancine, o Bndes, Petrobrás, Correios, Banco do Brasil, Furnas, etc. Felizmente, nos estertores, uma tábua de salvação – ganhamos o concurso de finalização do Ministério da Cultura.
Era uma vez um roteiro peregrino que virou filme, através de dois concursos públicos e contou com apenas com as verbas dos respectivos prêmios. Foi uma produção franciscana, pero mui digna.
No momento estamos com uma enorme pedra no caminho: e filme “Cascalho” corre o risco cruel de não chegar às salas de cinema. Neste Brasil de agora, filmes que não seguem a regra do gênero clipe, besteirol, realidade maquiada, pornô erótico etc etc, estão fadados à orfandade pelo sistema de distribuição.
Tem cada vez menos Brasil nos filmes brasileiros. A enorme pedra citada impede o acesso a qualquer espécie de circuito comercial para “Cascalho”, mesmo para o circuito sem holofotes dito alternativo. Continuamos insistindo: no momento estamos apostando no edital da Petrobrás - difusão de filmes de longa metragem – cujo resultado sairá neste dia 23 de setembro.
Os lobistas e as bruxas estarão soltos. Vai ser uma briga de foice em noite sem lua. Como a esperança teima em ser a última que morre, torcemos por “Cascalho” neste momento de angústia e suspense, a derradeira bala na agulha. E gostaríamos de pronunciar as palavras mágicas: Vai que é tua, Tafarel!
A natureza do roteiro cinematográfico
A gênese de todo projeto cinematográfico é, seguramente, o roteiro. Na condição de ferramenta máter, é através dele que se espelha o desenho do filme a ser rodado.
O cinema, neste mais de um século de existência luminosa, passou por várias conquistas técnicas, entre elas as marcantes transformações de mudo pra falado, de preto-e-branco para colorido. O roteiro também se modernizou. Deixou de ser um tratado técnico carrancudo, fazendo por merecer a alcunha de script de ferro, quando se despojou dos grilhões das suas indicações ditatoriais, tornando-se um texto mais enxuto. De toda maneira continuou trazendo no seu bojo, com mais sutileza, seus considerandos específicos, como é dado á sua natureza.
É deste texto técnico que a produção adquire régua e compasso para executar os trabalhos imprescindíveis da ANALISE TECNICA e do ORÇAMENTO. Condição para se ter um projeto pronto.
A ANALISE TECNICA é a dissecação do roteiro, seqüência por seqüência, plano por plano, uma garimpagem em regra, anotando-se tudo que está no script em todas cenas, seja no SET ou nos cenários naturais.Não podemos perder a oportunidade de dizer que é uma tarefa maçante são ossos do ofício.
O ORÇAMENTO, como é da sua natureza, espelha o custo da produção. Á luz da matemática os cálculos não devem mentir. Mas não é nada incomum às surpresas e calafrios causado pelo valor final apurado, quando se traduz o custo do filme em questão. E evidente que este particular frisson diz respeito basicamente ao roteiro visando a uma realização calcada no baixo orçamento. É sabido que mesmo os projetos concebidos para uma peregrinação franciscana, despidos de extravagâncias, apesar de modestos , são custosos. Cinema é uma arte cara.
O roteiro, no que pese a sua registrada importância, não tem luz própria, não é um fim em si mesmo, qualquer grau de valor que lhe venha a ser atribuído, de mediano a excelente, ele só terá vida se for filmado. É no escurinho do cinema, na luminosidade das telas que ele se salva de virar um objeto, no mínimo, incolor e inodoro. Porque sua natureza é pertencente a área meio. Peça motriz, mas não linguagem artística.
Também o script não possui qualquer tipo de poção mágica capaz de garantir o resultado do filme. Roteiros inexpressivos já renderam boas fitas, assim como, outros alçados a níveis ideais , decepcionaram no produto final. Mas, pelo sim e pelo não, a coisa mais inteligente é ter ás mãos um roteiro bem urdido. O script ruim atrai o mau agouro e costuma levar as filmagens para o atoleiro. É recomendável escrever, reescrever, vezes muitas, a peça que vai ser a bússola, patuá, conselheiro e guia, quando for a hora e a vez de acontecer a difícil e imprevisível viajem de toda expedição que sai por aí, no contrato de risco que marca a aventura de fazer um filme. O bom roteiro sempre pode soprar ventos favoráveis para que LA NAVE VA...
É sempre de bom alvitre, ter bem claro na mente que, entre o roteiro escrito e a realização do filme, há um fosso onde cabem todos os abismos.
É sabido que os grandes estúdios de Holywood sempre tiveram devoção mística pelos textos técnicos chamados roteiro, ao ponto de contratarem espiões para acompanhar as rodagens e relatar, para os cartolas das usinas de sonhos, que as ordens de filmar todos os itens do script foram cumpridas.
Por serem devotos das escrituras sagradas do roteiro, os americanos, que são pragmáticos por excelencia, astuciaram um método curioso para cronometrar, com margem de erro mínimo, o tempo de duração de um filme, mesmo estando ainda em estado de escritos cunhados em papel. Como o ovo de Colombo, a receita é simples: digitar em PAPEL CARTA , FONTE COURIER, 12, formatado com três centímetros subtraídos da parte superior e inferior , 4 cm na margem esquerda e 3 cm na direita. Elaborado nesta técnica especifica do roteiro moderno, por incrível que pareça, no computo geral, cada página do scipt se traduzirá em um minuto de filme, podendo-se mensurar a duração do mesmo ainda no papel.
