A realização de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, em 1964, sobre ser um acontecimento para a consagração do Cinema Novo, traumatiza duramente toda uma geração de cineastas por meio de seu estilo esfuziante determinador de um verdadeiro impacto estético. O filme, que consta da relação do eminente crítico francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema em todos os tempos, está a completar 42 anos de existência, e seu lançamento em DVD, em cópia luminosa, comprova, na revisão, uma atualidade surpreendente ao contrário de outros de sua época datados e envelhecidos. O tempo, comprova-se mais uma vez, é o melhor juiz no julgamento da obra cinematográfica.E, agora, está já nas melhores locadoras o seu maior trabalho, a obra-prima que é Terra em transe.
Filmado em Monte Santo, produzido pelo carioca Jarbas Barbosa, e segundo longa metragem de Glauber Rocha – o primeiro, Barravento (1959/1962), Deus e o diabo na terra do sol surge, no panorama do cinema brasileiro, como um divisor de água, considerando ser uma obra renovadora na sua estrutura narrativa que consolida uma invenção formal inédita entre as películas realizadas no país. Ópera sertaneja ou, talvez, melhor dizendo, concerto barroco, cujas influências alienígenas notórias não poluem o estilo, o filme, no entanto, possui um toque pessoal e uma maneira toda particular na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica.
Há, na estrutura narrativa barroca de Deus e o diabo na terra do sol, a influência da tragédia grega – o cego Júlio como fio condutor; a de John Ford – na exploração dos grandes espaços em planos abertos como na seqüência da morte da mãe do vaqueiro Manoel e o tiroteio que vem a seguir; a de Akira Kurosawa – na gestualística do personagem de Corisco (Othon Bastos), o rodopio quando morre; a de Sergei Eisenstein – a matança dos beatos em Monte Santo por Antonio das Mortes se estrutura de acordo com as coordenadas da montagem eisensteiniana da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin; a de Luis Buñuel – a morte do beato por Rosa dentro da Igreja, entre muitas outras. Se, à primeira vista, isso pode parecer uma colcha de retalhos, na verdade, porém, há uma confluência que se canaliza para uma demonstração estilística particular e própria, instauradora daquilo que se chama de uma escrita glauberiana.
Deus e o diabo na terra do sol é, sem sombra de dúvida, para muitos exegetas, o maior filme do cinema brasileiro, ainda que alguns críticos vejam em Terra em transe um avanço ainda maior (como é o caso, aqui, desse mal escrevinhador). Mas em ambos se verifica uma manifestação no sentido de quebrar a linguagem cinematográfica dos cânones acadêmicos inaugurados por David Wark Griffith com o estabelecimento da montagem narrativa em 1914 com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), e que configuraria, quase como uma norma gramatical, a lei da progressão dramática – apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace. Sergei Eisenstein, na década de 20, em plena efervescência da transformação revolucionária soviética, subverte-a com a teoria da montagem intelectual ou ideológica. Mas o padrão cinematográfico continua sendo o da narrativa griffithiana. Que já nos anos 50 a desdramatização de Rossellini e Antonioni põe em xeque, inaugurando a anti-narrativa, que seria radicalizada nos 60 pelos filmes de Godard & Cia.
Se já em sua obra de estréia, Barravento, se insinua um touch eisensteiniano – na cena em que Firmino (Antonio Pitanga), desesperado, fala a pescadores impassíveis – e se percebe que ele se encontra em outro espaço fílmico, Deus e o diabo na terra do sol constitui-se num amálgama de influências diversas cujo processamento se faz em tom original, podendo ser considerada a primeira obra com a quintessência da escrita glauberiana, já que, em Barravento, Glauber Rocha entrou após um golpe com 2/3 do filme já executados. Mas se, em Deus e o diabo na terra do sol, ainda que haja seqüências que procuram o dinamismo do corte em movimento, a sua maioria, entretanto, é de planos longos, com a câmera a passear entre os personagens, demorando-se na captação de seus gestos e emblemas. O mesmo não vem a acontecer com o processo de criação cinematográfica de Terra em transe, cuja montagem é sincopada, os planos curtos, a câmera sempre acelerada em torno dos personagens e, em alguns casos, sem que, com isso, se apague a marca do autor, a presença da mise-en-scène wellesiana.
