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23 setembro 2011

Cinema brasileiro em debate

Um debate sobre o cinema brasileiro ocorrido em 26 de abril do ano em curso com a participação de Andrea Ormond, Eduardo Valente (no centro) e José Carlos Avellar. Ormond é, atualmente, talvez a mais perspicaz exegeta do cinema nacional, autora de um blog (http://estranhoencontro.blogspot.com/) imprescindível e obrigatório (vale a redundância). Há, nela, uma originalidade na análise dos filmes, escapando das amarras ideológicas tão comuns na crítica e dos preconceitos estilísticos. Revive, em suas críticas bem escritas, o cinema popular, resgatando películas do pretérito, e as apresentando ao presente. Avellar é um decano da crítica cinematográfica, homem de mil e uma atividades no campo do audiovisual. E Eduardo Valente, crítico que se iniciou na revista eletrônica Contracampo, e, agora, salvo engano, está na Cinética, tem alguns curtas premiados internacionalmente. Liguem o som de seus computadores. Vamos ouvi-los. Eles merecem.

Debate 26/04/2011 - RJ - Cinema Brasileiro Anos 2000: 10 questões from Thiago André on Vimeo.

22 setembro 2011

Melancolia epistolar sobre o filme de Von Trier

A  escritoria Neuzamaria Kerner (http://www.neuzamariakerner.blogspot.com/) faz um belo comentário sobre Melancolia, de Lars Von Trier, por meio de uma epístola para Justine, a personagem do filme. Julguei de bom alvitre transcrever, aqui, neste blog, a sua carta. Von Trier é um realizador polêmico, incapaz de obter a unanimidade, mas, como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. Particularmente, admiro muito seus filmes, com raras exceções, considerando a sua obra máxima Ondas do destino. Melancolia, tenho certeza, já está incluso na lista dos melhores do ano em curso. Mas vamos logo à epístola de Neuzamaria. Abrindo as necessárias aspas:

Cara Justine.

Quinze de setembro de dois mil e onze.

Há vários dias tento lhe escrever, mas sempre adio sem saber exatamente o motivo da postergação. Talvez eu até saiba... O inconsciente, no entanto, é extraordinariamente protetor em certas situações. Tenho quase certeza de que você sabe do que falo. É possível. Tudo é possível neste mundo nosso de possibilidades. Então, amiga, se é que posso tratá-la assim, fiz alguns malabarismos mentais para driblar o meu inconsciente a fim de deixar emergir pensamentos teimosos que dançavam no meu palco interior e que lutavam bastante para continuarem invisíveis e indecifráveis até o momento em que lhe vi.

Em verdade, esses pensamentos são como seres ou entidades ou sentimentos esdrúxulos que habitam nossas mais abissais regiões. Como nos dão trabalho! O consolo é que eles não estão apenas comigo e com você, mas com todos os seres viventes e pensantes que desde que “encarnam” já vêm com a carga de raiva, tristeza e medo e suas polaridades como se fosse uma maldição passada de geração em geração.

Pois bem, acompanhei seus últimos e impressionantes passos naqueles dias da transformação compulsória – digamos assim, eufemisticamente. Confesso que no primeiro momento da sua aparição não lhe entendi muito bem. Você deveria estar feliz, afinal estava casando com um homem bom e bonito e que parecia realmente lhe amar. Por que você o rejeitou? Será porque você quis poupar-se ou poupá-lo de dores? Ou não o amava o bastante para juntos enfrentarem o que estaria por vir? Seu casamento deu uma espécie de prazer – de hora última - à sua irmã e ao seu cunhado que não economizaram dinheiro nem trabalho para que sua festa fosse a mais linda. Perfeita. Sua mãe, pra variar, transbordava o amargor de sempre; seu pai, amoroso e generoso, mas na dele... provavelmente nunca quis se comprometer com a vida. Talvez aí esteja a explicação do comportamento de sua mãe. Os outros parentes, como todos. Sabe, o seu chefe - pobre coitado -, mereceu os desaforos que você corajosamente despejou sobre ele, um carcará hipócrita, fazedor de dinheiro e que nunca se preocupou com as suas questões existenciais – nem com as de ninguém. Nem nunca atentou para os motivos da irreverência contida nas suas peças publicitárias. Creio que naquela hora você vingou todos os desrespeitados nas empresas sem precisar buscar apoio nos famigerados sindicatos de trabalhadores.