A gênese de todo projeto cinematográfico é, seguramente, o roteiro. Na condição de ferramenta máter, é através dele que se espelha o desenho do filme a ser rodado.
O cinema, neste mais de um século de existência luminosa, passou por várias conquistas técnicas, entre elas as marcantes transformações de mudo pra falado, de preto-e-branco para colorido. O roteiro também se modernizou. Deixou de ser um tratado técnico carrancudo, fazendo por merecer a alcunha de script de ferro, quando se despojou dos grilhões das suas indicações ditatoriais, tornando-se um texto mais enxuto. De toda maneira continuou trazendo no seu bojo, com mais sutileza, seus considerandos específicos, como é dado á sua natureza.
É deste texto técnico que a produção adquire régua e compasso para executar os trabalhos imprescindíveis da ANALISE TECNICA e do ORÇAMENTO. Condição para se ter um projeto pronto.
A ANALISE TECNICA é a dissecação do roteiro, seqüência por seqüência, plano por plano, uma garimpagem em regra, anotando-se tudo que está no script em todas cenas, seja no SET ou nos cenários naturais.Não podemos perder a oportunidade de dizer que é uma tarefa maçante são ossos do ofício.
O ORÇAMENTO, como é da sua natureza, espelha o custo da produção. Á luz da matemática os cálculos não devem mentir. Mas não é nada incomum às surpresas e calafrios causado pelo valor final apurado, quando se traduz o custo do filme em questão. E evidente que este particular frisson diz respeito basicamente ao roteiro visando a uma realização calcada no baixo orçamento. É sabido que mesmo os projetos concebidos para uma peregrinação franciscana, despidos de extravagâncias, apesar de modestos , são custosos. Cinema é uma arte cara.
O roteiro, no que pese a sua registrada importância, não tem luz própria, não é um fim em si mesmo, qualquer grau de valor que lhe venha a ser atribuído, de mediano a excelente, ele só terá vida se for filmado. É no escurinho do cinema, na luminosidade das telas que ele se salva de virar um objeto, no mínimo, incolor e inodoro. Porque sua natureza é pertencente a área meio. Peça motriz, mas não linguagem artística.
Também o script não possui qualquer tipo de poção mágica capaz de garantir o resultado do filme. Roteiros inexpressivos já renderam boas fitas, assim como, outros alçados a níveis ideais , decepcionaram no produto final. Mas, pelo sim e pelo não, a coisa mais inteligente é ter ás mãos um roteiro bem urdido. O script ruim atrai o mau agouro e costuma levar as filmagens para o atoleiro. É recomendável escrever, reescrever, vezes muitas, a peça que vai ser a bússola, patuá, conselheiro e guia, quando for a hora e a vez de acontecer a difícil e imprevisível viajem de toda expedição que sai por aí, no contrato de risco que marca a aventura de fazer um filme. O bom roteiro sempre pode soprar ventos favoráveis para que LA NAVE VA...
É sempre de bom alvitre, ter bem claro na mente que, entre o roteiro escrito e a realização do filme, há um fosso onde cabem todos os abismos.
É sabido que os grandes estúdios de Holywood sempre tiveram devoção mística pelos textos técnicos chamados roteiro, ao ponto de contratarem espiões para acompanhar as rodagens e relatar, para os cartolas das usinas de sonhos, que as ordens de filmar todos os itens do script foram cumpridas.
Por serem devotos das escrituras sagradas do roteiro, os americanos, que são pragmáticos por excelencia, astuciaram um método curioso para cronometrar, com margem de erro mínimo, o tempo de duração de um filme, mesmo estando ainda em estado de escritos cunhados em papel. Como o ovo de Colombo, a receita é simples: digitar em PAPEL CARTA , FONTE COURIER, 12, formatado com três centímetros subtraídos da parte superior e inferior , 4 cm na margem esquerda e 3 cm na direita. Elaborado nesta técnica especifica do roteiro moderno, por incrível que pareça, no computo geral, cada página do scipt se traduzirá em um minuto de filme, podendo-se mensurar a duração do mesmo ainda no papel.
E por falar em roteiros não podemos perder de vista o perigo que representam quando não são filmados, eles adentrarão na mente dos seus criadores, tornando-os obsessivos, zumbis vagando sem destino, falando sozinhos. Estes scripts farão às vezes de almas penadas, azucrinando e assombrando, pela vida afora aqueles a quem de direito... Vade Retro...
