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26 setembro 2005

ROBERTO PIRES: CINEASTA E INVENTOR

Quando as esperanças de encontrar uma cópia de Redenção já se encontravam perdidas, porque seu negativo em processo de degenerescência, sendo-lhe, quase impossível a restauração, um colecionador de filmes de Recife escreveu a Petrus Pires, filho do autor de Redenção, Roberto Pires, informando-lhe ter, em suas mãos, uma cópia integral na bitola de 16mm desse que é o primeiro longa do cinema baiano. Petrus, que trabalha na DIMAS, o departamento de audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia, viajou até a capital pernambucana para, como convidado de honra, assistir a uma exibição especial da obra histórica e que se pensou desaparecida. Na volta, trouxe a cópia para que seja feita um inter-negativo do positivo e seja, enfim, restaurado o filme que assinala a estréia de Roberto Pires na direção cinematográfica. Espera-se que Redenção seja exibido na Sala Walter da Silveira para que os baianos, principalmente os da nova geração, possam tomar conhecido da semente germinadora do que veio a ser conhecido como Ciclo Bahiano de Cinema.

Se o cinema na Bahia não existisse, Roberto Pires o teria inventado, escreveu Glauber Rocha em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Civilização Brasileira, 1963), uma reavaliação histórica do processo de criação na cinematografia nacional, um livro importante que provocou polêmicas na época – e que foi, recentemente, reeditado com prefácio de Ismail Xavier. Nesta publicação, Glauber considera Limite um mito a ser desmistificado, apesar de o filme não ter sido, em 1963, ainda restaurado, diz que O Cangaceiro é um produto falso feito na paisagem paulista, com um décor descaracterizado e uma estrutura narrativa westerniana, entre outros pontos provocativos e que exerciam uma espécie de dessacralização de dogmas estabelecidos. Humberto Mauro é coroado como o patrono do cinema brasileiro, o cineasta que plantou as raízes e colheu os frutos com seus filmes autênticos e enraizados. Mas se está, aqui, pegando um atalho e saindo da estrada, porque ela, a estrada, é Roberto Pires, o realizador de Redenção, o primeiro longa metragem feito na Bahia, com lente anamórfica (cinemascope) inventada por ele na ótica de seu pai. Redenção sobre ser uma obra de pioneiro, de desbravador, tem uma singular importância para a eclosão do Ciclo Bahiano de Cinema que viria a seguir. O filme é um exemplo, uma espécie de prova da possibilidade da existência de um cinema nestas plagas. Quem viu a avant-première, em black-tie, no cine Guarany, em 1959, não esquece o entusiasmo de todos. É vendo Redenção que Glauber Rocha sente que, de fato, seria possível se desenvolver, aqui, uma indústria cinematográfica. Encontrando, por acaso, Rex Schindler, no escritório de Leão Rosemberg, Glauber inicia uma amizade com Rex que vem a resultar no projeto do cinema baiano. Redenção, no entanto, não pode ser incluso dentro dos postulados cinemanovistas, pois um thriller, um policial com acentos amadorísticos. Mas, como acontece com a projeção de 1895 - data do nascimento do cinema - da chegada do trem dos Irmãos Lumière, apenas o fato de se ver, na tela, imagens de pessoas participando de uma história em movimento, o filme se torna uma lenda. O orgulho é imenso, e, naquela época, aquele que participa, numa pontinha, do filme de Roberto Pires, faz questão de dizer: “Eu trabalhei em Redenção Roberto Pires o filma nos finais de semana e o roteiro, imaginado e pré-visualizado em 1955, tem suas filmagens iniciadas no ano seguinte. A equipe técnica, trabalhando nos dias úteis em outras atividades para sobreviver, só se encontra disponível aos sábados e domingos. Assim, a fita é rodada a prestações até que um ilheense apaixonado por cinema, Élio Moreno de Lima, decide aplicar mais recursos, injetar mais verbas para o aceleramento da produção que, afinal, só fica pronta em 1959. Pires, um inventor e um artesão que se forma na intuição, vendo filmes policiais americanos, sem freqüentar o Clube de Cinema de Walter da Silveira, consegue, e não se sabe a que custos, finalizá-la, lançando-a com sucesso surpreendente no mercado soteropolitano. Rex Schindler e Braga Neto, após o êxito de bilheteria do filme estreante de Pires, resolvem bancar Barravento, de Glauber Rocha, dando início ao que se chama a ’Escola Bahiana de Cinema’. Glauber, crítico de cinema do então recém-fundado Jornal da Bahia, entra no meio das filmagens de Barravento, remodelando o roteiro e o idealizando à sua imagem e semelhança. Schindler, Glauber, Braga Neto e outros têm um projeto para a instalação de uma indústria de filmes - Glauber como mentor intelectual da turma. Dá-se início às filmagens de A Grande Feira (1961), com argumento de Rex, roteiro deste e de Pires e com direção do último. A artesania, que Pires demonstra na construção da mise-en-scène, habilita-o como cineasta neste drama sobre a Feira de Água de Meninos com acentos cordelísticos e brechtinianos. Sucesso estrondoso em Salvador, anima os produtores a partir para Tocaia no Asfalto (1962), que seria dirigido - segundo o esquema de rodízio estipulado - por Glauber, mas este, já detonando o Cinema Novo no SDJB - o célebre Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim - e preparando, no Rio, a produção de Deus e o Diabo na Terra do Sol, indica Roberto Pires. Tocaia no Asfalto tem um tema atual, pois trata da corrupção, da tentativa de se instalar uma CPI a fim de apura-la e do pistoleirismo. A sua estrutura narrativa é de um thriller, bem ao gosto de seu diretor, e há momentos de puro cinema: a perseguição de Agildo Ribeiro, o pistoleiro, para matar um político no interior da Igreja de São Francisco e o tiroteio no cemitério do Campo Santo.