Depois da festa pude voltar a me concentrar somente em você, inclusive lembrando-me da cópula – tenho que dizer esse nome sem graça – com o cara contratado pra lhe arrancar um “slogan”. Parecia que você estava com muita raiva porque sobre a terra você o fez derramar o sêmem que não poderia mais frutificar. Inútil semear numa terra infértil. Você humilhou a mãe-terra. Mas não pense que estou lhe julgando, apenas tentando dizer da minha compreensão. Raiva é raiva, irmã gêmea da impotência. Você estava tão impotente como qualquer pessoa que conhece, sente e capta, pelas pontas dos dedos-antenas, as energias do universo, mas com a consciência de que não mais poderia contar com elas, as energias. Definitivamente você estava mais abandonada de si mesma do que nunca. Entendo, de verdade, a sua depressão. A dor que provém da alma dos ossos e dos nossos centros todos inacessíveis por isso incurável. Essa era a sua tristeza. A dor do exilado. A saudade do não-sei-onde. A Melancolia metafórica, mas ao mesmo tempo muito real, que lhe esmagaria sem piedade num futuro bem próximo.

Justine, a Melancolia carrega o medo nas letras que compõem essa palavra. Melancholia que não agradava nem no latim nem no grego desde quando nasceu e foi registrada em sua certidão já com um significado doloroso: melan(ós) ‘negro’, ‘funesto’, ‘triste’, ‘sombrio’ + cholē ‘bílis’, ‘fel’,’veneno’. Quem não tem medo disso tudo que faz o vivente carregar um fardo pesado e invisível dentro de um exílio imaginário que pune o melancólico por um crime que desconhece ter cometido? Vi você assim, Justine... desnuda literalmente, sendo carregada para o banho sem sentido, pernas que recusavam suportar o corpo, pés sem impulso cósmico para a passada necessária ao minuto seguinte.

Ontem, de novo, pensei em você quando uma amiga me falou que não estava se preocupando com mais nada. Entregava os incômodos ao universo e dizia “tudo passa”. Repetia “tudo passa”. Olhei nos olhos dela e revi os seus. Tudo realmente passa mesmo que seja por cima de nós. Cada ser – humano - tem que viver com seu próprio momento, bom ou ruim, embora alguns procurem e sejam ajudados quando tudo parece nada. Mas não adianta porque nós sabemos o que sentimos. Os outros seres apenas sentem e percebem a si e ao mundo, mas não têm ciência disso. Saber sentir. Saber que sente. Elaboramos o que vemos e sentimos pelo tal do “eu”. É a isso que chamamos de consciência.

Penso no seu criador agora. O deprimido Lars. Ele disse que nascemos com uma sentença de morte, ou seja, a consciência de que a existência tem fim e que ninguém quer ser finito. Em verdade ele usou você para dizer isso ao mundo naquele dia. Muitos não ouviram e preferiram viver na ilusão. Achei muito engraçado, porém verdadeiro, ele dizer que os psicoterapeutas, quando consultados, dizem que a ansiedade e a depressão são perigosas, mas não significam o fim do mundo. No entanto, estão enganados. Redondamente, assim como Terra e Melancolia. Claro que você fez o papel que ele quis. Interessante essa relação entre criador e criatura. Mas você contra-atacou ao tomar consciência de que lutar com o inevitável é mais desgraçado do que tudo. Aí você entra num invejável estado de serenidade e de ajudada passa a ser ajudadora.

Foi ótima a sua mudança. Lembra de quando você se despe, simbolicamente despojando-se das vestes, e vai andando pelo bosque e deita-se sobre um pedaço significativo de rocha à beira de um rio? Perfeito momento de entrega e conexão com o universo. É isso. A serenidade nasce da aceitação e da entrega. Entenda que falo de aceitação e não de resignação. Num outro dia, distraidamente você se senta na murada dos jardins do castelo e fica balançando as pernas como uma criança que aguarda. Você olha para os longes celestes... e parece nem pensar em nada, em ser nada. Naquele momento apenas é.

Acontece então o já sabido. Tudo o que se passa naquele dia passa sobre você. É o esmagamento literal de tudo. É o fim. Bem que eu queria lhe falar sobre esse fim que não é fim, porém começo (ou recomeço). Mas não sei onde você está agora nem como está.

Vou depositar esta carta sobre uma montanha bem alta, se eu tiver coragem suficiente para escalá-la, e esperar que você a recolha e leia. Não posso ir ao correio ou enviar pela internet porque não tenho o seu endereço exato... Pode ser que as conexões todas tenham caído. Ou pode ser que as conexões todas se iniciem agora.