Cascalho, o filme e a sua circunstancia
Já, há algum tempo, a idéia de trabalhar uma adaptação e um roteiro para filmar o romance clássico de Herberto Sales, Cascalho, formigava na nossa cabeça. Quando a Academia de Letras da Bahia promoveu os dias festivos, com a presença do autor, em comemoração aos cinqüenta anos da publicação da primeira edição de Cascalho, tivemos oportunidade de conhecer o escritor, em carne e osso. Algumas vezes estivemos juntos e participamos de grandes bates-papos, daí veio a chance de falar sobre a possibilidade de roteirizar a sua obra. A resposta foi: “escreva e me mande”. Dado o sinal, foi só arregaçar as mangas e mandar ver. A dedicação foi de tempo integral. Uma tarefa espinhosa. A adaptação foi a parte mais sofrida, tínhamos de mexer na estrutura do livro, invadir o espaço sagrado da criação literária, estávamos metamorfoseando uma linguagem para outra, mudando o reino das palavras para o cetro das imagens. Enfim, concluímos esta tarefa agônica e remetemos o que seria um primeiro tratamento de roteiro, um volume encadernado. Em mais ou menos uma semana, pelo telefone, Herberto, com alegria na voz, batia o martelo da aprovação, o livro estava à nossa disposição.
As primeiras medidas foram dirigidas aos meios que considerávamos democráticos, ou seja, as Leis de Incentivo, a Ruanet e a do Audio-Visual, baseadas em renuncias fiscais do Governo Federal. As benesses destas Leis, tivemos a infelicidade de aprender, foram, quase que totalmente, griladas por grupos ligados às grandes Empresas de publicidade e por delfins do poder financeiro e político. Labutando nesta seara, por anos a fio, em torno de sete, semeamos em terra maninha, com resultado noves-fora-zero.
O Governo da Bahia, através da Secretaria de Cultura e Turismo, instituiu um concurso público de roteiros cinematográficos, intitulado: Fernando Coni Campos. O Edital estipulava uma verba de 1.100.00, 00 (um milhão e cem mil reais) para a realização de um filme de longa-metragem. Um único projeto seria escolhido. Fomos premiados.
Com este dinheiro Sabíamos, todo o tempo, as dificuldades que iríamos encontrar. Nosso projeto passava-se na década de trinta, tratava-se pois, de uma película de época. Nossa idéia sempre foi de um filme de baixo orçamento, ao mesmo tempo que levávamos em alta conta a esperança de conseguir captar alguma coisa via Leis de Incentivo. Tudo nos desafiava, figurinos, adereços, mobiliários, etc, somado às transformações das conquistas do tempo, energia elétrica, postes, fiações, transportes motorizados, etc,etc. Iríamos “rodar” em locações de difícil acesso, parte do trabalho seria fotografado debaixo da terra, nas famosas Grunas. Todos os planos, tomada por tomada, foram acompanhados pelo processo de gravação em Som-Direto-Digital, o que não admitia qualquer ruído ou efeito sonoro não compatível com o período histórico em que se passava a narrativa filmada. Melhor explicando, a cidade de Andaraí, nas Lavras Diamantinas, funcionou como um perfeito Estúdio de Cinema. A população, como um todo, formou uma parceria completa com a equipe e, mais que isso, foram coniventes e cúmplices com o nosso sonho de realizar o filme.
É preciso não perder de vista que o fantasma das dificuldades era a verba curta disponível. As filmagens foram completadas. Deus sabe como! com um terço do dinheiro necessário para contemplar a empreitada que enfrentamos. Para tanto não fizemos nenhuma mágica, apenas assinamos um contrato de risco, de acordo com a circunstancia da dura realidade, como se dizia num jogo famoso:”pagar para ver”. Rodamos todo o filme em trinta dias úteis. Não foi nem um pouco razoável, mas tínhamos uma só opção: “ pegar ou largar.”
Chegamos à fase de montagem e finalização do filme estropiados como retirantes. Um outro concurso, instituído pelo Ministério da Cultura, deu-nos uma providencial ajuda para a reta final . Sempre numa caminhada, autenticamente, franciscana conseguimos chegar à primeira cópia. Entretanto, sem processar o Som-Dolby-Digital. A grana faltou para este importantíssimo complemento.
O filme CASCALHO, mesmo com a desvantagem de não possuir o Som-Dolby, foi inscrito no 37 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e, entre os trinta e seis concorrentes, ficou entre os seis, selecionados para a mostra principal. Vale registrar que, foi o único filme fora do eixo Rio-São Paulo, sendo dois de SP, três do RJ e um da BA. Daí seguimos adiante. Participamos do Primeiro Festival Macapá de Cinema e Vídeo, em 2005, conquistando o Troféu Equinócio como o Melhor filme de longa-metragem, com o nosso Cascalho.
Nos anos de 65 e 66, Cascalho participou, sempre a convite, de inúmeras mostras nacionais. Com o objetivo de não deixar o filme morrer por esquecimento, estivemos presentes nestes acontecimentos, conhecendo públicos novos, dialogando com os espectadores, colhendo opiniões que, para nossa grande alegria reverteram-se sempre favoráveis ao nosso filme. Continuamos insistindo na captação de recursos para habilitar o filme para o mercado comercial, conseguir adentrar o escurinho do cinema. A ausência do sistema Dolby é o principal entrave. Sem este dispositivo técnico as salas de projeção não o exibem. Neste momento estamos tentando, com a Petrobrás, conseguir os recursos para a aplicação desta remasterização moderna do som, o Dolby. O valor total do gasto para se obter este item técnico, por nos tão enfatizado, representa menos que 1% (um por cento) do valor dos gastos totais com a realização do filme em questão.
