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24 abril 2007

Arte versus Comércio



Ronaldo Leite Filho, hitchcockiano por vocação e devoção, gosta muito de cinema. Conhece como poucos a filmografia do mestre Hitch. E é um cinemeiro, que sabe apreciar um bom espetáculo cinematográfico. Escreveu o texto que vai abaixo. Que faço questão de publicar mesmo sem a autorização devida do autor. Que, além de um conhecedor de cinema, é cervejeiro, pessoa capaz de acabar com o estoque de um bar. Quando Ronaldo Leite senta para tomar uma cerveja, os proprietários de bares soteropolitanos ficam assustados, com medo de perder outros clientes, caso os estoques estejam baixo.
"Com a dificuldade de inserção dos filmes europeus e asiáticos nas salas de exibição, em função da predominância do filmes hollywoodianos, criou-se então o rótulo "cinema de arte" para essas produções marginais ao mainstream. Esse artifício – surgido graças também ao advento da Nouvelle Vague –, de caráter marcadamente mercadológico, acabou surtindo efeito em parte do público, criando um nicho de mercado; e, mais do que isso, enraizou-se no senso-comum, levando o público a acreditar que realmente existe um cinema "de arte", não contaminado por questões financeiras e comerciais, como as produções hollywoodianas.
Para ilustrar e pensar esta problemática, o trabalho vai analisar a posição de críticas de dois filmes bastante exemplares: A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the RingsThe Fellowship of the Ring); o primeiro é o típico filme visto, como filme de arte, porque europeu e dirigido pelo cineasta francês Claude Chabrol, egrégio da Nouvelle Vague. O segundo, por sua vez, é um filme imediatamente tido como comercial, afinal, uma caríssima superprodução, um épico de aventura, com o apoio de pesada campanha publicitária. A partir desses dois filme e as críticas correspondentes, pretende-se compreender o processo que levou à distinção entre "cinema de arte" e "cinema comercial", entre arte e entretenimento, entre a "alta cultura" e a tida como descartável.
O primeiro equívoco quando se pensa essa distinção é nitidamente conceitual: existe sim, a arte do cinema, não o cinema de arte; pode-se julgar um filme como melhor que outros, mas todos são produções cinematográficas e, portanto, frutos de uma mesma forma de expressão, o cinema.
O segundo erro é pensar a produção artística possível de forma completamente autônoma, livre de quaisquer amarras ou constrições. No campo cinematográfico, que é o foco deste estudo, especificamente, todas as produções possuem uma dimensão material – financeira, mercadológica etc – e uma dimensão artística – criativa, estética etc. O que varia de uma obra para outra é o grau de atuação de uma ou outra dimensão, não sua natureza; de fato, não há um tipo de produção artístico por excelência e outro apenas comercial (Herscovice).
Tal pensamento equivocado serviu apenas para reforçar preconceitos, de ordem ideológica - uma das formas mais descartáveis de julgamento - e estética contra Hollywood, principalmente. Diz-se, por exemplo, que um filme é dispensável por ter exigido uma produção cara, por ter um sujeito como Spielberg, Eastwood, Zemeckis ou algum americano típico na direção, por não conter mensagens ideológicas ou existencialistas, além de uma série de outras exigências tolas e infundadas.
Mesmo antes do advento da Indústria Cultural – não exatamente nos moldes adornianos e todos os seus exageros e simplificações (Adorno, 1978) – o campo artístico não poderia ser considerado livre e autônomo. Os artistas – que nem sempre tiveram o status atual – já foram dependentes dos mecenas, da Igreja, dos Senhores e Nobres e, hoje, dependem de um outro tipo de entidade: o mercado, essa esfera de troca na qual depende-se primordialmente da demanda.
O fato é que entre os séculos XVII e XIX os artistas passaram a ser vistos como atores diferenciados no corpo social. Ultrapassaram a condição de meros artesões, técnicos, que construíam objetos que tivessem valor de uso, que refletissem as idéias da Igreja ou contribuíssem para legitimar figuras sociais de destaque, como os aristocratas. Houve uma sacralização da obra artística, destruída no século XX, segundo Walter Benjamin (1978), para o qual a obra de arte perdeu a aura na época de sua reprodutibilidade técnica. Com essa sacralização, entrou em voga a concepção do artista enquanto ser iluminado, que cria por si só, alheio as contaminações mundanas, como a interferência do capital.