Antes de finalizar quero agradecer a sua companhia naqueles dias que duraram apenas duas horas para mim e para outros que realmente lhe viram e lhe sentiram. Quando eu crescer, quero ser valente como você apesar de todos os pesares. Também quero dizer que tive um ancestral com o seu nome o que nos faz ter algo em comum. Chamava-se Justinus Kerner, viveu no século XVIII, alemão, poeta, médico que se interessou por um monte de coisas que diziam ser estranhas – porque não compreendiam. Onde você estiver e se por acaso o encontrar, pergunte-lhe sobre A Vidente de Prevorst. Daqui a três dias (18) seria seu aniversário de nascimento, caso estivesse entre nós. Talvez esteja e não saibamos. A gente nunca sabe, amiga.

Um grande abraço cheio da luz que você merece por tudo o que viveu, por tudo o que ensinou.

Neuzamaria Kerner.

p.s. Justine é personagem do filme Melancolia dirigido por Lars Von Trier.

21 setembro 2011

O Intimismo no Cinema

Fala-se muito em intimismo cinematográfico, mas quase nada, pelo menos em língua portuguesa, existe escrito sobre esta maneira de representação do real nas imagens em movimento. O recente lançamento de "Imitação da vida" ("Imitation of life", 1959), de Douglas Sirk, faz emergir o pensamento sobre o que significa o intimismo e o modo pelo qual é traduzido, nele, o "real".

O intimismo representa, por excelência, a escola idealista no cinema. A realidade é filtrada pelo sentimentalismo e pela subjetividade, o que o identifica com o romantismo. Segundo Maurício Rittner, em seu exemplar livro introdutório, "Compreensão de cinema", editado pela Buriti em 1965, nos filmes intimistas nem sempre o desfecho da história é feliz, fato característico dos filmes românticos. Como as normas de conduta, ainda segundo Rittner, próprias do intimismo são normais ideais, elas acarretam uma técnica de renúncia aos valores autênticos da vida. Assim, o universo romântico-intimista configura um sistema de forças em conflito: as forças do sentimento e as forças da razão. Mas em sua fé nos sentimentos, os personagens se tornam quase místicos.

Segundo o crítico de arte Herbert Reed, existem três modos básicos de representar o mundo: o realismo, o idealismo (intimismo), e o expressionismo, havendo um quarto modo (surrealismo) que tenta substituir o realismo, que é, esta, a "escola", por assim dizer, que registra tão verazmente quanto possível aquilo que nossos sentidos conseguem perceber no mundo real. Há no realismo cinematográfico várias vertentes (neo-realismo italiano, realismo poético francês, realismo socialista, realismo fantástico, realismo crítico...). A maioria dos filmes do Cinema Novo brasileiro pode se inserir dentro do realismo, assim como a famosa escola de documentaristas britânicos dos anos 20 (John Grierson, Paul Rotha...).

No expressionismo (e, principalmente, no expressionismo alemão dos anos 10 e 20) o que importa não é a tradução do real (como no realismo), mas a expressão de seu reflexo na sensibilidade e no espírito. O filme ícone do expressionismo é "O gabinete do Dr. Caligari" (Robert Wiene, 1919), com seus cenários de papelão, objetos pintados, gesticulação exagerada. Há uma preocupação maior na plástica da imagem do que nos recursos da montagem. A cenografia tem uma forte presença na produção de sentidos. O expressionismo influenciou todo o cinema ("Cidadão Kane", de Orson Welles, com seu jogo de luz e sombras, é uma obra expressionista.)

O nome maior do surrealismo no cinema é o de Don Luis Buñuel, autor de duas obras puramente surrealistas:"Un chien andalou" (1928) e "L'Âge d'or" (1930), ambas em colaboração com Salvador Dali, filmes que chocaram platéias e provocaram escândalos. O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação. Tem grande influência de Freud ("A interpretação dos sonhos") e do materialismo histórico.

O móvel, entretanto, da coluna, é o intimismo, que tem seu apogeu nas décadas de 30, 40 e 50 no cinema americano. Para uma sociedade extremamente imediatista e consumista, atualmente filmes intimistas podem provocar risos (vindos, evidentemente, de débeis incapazes da percepção da obra em seu momento histórico) e parecer, à primeira vista, anacrônicos. Mas os filmes intimistas, quando realizados com classe, com talento, com estilo, podem suscitar uma espécie de estesia pela beleza de sua "mise-en-scène". Alguém, de sã consciência, poderia rir dos filmes de Douglas Sirk ("Palavras ao vento", "Almas maculadas", "Tudo que o céu permite", "Amar e morrer", "Desejo atroz", entre outros)? O intimismo significa a evolução de uma história cinematográfica em torno das eternas constantes do amor, com a tônica no estudo exaustivo das relações afetivas e dos fatores que as precipitam ou as impedem. E criou um universo dramático especificamente feminino centrado nas reações da mulher diante do mistério do amor. Por exemplo: "...E o vento levou" ("Gone with the wind", 1939), de David Selznick/Victor Fleming/George Cukor/Sam Wood, embora a sua ação se localize na Guerra de Secessão americana (1861/1864), esta se torna apenas um "pano de fundo", porque o que importa é a análise da personalidade esfuziante de Scarlett O'Hara (vivida com empenho inexcedível por Vivien Leigh) e suas oscilações diante do mistério do amor. Todos os acontecimentos básicos do filmes são explicados em função dos estados passionais (outro exemplo marcante é "O morro dos ventos uivantes"/"Wuthering Heights", também de 1939), de William Wyler, com Laurence Olivier, David Niven, Merle Oberon. A dimensão lírica do intimismo é dada por um tratamento acentuadamente romântico dos personagens e das situações.