A arte cinematográfica jamais teve vocação para a clandestinidade. O filme tem de ser projetado para o público, seja lá qual for, o habitat natural da película filmica é a luminosidade das telas dos cinemas. Qualquer outra solução nada mais é que o atestado de óbito com a seguinte especificação: Morreu na Praia!!!
Tuna Espinheira
Tuna Espinheira é cineasta, Roteirista, Produtor e Diretor do Longa-Metragem: CASCALHO. E-mail: tunaespinheira@terra.com.br
A sintonia fina de Cascalho
*Ângela Vilma
No ano em que o clássico romance Cascalho (1944), do baiano Herberto Sales, completa sessenta anos, o cineasta Tuna Espinheira realiza um sonho de quase dez anos – filma Cascalho. A persistência venceu, assim como o romance continua vencendo, nesses silenciosos sessenta anos, o esquecimento da mídia e da academia. Agora, juntos, filme e romance se mostram a espectadores e leitores, para as mais inventivas leituras, proporcionadas pelo diálogo entre literatura e cinema.
Diante do filme, obviamente muitas discussões são retomadas. Principalmente aquela que defende a fidelidade à obra literária, quando de sua adaptação para o cinema. Ora, sabemos o quanto são diferentes e específicas as linguagens e encenações que envolvem essas duas artes. Diríamos, de uma maneira generalizadora, e quase óbvia, que no cinema há a linguagem da “extrema” visibilidade da imagem; tudo é visto (ou quase-tudo), num contraponto à leitura do livro, na qual vê-se tudo também, mas pelas fendas das imagens individualmente criadas. A fim de fundi-las, poderíamos assinalar que ambas, literatura e cinema, apesar das distinções, se encontram na comunhão da visibilidade. O que difere é o fato do filme deslocar o texto da “imobilidade” da página para a movimentação da tela, num recorte de leitura proveniente da percepção do diretor e do roteirista.
Ao assistirmos Cascalho, o filme, cenários, fotografias, personagens, sensações, que tão bem registraram a cor local (Andaraí - Chapada Diamantina, década de 30) no romance de Herberto Sales, surgem na tela e nos incitam a percorrer a leitura do livro, aberta pelo diretor e roteirista, Tuna Espinheira, e possibilitada pelas magias da película. O romance tem, como o próprio Herberto definiu, “uma ação continua e múltipla”, e, como completou Adonias Filho, tão “ampla como uma roda em pleno movimento”.
Essa simultaneidade, expressa “ebulição humana do garimpo”, é agora visualizada no filme, numa intensidade tão bem sintonizada por Tuna, transportando-nos àquele ambiente através dos recursos poéticos da imagem em luz e sombra. O universo feérico do garimpeiro, no qual diante da aventureira busca do diamante desnuda-se a exploração e a recompensa de investimento, do pouco dinheiro conquistado, nos gastos perdulários em cabarés, é recortado em meio à bela fotografia da Chapada com seus rios, serras, vales, gerais, numa confluência entre a riqueza, o sonho e a miséria.
Ambientado, pois, no lugar de origem do romance, Andaraí, terra de Herberto Sales, o filme, como declara Tuna Espinheira, é eminentemente baiano. Todos os atores são da Bahia, do possível protagonista ao provável anônimo figurante. A população andaraiense se envolveu em peso a fim de recriar o romance, célebre na região, através da encenação coletiva. Se na década de 40, quando publicado Cascalho, Herberto Sales sentiu-se obrigado a ir embora para o Rio de Janeiro, em decorrência da reação negativa de alguns conterrâneos que se viram focalizados no livro, agora a situação foi totalmente diferente. Os andaraienses queriam estar no romance, ou seja, ser personagens do filme; até aqueles que não aparecem como figurantes, vararam a noite como espectadores, assistindo às filmagens madrugadas adentro. A cidade toda parou a fim de retornar ao passado. Os postes de luz desapareceram, a padaria da esquina voltou a ser, como antes fora, Pensão Grande Líbano, e a loja A Barateira abriu de novo suas portas. O escritor e sua terra se reconciliaram num abraço afetivo, amplo, mágico. Assim, Cascalho surge na tela com, creio eu, o aplauso emocionado de Herberto, onde quer que ele possa estar.
PROTAGONISTAS - O filme reproduz “murais” do cotidiano andaraiense na década de 30, quando coronéis e garimpeiros, prostitutas e comerciantes se lançavam à sorte que traziam os augúrios dos garimpos. As quatro partes que compõem o romance, nas quais simultaneidades de vidas se encontram e se dispersam, mostram-se na película com uma fidelidade que se distingue: nelas por vezes ouvimos frases literais provenientes do livro, em cenas vigorosas como o desacato por parte do jagunço Zé de Peixoto (Jorge Coutinho) ao Coronel Germano (Othon Bastos), seguida pela morte do jagunço em tocaia armada pelos chefes locais, além do enxotamento do promotor (Irving São Paulo) a partir dos versos esculhambadores do “Mineiro-Pau”, terminando com a enchente que surpreende os garimpeiros na gruna.
Como quis e afirmou Tuna Espinheira, o filme mantém “sintonia fina com a alma do texto herbertiano”. Portanto, tal qual no romance, o que poderia ser lido como mero documento de uma época, de um contexto social, ascende ao “registro” da própria condição humana nas mais reflexivas conotações, pois que personagens se deixam ver, tocar, sentir diante da fatalidade de seus destinos.