Com a inserção aparentemente plena da arte no campo mercantil pela Indústria Cultural, muitos – principalmente os frankfurtianos – entenderam que a arte foi maculada, deixando de ser a velha arte, estética por excelência, bela, fruto de um trabalho criativo de uma mente livre. Os artistas, no entanto, continuam fazendo uso de sua criatividade e conhecimento lingüístico para compor suas obras, mas para atingirem os possíveis apreciadores têm de seguir certas regras do jogo mercadológico, que impõem certos limites, certos tipos de formatos e conteúdos. Repetindo, o que varia é o grau de atuação de cada um desses dois lados da produção artística. Em suma, a rígida distinção entre arte e comércio é uma falácia; há sim um embate, uma negociação entre as duas esferas, mediada por artistas e produtores culturais.
A partir de tais considerações foi feita a escolha dos filmes A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat) e O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring), pois cada um é muito característico das visões simplistas acerca da produção cinematográfica e suas implicações mercadológicas.
Ainda com relação a Hollywood, um fator que sempre contribuiu para o – apenas aparente – esvaziamento estético de Hollywood é o chamado star system. A glamourização dos atores, transformando-os, na verdade, em personagens que interpretam outros personagens apenas reforça o forte caráter mercantilista das relações de produção do mundo do cinema (Hitchcock, 1998). O fato é que tal expediente é adotado em diversas outras produções de outros países, ainda que em grau, em geral, muito menor. A própria Isabelle Hupert, que atua em A Teia de Chocolate possui já o status de estrela do cinema, funcionando, conseqüentemente, como chamariz de bilheteria, mesmo não havendo na França um sistema de construção de estrelas como há nos Estados Unidos.
O Senhor dos Anéis, por sua vez, além de fazer uso intenso e claro de astros e estrelas – Ian Mackellen, Cate Blanchett, Liv Tyler, Christopher Lee e Elijah Wood, por exemplo –, tem toda uma concepção artística por trás de sua construção, aparentemente, apenas comercial, como se fosse um produto "enlatado" para o consumo da massa. Este caso, especificamente, trata-se de uma adaptação cinematográfica de um romance de moldes clássicos, seguindo a trama e a construção dos personagens o mais fielmente possível.
A relativização e o questionamento desse senso-comum se fazem de suma importância. A Indústria Cultural – cuja definição de Adorno e Horkheimer pode e deve ser problematizada – não transformou por completo a obra de arte em produto mercantil, nem tampouco os artistas já foram seres especiais, que produziam em um estado de alheamento ascético do mundo. Um filme não é necessariamente descartável pelo simples fato de ser resultado de uma empreitada cara, fruto de uma visão mercadológica para atingir um público-alvo, mas também não é garantia alguma de qualidade a suposta liberdade que tem um cineasta ao realizar filmes com pequeno orçamento e fora do esquema hollywoodiano."
Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica,
in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra, 1978.
HERSCOVICE, Alain. As Especificidades do Campo Cultural, in Autonomia do
Campo Cultural.
HITCHCOCK, Alfred. Precisamos de Estrelas?, in GOTTLIEB, Sidney. Hitchcock
por Hitchcock, Rio de Janeiro, Ed: Imago, 1998.
HORKHEIMER, M; ADORNO, T. A Indústria Cultural – O Iluminismo como
Mistificação de Massa, in Teoria da Cultura de Massa, LIMA, L. C., Paz e Terra,
1978.
Ficha técnica dos filmes:
A Teia de Chocolate (Merci pour le Chocolat), França/Suíça/Espanha, 2000, 99min. Direção: Claude Chabrol. Roteiro: Claude Chabrol e Caroline Eliacheff, baseado no romance de Charlotte Armstrong. Música Original: Matthieu Chabrol. Fotografia: Renato Berta. Montagem: Monique Fardoulis. Cenografia: Ivan Niclass. Elenco: Isabelle Hupert (Marie-Claire), Jacques Dutronc (André Polonski), Anna Mouglalis (Jeanne Pollet), Rodolphe Pauly (Gillaume Polonski), Brigitte Catillon (Louise Pollet), Michel Robin (Dufreigne), Mathieu Simonet (Axel). Produção: Yvon Crenn, Marin Karmitz, Jean-Louis Porchet e Gérard Ruey.

O Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel (The Lord of the Rings – The Fellowship of the Ring), Nova Zelândia/Estados Unidos. 2001, 178min. Direção: Peter Jackson. Roteiro: Frances Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson, baseado no romance homônimo de J. R. R. Tolkien. Música Original: Enya (canções Anyron e May It Be) e Howard Shore. Fotografia: Andrew Lesnie. Montagem: John Gilbert. Cenografia: Grant Major. Elenco: Elijah Wood (Frodo), Ian McKellen (Gandalf), Viggo Mortensen (Aragorn), Sean Astin (Sam), Cate Blanchett (Galadriel), Sean Bean (Boromir), Liv Tyler (Arwen), John Rhys-Davies (Gimli), Billy Boyd (Pippin), Dominic Monaghan (Merry), Orlando Bloom (Legolas Greenleaf) Christopher Lee (Saruman), Hugo Weaving (Elrond), Ian Holm (Bilbo), Andy Serkis (Gollum), Marton Csokas (Celeborn), Graig Parker (Haldir), Lawrence Makoare (Lurtz), Sala Baker (Sauron). Produção: Peter Jackson, Michael Lynne, Mark Ordesky, Barrie M. Osborne, Rick Porras, Tim Sanders, Jamiel Selkirk, Robert Shaye, Ellen Somers, Frances Walsh, Bob Weinstein e Harvey Weinstein.

2 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Está aí, exposto um assunto extremamente complexo. Longo até, eu diria.
A Escola de Frankfurt realmente dissecou e fundamentou a indústria cultural. Mas como uma abordagem bem além do cinema; embora este à época a mais recente das expressões artísticas tenha sido bem o centro da questão.
De fato, no tocante ao texto presente, concordo quase que plenamente que não existe esta obra de arte "pura", sem o menor interesse comercial.
Mas o concreto é que existe mesmo o outro lado da obra simplesmente comercial sem o menor interesse artístico. Esta tem fundamentalmente um interesse apenas comercial. Vivemos isto no Brasil de hoje. Me espanta das salas o fato de haver um reles ator global em qualquer realização. Recusei-me a assistir "Dois filhos de Francisco" porque está centrado em uma dupla execrável. Não consigo ir ao cinema ver a biografia de pessoas as quais considero simplesmente repugnantes. E olha que houve elogios os mais variados, de pensamentos também muito variados.
Não entendi muito claramente o que quiz dizer sobre "O senhor dos anéis". Aliás, li a obra inteira na década de 1970, quando era completamente desconhecida e fiquei apaixonado pelo tema fantasioso de Tolkien. Os filmes são bons, embora muito aquém da obra literária. Mas, aproximam-se.
Bom, vivemos a era do comércio extremo em tudo, do marketing global, da indústria cultural anti-cultura.
Se pararmos para ver o que acontecia nas décadas passadas e o que se passa hoje, chegamos à conclusão que aquilo era "cosquinha" frente ao que acontece hoje. Todos somos manipulados pela grnade mídia de uma forma brutal. O "homem unidimensional" a que se referia Marcuse (outro dos Frankfurtianos) é uma relaidade, numa era em que o "pensamento único" se impõe de uma forma selvagem. Tudo, reflexo da "barbárie"de nossos tempos...

André Setaro disse...

Bravo, Jonga, bravo!!