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18 fevereiro 2007

Impacto e estesia



O dvd de Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone, lançamento em edição especial, que já saiu há algum tempo, cheia de extras, é, simplesmente, uma beleza. O filme, com o passar do tempo – é de 1968, ficou ainda melhor, não perdendo em nada do seu impacto inicial, quando o vi pela primeira vez na gigantesca tela do cinema Tupy em cópia de 70mm. Ainda que a dimensão da tela doméstica não possua o mesmo poder de envolvimento e êxtase – sim, é a palavra correta em se tratando de uma obra-prima como essa, momento, sem exagero, de rara inspiração em toda a história da arte do filme, vejo Era uma vez no Oeste como se fosse uma sinfonia, como se uma música de imagens. A partitura do maestro Ennio Morricone está tão entrosada no filme que faz parte dele, e, neste caso, poderia dizer que Morricone é uma espécie assim de co-autor da obra da mesma maneira que Michel Legrand o é de Os guarda-chuvas do amor, de Jacques Demy. Morricone, com sua extraordinária musicalidade, exerce, aqui, em Era uma vez no Oeste, não apenas uma complementação da narrativa, mas uma mise-en-musique. E Leone é um esteta, um mestre absoluto, que sintetiza neste western sui generis toda a sua primeira fase constituída de obras que rascunham esta belíssima reflexão sobre a estética westerniana num prisma novo e insinuante, apátrida, singular e original. Quem viu Por uns dólares a mais, Por um punhado de dólares e O bom, o mau e o feio – também conhecido por Três homens em conflito – pode testemunhar que estes filmes são uma anunciação de Era uma vez no Oeste. A sua revisão comprova a magnificência de Sergio Leone que, nos anos 80, com seu canto de cisne, Era uma vez na América, traumatizou toda uma década, realizando uma das maiores obras de toda a história do cinema. Pena que a morte prematura – ia fazer 60 anos – o tenha levado embora.
Morricone compôs quatro temas fundamentais destinados a cada um dos personagens principais: Claudia Cardinale, Jason Robards, Charles Bronson e Henry Fonda – magnífico no papel de vilão, cínico, cruel, frio, super maquiado, super estilizado, capaz de matar até criancinhas com irrepreensível sangue frio. Quando os personagens se cruzam, as partituras também entram em rodízio com um resultado impressionante em se tratando da relação música e imagem. A seqüência inicial, de abertura, é uma obra-prima à parte, que mostra a espera, por três pistoleiros, em uma velha e encardida estação, da chegada do trem. Morricone chegou a compor um tema, mas desistiu e, influenciado por John Cage – para quem todo ruído num concerto é música, fez dos ruídos uma espécie de sinfonia. Assim, o estalar dos dedos de um dos pistoleiros, a gota d’água que cai modorrenta no chapéu de Woody Strode, a mosca que fica zoando no rosto de Jack Élan, o ranger do moinho, a chegada estrepitosa do trem, etc, formam uma tensão inusitada. Leone tem um sentido de duração que difere da maioria dos cineastas, aproximando-o mais, na utilização do tempo cinematográfico, dos realizadores japoneses. Gosta de alternar extremos close ups com planos gerais de grande amplitude, provocando, com isso, um contraste nos códigos perceptivos. Mas para Leone o rosto humano não é uma face oculta, mas, e principalmente, também uma paisagem. Seus closes demoram na tela, enchendo-a, para perscrutar a alma humana, para adentrar na interioridade dos seres. Tudo é muito estilizado e rigoroso sem perder, contudo, o caráter de introspecção.
O argumento de C’era una volta in West/Once upon a time in West foi escrito a seis mãos: as de Bernardo Bertolucci, o consagrado cineasta de O último tango em Paris, as de Dario Argento, diretor cult de terroríficos e crítico afamado, e as de Sergio Donati, que ficou responsável pela decupagem, além, é claro, da participação de Leone em todas as fases do processo de criação cinematográfica.O dvd é especial mesmo e tem muitos extras, inclusive um documentário precioso com depoimentos de Tonino Delli Colli, o fotógrafo, Alex Cox, Gabrielle Ferzetti, Bertolucci, Claudia Cardinale, Henry Fonda, entre outros. O híbrido Telecine Cult o exibiu criminosamente, há pouco, em full screen (a abominável tela cheia, que me fez, quase, quebrar o aparelho de televisão). Para assistir de joelhos.

4 comentários:

Anônimo disse...

Setaro,
Sabe que Sergio Leone copiou Glauber Rocha em 'Era uma vez no Oeste' no casaco de Henry Fonda, que é inspirado no de Antonio das Mortes de 'O dragão da maldade contra o santo guerreiro'? Leone mesmo, em entrevista ao 'L'osservatore romano' confessa, pouco antes de morrer.

Jonga Olivieri disse...

Pelas barbas do profeta!!!

Revi ontem "Era uma vez no oeste", e acordei hoje a pensar em lhe enviar um e-mail a respeito.

Não é que por uma incrível coincidência você posta no seu blog comentário, justo sobre o filme.

Nada a acrescentar. Apenas elogiar o seu brilhante texto!

Saymon Nascimento disse...

Morricone vai levar Oscar honorário, semana que vem. É mesmo um mestre, com a incrível habilidade de não se restringir a um gênero. Na verdade, ele chega a elevar os filmes a um status superior. Mais da metade do nó na garganta do Cinema Paradiso evm de sua música. Outro trabalho notável de sua autoria e que é pouco lembrado é a trilha para A Missão, de Roland Joffé. No filme, é funcional, e ainda sassim brilhante. Ouvida separadamente, em cd ou mp3, uma perfeição.

Anônimo disse...

Morricone faz aumentar a carga emocional de um filme. Concordo com você Saymon: há um 'fortíssimo' que aumenta, pela partitura de Morricone, a emoção das imagens de 'Cinema Paradiso'. Neste particular, como Setaro observou, Michel Legrand é também um co-autor nos filmes de Jacques Demy. E o que dizer de Herrmann com Hitchcock?