Nos quadros que se movimentam, pessoas e cenários se fundem em relevância, permeados pelo humor que resvala de cenas memoráveis como as protagonizadas por Wilson Mello, encarnando o médico Dr. Marcolino e seus escarros inesquecíveis; a tibieza do delegado Esquivel (Caco Monteiro), e de seus comparsas, frente ao jagunço Zé de Peixoto e aos chefes locais; a luxúria inoportuna de Quelezinho (Harildo Deda) – irmão do Coronel Germano - , visto descaradamente numa cama de bordel, tomando resoluções a fim de zelar pela “ordem” do município.
Em meio a tantos personagens, o que há mesmo é uma sugestão, também percebida no romance: todos ali são protagonistas. Ou então, talvez seja protagonista a cidade, com sua gente e seus dramas. Porém, um garimpeiro se destaca dos demais: Filó Finança (Lúcio Tranchesi). Sendo o único garimpeiro alfabetizado, Filó sobressai pela consciência da situação a qual se encontra, e rouba a cena pela teatralidade, humor e bonacheirice.
O “homem”, na sua força e irracionalidade (jagunço Zé de Peixoto), na ingenuidade inconseqüente (garimpeiros em geral), na inconsciência da compaixão (coronéis e a “elite” social), tem como emblema a figura picaresca de Filó Finança. E é este fio condutor que beneficia a liberdade do diretor do filme, fazendo-nos perceber as fissuras e os desamparos de todos os homens a partir da imagem, em destaque, de um deles.
Encontrar diamantes nas serras de Andaraí, vendê-los e poder empregar todo o dinheiro nos cabarés com cachaças e mulheres-damas é o sonho do garimpeiro. Sonho que está representado muito bem nas farras de Filó Finança, Neco (Dody Só) e Joaquim Boca-de-Virgem (Berto Filho) ao bamburrarem e ao gastarem tudo na quermesse de Nossa Senhora da Glória. Esse mundo onírico, onde se pode fazer tudo que o dinheiro permite, move aquele seres pela gruna, espécie de gruta, “um rombo dentro da noite, como se fosse a própria serra escancarando a boca num grito impossível”, à cata de diamantes e carbonatos. A gruna, simbolizadora da morte nas Lavras Diamantinas, semelhante ao “interior de uma sepultura”, mostra-se, em toda a sua dimensão, como imagem, unindo o desenlace tanto do romance quanto do filme. Porém, é no pormenor da morte de Filó Finança que o filme redimensiona o livro, transcendendo tanto a palavra quanto a imagem.
VIDA E MORTE - O romance é finalizado com a agonia na gruna, pois a enchente desaba sobre ela e sobre Filó, Neco e Joaquim. Os dois últimos se salvam, porém Filó sucumbe. Mais uma vez a “cheia” levou “apenas um homem”, dirá novamente o garimpeiro Justino ao Coronel Germano. O narrador afirma, no último parágrafo, que “era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia”. Filó Finança morre e “acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol do cascalho”.
Se a gruna simboliza a morte e a impossibilidade de sanar as misérias daquela ingênua gente, Filó Finança simboliza a esperança, o sonho, as virtualidades de ser. Como figura emblemática, garimpeiro e sonhador, o seu sonho persiste. “A luz de um novo dia derramava sobre a serra”, diz o narrador do romance, e essa frase ressoa nas entrelinhas do filme, porque, independente de qualquer coisa, a vida continua. E, melhor, a vida de Filó continua.
É essa a bela leitura de Tuna Espinheira. Filó Finança, graças ao sortilégio das imagens, das câmeras, das fotografias, ressurge. E seu rosto na tela rompe os enigmáticos elos que a chuva e a gruna estabeleceram com a morte, volvendo, assim, à nossa frente, elegantemente vestido, comandando a sua festa no “Cabaré dos Sonhos”. Dono de tudo, terá para sempre, e quando quiser, a prostituta Rosa (Maria Rosa Espinheira), as cachaças, as danças, arrematando todos os prêmios nos leilões, fazendo “figura” diante da vida e da morte.
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*Ângela Vilma é poeta e contista. Baiana de Andaraí, publicou o livro A tessitura humana da Palavra: Herberto Sales, Contista, pela Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, resultado de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, em 2001.
Em 2005 concluiu e defendeu tese conquistando o doutorado sobre o romance de Herberto Sales.
Já, há algum tempo, a idéia de trabalhar uma adaptação e um roteiro para filmar o romance clássico de Herberto Sales, Cascalho, formigava na nossa cabeça. Quando a Academia de Letras da Bahia promoveu os dias festivos, com a presença do autor, em comemoração aos cinqüenta anos da publicação da primeira edição de Cascalho, tivemos oportunidade de conhecer o escritor, em carne e osso. Algumas vezes estivemos juntos e participamos de grandes bates-papos, daí veio a chance de falar sobre a possibilidade de roteirizar a sua obra. A resposta foi: “escreva e me mande”. Dado o sinal, foi só arregaçar as mangas e mandar ver. A dedicação foi de tempo integral. Uma tarefa espinhosa. A adaptação foi a parte mais sofrida, tínhamos de mexer na estrutura do livro, invadir o espaço sagrado da criação literária, estávamos metamorfoseando uma linguagem para outra, mudando o reino das palavras para o cetro das imagens. Enfim, concluímos esta tarefa agônica e remetemos o que seria um primeiro tratamento de roteiro, um volume encadernado. Em mais ou menos uma semana, pelo telefone, Herberto, com alegria na voz, batia o martelo da aprovação, o livro estava à nossa disposição.