Na filmografia glauberiana, percebe-se um realizador sempre em transe, sempre em busca, sempre incomodado, sempre numa procura desesperada da traduzir a realidade brasileira num discurso quase alucinatório, servindo-se do próprio mundo para o recriar de maneira completamente original. O maior cineasta brasileiro? Sim, nenhum outro foi capaz, como ele, de recriar a realidade nacional numa tradução revolucionária. Na obra que se segue a Terra em transe, não considerando, aqui, Câncer – que é o pioneiro do Cinema Underground, embora Glauber nunca tenha assumido esta paternidade, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, o realizador tenta traduzir para as imagens em movimento a linguagem da literatura de cordel numa mistura, poder-se-ia dizer, insólita, com a tragédia transposta para a aridez dos cenários sertanejos.
As duas grandes manifestações da arte glauberiana estão em Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, vindo o cineasta, após estes dois fulgurantes momentos da expressão cinematográfica, a um reprocessamento de suas constantes temáticas que atingiu pleno êxito apenas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O exílio europeu não lhe proporciona um estímulo de renovação nem de equilíbrio como autor, considerando, neste caso que, num autor, não se pode exigir permanente renovação, pois ele se caracteriza pela variação sobre um mesmo tema – Bergman, Fellini, Chaplin, Antonioni, Mizoguchi, Buñuel, et caterva. Mas Cabeças cortadas e O leão de sete cabeças – ou, como queria Glauber, em cinco idiomas: Der leone have sept cabeças, revistos hoje, são simplificações temáticas que culminariam, entre outros filmes, como o genial Di Cavalcanti – uma exceção na segunda fase do autor de Deus e o diabo na terra do sol, no radicalismo da montagem atômica de A idade da terra, canto de cisne do cineasta que viria a morrer num aziago agosto de 1981. Mas, como se costuma dizer, no macrofilme glauberiano, que é toda a sua filmografia, uma obra singular, ainda que menor, não pode ser considerada, por isso, menos importante.
Filmado em Monte Santo, produzido pelo carioca Jarbas Barbosa, e segundo longa metragem de Glauber Rocha – o primeiro, Barravento (1959/1962), Deus e o diabo na terra do sol surge, no panorama do cinema brasileiro, como um divisor de água, considerando ser uma obra renovadora na sua estrutura narrativa que consolida uma invenção formal inédita entre as películas realizadas no país. Ópera sertaneja ou, talvez, melhor dizendo, concerto barroco, cujas influências alienígenas notórias não poluem o estilo, o filme, no entanto, possui um toque pessoal e uma maneira toda particular na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica.
Há, na estrutura narrativa barroca de Deus e o diabo na terra do sol, a influência da tragédia grega – o cego Júlio como fio condutor; a de John Ford – na exploração dos grandes espaços em planos abertos como na seqüência da morte da mãe do vaqueiro Manoel e o tiroteio que vem a seguir; a de Akira Kurosawa – na gestualística do personagem de Corisco (Othon Bastos), o rodopio quando morre; a de Sergei Eisenstein – a matança dos beatos em Monte Santo por Antonio das Mortes se estrutura de acordo com as coordenadas da montagem eisensteiniana da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin; a de Luis Buñuel – a morte do beato por Rosa dentro da Igreja, entre muitas outras. Se, à primeira vista, isso pode parecer uma colcha de retalhos, na verdade, porém, há uma confluência que se canaliza para uma demonstração estilística particular e própria, instauradora daquilo que se chama de uma escrita glauberiana.
Deus e o diabo na terra do sol é, sem sombra de dúvida, para muitos exegetas, o maior filme do cinema brasileiro, ainda que alguns críticos vejam em Terra em transe um avanço ainda maior (como é o caso, aqui, desse mal escrevinhador). Mas em ambos se verifica uma manifestação no sentido de quebrar a linguagem cinematográfica dos cânones acadêmicos inaugurados por David Wark Griffith com o estabelecimento da montagem narrativa em 1914 com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), e que configuraria, quase como uma norma gramatical, a lei da progressão dramática – apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace. Sergei Eisenstein, na década de 20, em plena efervescência da transformação revolucionária soviética, subverte-a com a teoria da montagem intelectual ou ideológica. Mas o padrão cinematográfico continua sendo o da narrativa griffithiana. Que já nos anos 50 a desdramatização de Rossellini e Antonioni põe em xeque, inaugurando a anti-narrativa, que seria radicalizada nos 60 pelos filmes de Godard & Cia.