O que se denomina de ’Escola Bahiana de Cinema’ se restringe aos filmes idealizados pelo grupo de Rex, Glauber, Pires e Braga Neto, entre outros - Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, mas, nesta época, de imenso burburinho, a Bahia vive o cinema, com produtores do sul e até do estrangeiro (O Santo Módico, de Jacques Viot), além de outros baianos que conseguem se estabelecer com produções de outras empresas - como a Winston Carvalho que banca O Caipora, de Oscar Santana; como a Tapira de Palma Netto, que tenta dar uma resposta ao problema feirante através de um outro filme, Sol Sobre a Lama, que é dirigido pelo carioca Alex Viany, mas produção genuinamente baiana; como Ciro de Carvalho Leite, que financia O Grito da Terra, de Olney São Paulo, em Feira de Santana. O Ciclo Bahiano de Cinema’ reúne todos os filmes que são realizados na Bahia entre 1959 e 1963, inclusive os da ’Escola...
Roberto Pires é muito ligado a Iglu Filmes - que tem este nome por causa de um bar na Praça da Sé, onde os cineastas costumam se reunir. Faz-se, neste período, até atualidades como A Bahia na Tela, um cine-jornal cuja estampa é o cartão postal do Elevador Lacerda. Pires tem um sentido, diga-se assim, intuitivo da construção de uma mise-en-scène, tem, aliás, como poucos brasileiros, um faro excepcional para trabalhar com o específico fílmico, com a linguagem cinematográfica. Se Redenção é um rascunho, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto são exemplos significativos da artesania do cineasta, de sua posta em cena. Ainda que seguindo os cânones de uma estrutura narrativa clássica - e, de certa forma, acadêmica, Pires possui o que muitos não têm: o engenho e a arte de saber se articular por meio de elementos puramente cinematográficos. Seus melhores filmes (’Feira’, ’Tocaia’) mostram um realizador em plena consciência de seu ofício. Mas é um cineasta que precisa do apoio de um argumento e de um roteiro sólidos. É, nesse ponto, mais um executor do que um autor, um artesão que sabe com maestria desenvolver um argumento alheio. E de artesãos como Pires é que o cinema brasileiro precisa para conquistar o mercado, envolver o público, cativar o cinéfilo. Com a derrocada do Ciclo Bahiano de Cinema - o velho problema de distribuição, Pires vai tentar a vida no Rio de Janeiro e realiza, em 1963, Crime no Sacopã, filme que, desaparecido, precisa, urgentemente, de uma revisão. Montando filmes alheios para sustentar a família, enquanto aguarda o próximo longa, o cineasta, em 1967, realiza um policial na medida certa do seu talento: A Máscara da Traição, com Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, então atores globais em alta. O filme conta a execução de um grande assalto aos cofres do estádio do Maracanã em dia de jogo decisivo.
Convidado por produtor americano para realizar um thriller à brasileira, recusa o convite e indica Alberto Pieralisi, que dirige Missão Matar, com Tarcísio Meira na pele de um James Bond dos trópicos. Uma experiência em 16mm, para posterior ampliação em 35mm e exibição nos cinemas, é um fracasso em 1970: Em Busca do Su$exo, com Cláudio Marzo, Eulina Rosa, Sílvio Lamenha. Filmado no Rio, aproveita atores globais, mas não se vê, neste filme, o metteur-en-scène tão proclamado. A seguir um ostracismo de dez anos até que arranja produção, monta um estúdio na Boca do Rio e se aplica numa science-fiction: Abrigo Nuclear. Para dar certo, no entanto, precisaria de uma infra-estrutura que Pires não consegue arranjar. O resultado é outro fracasso. Anos depois, faz, em Goiânia e Brasília, um filme sobre o acidente do césio, que recebe elogios, mas não consegue a circulação merecida. Assistente de Glauber Rocha em A Idade da Terra, participa também de Di Cavalcanti. O seu grande momento, todavia, se encontra nos anos 60. Esperava-se, de Pires, um nova longa: Nasce o Sol a 2 de Julho, cujo argumento é de Rex Schindler. O maior cineasta baiano, Roberto Pires. Claro, há Glauber Rocha, mas este é universal e não se compara. Separa.

Pires morre por causa de um câncer contraído durante as filmagens do filme sobre o césio. Tinha já dado início a alguns planos de Nasce o sol a 2 de Julho, que Schindler sonha em completar, mas, porque filme de época, tem orçamento alto, tornando-se, assim, inexeqüível e inviável.

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