As primeiras medidas foram dirigidas aos meios que considerávamos democráticos, ou seja, as Leis de Incentivo, a Ruanet e a do Audio-Visual, baseadas em renuncias fiscais do Governo Federal. As benesses destas Leis, tivemos a infelicidade de aprender, foram, quase que totalmente, griladas por grupos ligados às grandes Empresas de publicidade e por delfins do poder financeiro e político. Labutando nesta seara, por anos a fio, em torno de sete, semeamos em terra maninha, com resultado noves-fora-zero.
O Governo da Bahia, através da Secretaria de Cultura e Turismo, instituiu um concurso público de roteiros cinematográficos, intitulado: Fernando Coni Campos. O Edital estipulava uma verba de 1.100.00, 00 (um milhão e cem mil reais) para a realização de um filme de longa-metragem. Um único projeto seria escolhido. Fomos premiados.
Com este dinheiro Sabíamos, todo o tempo, as dificuldades que iríamos encontrar. Nosso projeto passava-se na década de trinta, tratava-se pois, de uma película de época. Nossa idéia sempre foi de um filme de baixo orçamento, ao mesmo tempo que levávamos em alta conta a esperança de conseguir captar alguma coisa via Leis de Incentivo. Tudo nos desafiava, figurinos, adereços, mobiliários, etc, somado às transformações das conquistas do tempo, energia elétrica, postes, fiações, transportes motorizados, etc,etc. Iríamos “rodar” em locações de difícil acesso, parte do trabalho seria fotografado debaixo da terra, nas famosas Grunas. Todos os planos, tomada por tomada, foram acompanhados pelo processo de gravação em Som-Direto-Digital, o que não admitia qualquer ruído ou efeito sonoro não compatível com o período histórico em que se passava a narrativa filmada. Melhor explicando, a cidade de Andaraí, nas Lavras Diamantinas, funcionou como um perfeito Estúdio de Cinema. A população, como um todo, formou uma parceria completa com a equipe e, mais que isso, foram coniventes e cúmplices com o nosso sonho de realizar o filme.
É preciso não perder de vista que o fantasma das dificuldades era a verba curta disponível. As filmagens foram completadas. Deus sabe como! com um terço do dinheiro necessário para contemplar a empreitada que enfrentamos. Para tanto não fizemos nenhuma mágica, apenas assinamos um contrato de risco, de acordo com a circunstancia da dura realidade, como se dizia num jogo famoso:”pagar para ver”. Rodamos todo o filme em trinta dias úteis. Não foi nem um pouco razoável, mas tínhamos uma só opção: “ pegar ou largar.”
Chegamos à fase de montagem e finalização do filme estropiados como retirantes. Um outro concurso, instituído pelo Ministério da Cultura, deu-nos uma providencial ajuda para a reta final . Sempre numa caminhada, autenticamente, franciscana conseguimos chegar à primeira cópia. Entretanto, sem processar o Som-Dolby-Digital. A grana faltou para este importantíssimo complemento.
O filme CASCALHO, mesmo com a desvantagem de não possuir o Som-Dolby, foi inscrito no 37 Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e, entre os trinta e seis concorrentes, ficou entre os seis, selecionados para a mostra principal. Vale registrar que, foi o único filme fora do eixo Rio-São Paulo, sendo dois de SP, três do RJ e um da BA. Daí seguimos adiante. Participamos do Primeiro Festival Macapá de Cinema e Vídeo, em 2005, conquistando o Troféu Equinócio como o Melhor filme de longa-metragem, com o nosso Cascalho.
Nos anos de 65 e 66, Cascalho participou, sempre a convite, de inúmeras mostras nacionais. Com o objetivo de não deixar o filme morrer por esquecimento, estivemos presentes nestes acontecimentos, conhecendo públicos novos, dialogando com os espectadores, colhendo opiniões que, para nossa grande alegria reverteram-se sempre favoráveis ao nosso filme. Continuamos insistindo na captação de recursos para habilitar o filme para o mercado comercial, conseguir adentrar o escurinho do cinema. A ausência do sistema Dolby é o principal entrave. Sem este dispositivo técnico as salas de projeção não o exibem. Neste momento estamos tentando, com a Petrobrás, conseguir os recursos para a aplicação desta remasterização moderna do som, o Dolby. O valor total do gasto para se obter este item técnico, por nos tão enfatizado, representa menos que 1% (um por cento) do valor dos gastos totais com a realização do filme em questão.
A arte cinematográfica jamais teve vocação para a clandestinidade. O filme tem de ser projetado para o público, seja lá qual for, o habitat natural da película filmica é a luminosidade das telas dos cinemas. Qualquer outra solução nada mais é que o atestado de óbito com a seguinte especificação: Morreu na Praia!!!