Se já em sua obra de estréia, Barravento, se insinua um touch eisensteiniano – na cena em que Firmino (Antonio Pitanga), desesperado, fala a pescadores impassíveis – e se percebe que ele se encontra em outro espaço fílmico, Deus e o diabo na terra do sol constitui-se num amálgama de influências diversas cujo processamento se faz em tom original, podendo ser considerada a primeira obra com a quintessência da escrita glauberiana, já que, em Barravento, Glauber Rocha entrou após um golpe com 2/3 do filme já executados. Mas se, em Deus e o diabo na terra do sol, ainda que haja seqüências que procuram o dinamismo do corte em movimento, a sua maioria, entretanto, é de planos longos, com a câmera a passear entre os personagens, demorando-se na captação de seus gestos e emblemas. O mesmo não vem a acontecer com o processo de criação cinematográfica de Terra em transe, cuja montagem é sincopada, os planos curtos, a câmera sempre acelerada em torno dos personagens e, em alguns casos, sem que, com isso, se apague a marca do autor, a presença da mise-en-scène wellesiana.
Na filmografia glauberiana, percebe-se um realizador sempre em transe, sempre em busca, sempre incomodado, sempre numa procura desesperada da traduzir a realidade brasileira num discurso quase alucinatório, servindo-se do próprio mundo para o recriar de maneira completamente original. O maior cineasta brasileiro? Sim, nenhum outro foi capaz, como ele, de recriar a realidade nacional numa tradução revolucionária. Na obra que se segue a Terra em transe, não considerando, aqui, Câncer – que é o pioneiro do Cinema Underground, embora Glauber nunca tenha assumido esta paternidade, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, o realizador tenta traduzir para as imagens em movimento a linguagem da literatura de cordel numa mistura, poder-se-ia dizer, insólita, com a tragédia transposta para a aridez dos cenários sertanejos.
As duas grandes manifestações da arte glauberiana estão em Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, vindo o cineasta, após estes dois fulgurantes momentos da expressão cinematográfica, a um reprocessamento de suas constantes temáticas que atingiu pleno êxito apenas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O exílio europeu não lhe proporciona um estímulo de renovação nem de equilíbrio como autor, considerando, neste caso que, num autor, não se pode exigir permanente renovação, pois ele se caracteriza pela variação sobre um mesmo tema – Bergman, Fellini, Chaplin, Antonioni, Mizoguchi, Buñuel, et caterva. Mas Cabeças cortadas e O leão de sete cabeças – ou, como queria Glauber, em cinco idiomas: Der leone have sept cabeças, revistos hoje, são simplificações temáticas que culminariam, entre outros filmes, como o genial Di Cavalcanti – uma exceção na segunda fase do autor de Deus e o diabo na terra do sol, no radicalismo da montagem atômica de A idade da terra, canto de cisne do cineasta que viria a morrer num aziago agosto de 1981. Mas, como se costuma dizer, no macrofilme glauberiano, que é toda a sua filmografia, uma obra singular, ainda que menor, não pode ser considerada, por isso, menos importante.
Um comentário:
Deus e o diabo e Terra em transe são, sim, obras exponenciais de Glauber Rocha.Considero também mais alguns outros, como Barravento, Di Cavalcanti, mas, Setaro, tenha paciência, é muito suportar A idade da terra, Cabeças cortadas, O leão de sete cabeças, dentre outras filmes 'cabeça'. Há,no Cinema Novo, grandes mistificações, a exemplo de Leon Hirszman, que destruiu a agilidade literário de um São Bernardo em função de um porre homérico. Demais, Cacá é outro que, às vezes, insulta a inteligência, como no seu último filme, Deus é brasileiro.
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