Tuna Espinheira
Tuna Espinheira é cineasta, Roteirista, Produtor e Diretor do Longa-Metragem: CASCALHO. E-mail: tunaespinheira@terra.com.br
A sintonia fina de Cascalho
*Ângela Vilma
No ano em que o clássico romance Cascalho (1944), do baiano Herberto Sales, completa sessenta anos, o cineasta Tuna Espinheira realiza um sonho de quase dez anos – filma Cascalho. A persistência venceu, assim como o romance continua vencendo, nesses silenciosos sessenta anos, o esquecimento da mídia e da academia. Agora, juntos, filme e romance se mostram a espectadores e leitores, para as mais inventivas leituras, proporcionadas pelo diálogo entre literatura e cinema.
Diante do filme, obviamente muitas discussões são retomadas. Principalmente aquela que defende a fidelidade à obra literária, quando de sua adaptação para o cinema. Ora, sabemos o quanto são diferentes e específicas as linguagens e encenações que envolvem essas duas artes. Diríamos, de uma maneira generalizadora, e quase óbvia, que no cinema há a linguagem da “extrema” visibilidade da imagem; tudo é visto (ou quase-tudo), num contraponto à leitura do livro, na qual vê-se tudo também, mas pelas fendas das imagens individualmente criadas. A fim de fundi-las, poderíamos assinalar que ambas, literatura e cinema, apesar das distinções, se encontram na comunhão da visibilidade. O que difere é o fato do filme deslocar o texto da “imobilidade” da página para a movimentação da tela, num recorte de leitura proveniente da percepção do diretor e do roteirista.
Ao assistirmos Cascalho, o filme, cenários, fotografias, personagens, sensações, que tão bem registraram a cor local (Andaraí - Chapada Diamantina, década de 30) no romance de Herberto Sales, surgem na tela e nos incitam a percorrer a leitura do livro, aberta pelo diretor e roteirista, Tuna Espinheira, e possibilitada pelas magias da película. O romance tem, como o próprio Herberto definiu, “uma ação continua e múltipla”, e, como completou Adonias Filho, tão “ampla como uma roda em pleno movimento”.
Essa simultaneidade, expressa “ebulição humana do garimpo”, é agora visualizada no filme, numa intensidade tão bem sintonizada por Tuna, transportando-nos àquele ambiente através dos recursos poéticos da imagem em luz e sombra. O universo feérico do garimpeiro, no qual diante da aventureira busca do diamante desnuda-se a exploração e a recompensa de investimento, do pouco dinheiro conquistado, nos gastos perdulários em cabarés, é recortado em meio à bela fotografia da Chapada com seus rios, serras, vales, gerais, numa confluência entre a riqueza, o sonho e a miséria.
Ambientado, pois, no lugar de origem do romance, Andaraí, terra de Herberto Sales, o filme, como declara Tuna Espinheira, é eminentemente baiano. Todos os atores são da Bahia, do possível protagonista ao provável anônimo figurante. A população andaraiense se envolveu em peso a fim de recriar o romance, célebre na região, através da encenação coletiva. Se na década de 40, quando publicado Cascalho, Herberto Sales sentiu-se obrigado a ir embora para o Rio de Janeiro, em decorrência da reação negativa de alguns conterrâneos que se viram focalizados no livro, agora a situação foi totalmente diferente. Os andaraienses queriam estar no romance, ou seja, ser personagens do filme; até aqueles que não aparecem como figurantes, vararam a noite como espectadores, assistindo às filmagens madrugadas adentro. A cidade toda parou a fim de retornar ao passado. Os postes de luz desapareceram, a padaria da esquina voltou a ser, como antes fora, Pensão Grande Líbano, e a loja A Barateira abriu de novo suas portas. O escritor e sua terra se reconciliaram num abraço afetivo, amplo, mágico. Assim, Cascalho surge na tela com, creio eu, o aplauso emocionado de Herberto, onde quer que ele possa estar.
PROTAGONISTAS - O filme reproduz “murais” do cotidiano andaraiense na década de 30, quando coronéis e garimpeiros, prostitutas e comerciantes se lançavam à sorte que traziam os augúrios dos garimpos. As quatro partes que compõem o romance, nas quais simultaneidades de vidas se encontram e se dispersam, mostram-se na película com uma fidelidade que se distingue: nelas por vezes ouvimos frases literais provenientes do livro, em cenas vigorosas como o desacato por parte do jagunço Zé de Peixoto (Jorge Coutinho) ao Coronel Germano (Othon Bastos), seguida pela morte do jagunço em tocaia armada pelos chefes locais, além do enxotamento do promotor (Irving São Paulo) a partir dos versos esculhambadores do “Mineiro-Pau”, terminando com a enchente que surpreende os garimpeiros na gruna.
Como quis e afirmou Tuna Espinheira, o filme mantém “sintonia fina com a alma do texto herbertiano”. Portanto, tal qual no romance, o que poderia ser lido como mero documento de uma época, de um contexto social, ascende ao “registro” da própria condição humana nas mais reflexivas conotações, pois que personagens se deixam ver, tocar, sentir diante da fatalidade de seus destinos.
Nos quadros que se movimentam, pessoas e cenários se fundem em relevância, permeados pelo humor que resvala de cenas memoráveis como as protagonizadas por Wilson Mello, encarnando o médico Dr. Marcolino e seus escarros inesquecíveis; a tibieza do delegado Esquivel (Caco Monteiro), e de seus comparsas, frente ao jagunço Zé de Peixoto e aos chefes locais; a luxúria inoportuna de Quelezinho (Harildo Deda) – irmão do Coronel Germano - , visto descaradamente numa cama de bordel, tomando resoluções a fim de zelar pela “ordem” do município.
Em meio a tantos personagens, o que há mesmo é uma sugestão, também percebida no romance: todos ali são protagonistas. Ou então, talvez seja protagonista a cidade, com sua gente e seus dramas. Porém, um garimpeiro se destaca dos demais: Filó Finança (Lúcio Tranchesi). Sendo o único garimpeiro alfabetizado, Filó sobressai pela consciência da situação a qual se encontra, e rouba a cena pela teatralidade, humor e bonacheirice.
O “homem”, na sua força e irracionalidade (jagunço Zé de Peixoto), na ingenuidade inconseqüente (garimpeiros em geral), na inconsciência da compaixão (coronéis e a “elite” social), tem como emblema a figura picaresca de Filó Finança. E é este fio condutor que beneficia a liberdade do diretor do filme, fazendo-nos perceber as fissuras e os desamparos de todos os homens a partir da imagem, em destaque, de um deles.
Encontrar diamantes nas serras de Andaraí, vendê-los e poder empregar todo o dinheiro nos cabarés com cachaças e mulheres-damas é o sonho do garimpeiro. Sonho que está representado muito bem nas farras de Filó Finança, Neco (Dody Só) e Joaquim Boca-de-Virgem (Berto Filho) ao bamburrarem e ao gastarem tudo na quermesse de Nossa Senhora da Glória. Esse mundo onírico, onde se pode fazer tudo que o dinheiro permite, move aquele seres pela gruna, espécie de gruta, “um rombo dentro da noite, como se fosse a própria serra escancarando a boca num grito impossível”, à cata de diamantes e carbonatos. A gruna, simbolizadora da morte nas Lavras Diamantinas, semelhante ao “interior de uma sepultura”, mostra-se, em toda a sua dimensão, como imagem, unindo o desenlace tanto do romance quanto do filme. Porém, é no pormenor da morte de Filó Finança que o filme redimensiona o livro, transcendendo tanto a palavra quanto a imagem.
VIDA E MORTE - O romance é finalizado com a agonia na gruna, pois a enchente desaba sobre ela e sobre Filó, Neco e Joaquim. Os dois últimos se salvam, porém Filó sucumbe. Mais uma vez a “cheia” levou “apenas um homem”, dirá novamente o garimpeiro Justino ao Coronel Germano. O narrador afirma, no último parágrafo, que “era de manhã, e a luz de um novo dia derramava sobre a serra, quando retiraram o corpo de dentro da areia”. Filó Finança morre e “acima do córrego, guarnecido por um corte de pedras secas, elevava-se contra a claridade do céu um monte de terra escura. Era o paiol do cascalho”.
Se a gruna simboliza a morte e a impossibilidade de sanar as misérias daquela ingênua gente, Filó Finança simboliza a esperança, o sonho, as virtualidades de ser. Como figura emblemática, garimpeiro e sonhador, o seu sonho persiste. “A luz de um novo dia derramava sobre a serra”, diz o narrador do romance, e essa frase ressoa nas entrelinhas do filme, porque, independente de qualquer coisa, a vida continua. E, melhor, a vida de Filó continua.
É essa a bela leitura de Tuna Espinheira. Filó Finança, graças ao sortilégio das imagens, das câmeras, das fotografias, ressurge. E seu rosto na tela rompe os enigmáticos elos que a chuva e a gruna estabeleceram com a morte, volvendo, assim, à nossa frente, elegantemente vestido, comandando a sua festa no “Cabaré dos Sonhos”. Dono de tudo, terá para sempre, e quando quiser, a prostituta Rosa (Maria Rosa Espinheira), as cachaças, as danças, arrematando todos os prêmios nos leilões, fazendo “figura” diante da vida e da morte.
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*Ângela Vilma é poeta e contista. Baiana de Andaraí, publicou o livro A tessitura humana da Palavra: Herberto Sales, Contista, pela Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, resultado de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, em 2001.
Em 2005 concluiu e defendeu tese conquistando o doutorado sobre o romance de Herberto Sales.
3 comentários:
Setaro,
Gostei muito da explanação de Tuna sobre os percalços para se fazer, na Bahia, um filme de longa metragem. Que bom você ter colocado em seu blog!
Caros bahianos!
Não é só na Bahia que o cidadão que queira produzir um filme sofre não! Em São Paulo conheço gente chorando a muito tempo. Vou lhe dizer.Se você não é amigo do poder. Se voce não almoçar com gil. Esqueça.....Hoje gil .Amanhã qualquer outro que tenha a coroa...
Vi "Cascalho" ontem. Apesar de toda a carreira e dos prêmios de Tuna Espinheira como documentarista, do qual não tive oportunidade de ver nada, "Cascalho" é um filme fraco, de narrativa frouxa, sem viço. As linhas dramáticas são mal desenvlvidas, fazendo que os desfechos percam a força que naturalmente teriam. A impressão que fica é que deve ser um belo livro, nada mais que isso. Um filme inespreciso, não fosse pela heróico feito de ser produzido na Bahia.
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