O intimismo parte de uma visão realista, que é deliberadamente selecionada e exaltada em alguns de seus aspectos. Para Rittner, o intimismo induz das formas da realidade uma idéia abstrata, mais perfeita do que a original. A realidade "deveria ser assim" e não "assim", como seria numa visão realista. A idéia abstrata mais perfeita do que a realidade não torna o intimismo "menor", mas, muito pelo contrário, fala-se, muitas vezes, melhor da realidade através da fantasia e da estilização. Diria mesmo que há uma possibilidade estética maior no intimismo do que no realismo "tout court".

A própria realidade, no intimismo, é recriada em termos de poesia e de ternura e, por isso, quase se torna estática, desvitalizada, isolando os personagens de seu meio. É, no entanto, pela imobilização da realidade circunstancial que o intimismo se torna revelador, transformando o vulgar em invulgar, o superficial em transcendente.

Com a barbárie estabelecida no consumo do produto cinematográfico, com o cinema transformado em "fast food", o público solicita, hoje, mais a brutalidade e a ação do que a ternura e a poesia. Ri-se de certos momentos românticos dos filmes intimistas. Ri-se de forma esquizóide, nos dias que correm, da poesia e da beleza. Há, patente, uma preferência por um realismo quase naturalista do que pelo tratamento intimista dos personagens e das situações. Rir de uma obra como "Assim estava escrito" ("The bad and the beautiful", 1953), de Vincente Minnelli, filme intimista, dá àquele que ri um atestado inconteste de imbecilidade congênita.

São exemplos de filmes intimistas: "Grande Hotel" ("Grand Hotel", 1932), de Edmund Goulding, com Greta Garbo, John Barrymore, Joan Crawford, que saiu recentemente numa coleção de Dvds de um jornal paulista, , "Esquina do pecado" ("Back street", 1932), de John M. Stahl, que dirigiu a primeira versão, em 1934, de "Imitação da vida", "Anna Cristie" (idem, 1930), de Clarence Brown, com Garbo, "A dama das camélias" ("Camille", 1936), com Garbo e Robert Taylor, "Adeus Mr. Chips" ("Good-bye Mr. Chips", 1939), de Sam Wood, "Um lírio na cruz" ("Till we meet again", 1944), de Frank Borzage, "Carta de uma desconhecida" ("Letter from a unknow woman", 1948), de Max Ophul, com Louis Jordan e Joan Fontaine, "Por tua causa" ("Because of you", 1952), de Joseph Pevney, com Loretta Young e Jeff Chandler, "Tarde demais para esquecer" ("A affair to remember", 1955), de Leo McCarey, com Cary Grant e Deborah Kerr, "Suplício de uma saudade" ("Love is a many splendored thing", 1955), de Henry King, com William Holden e Jennifer Jones, entre muitos outros. E os grandes "sirks" já citados dos anos 50.
 
A foto é de "Palavras ao vento", de Douglas Sirk. Clique na imagem para vê-la maior.

19 setembro 2011

"O nono mandamento", de Richard Quine

Realizador de notável perspicácia no tratamento dos sentimentos humanos em dramas ásperos como O nono mandamento (Strangers when we meet, 1960) - cujo trailer está abaixo, Richard Quine anda completamente esquecido. Este filme, capaz de produzir estesia pela sua mise-en-scène, demonstra o talento de Quine como estilista que oferece, no desenvolvimento da narrativa, um fluir quase musical na pontuações de seus momentos dramáticos. Kirk Douglas vem a conhecer, au hasard, quando deixa o filho na escola, ninguém menos do que Kim Novak, no auge de sua beleza. Porque relacionamento adúltero por excelência, como diz o título em português, a paixão detona uma crise. Quine é também um notável comediógrafo que tem em sua filmografia jóias como Aconteceu num apartamento (The Notorious Landlady, 1962), com Jack Lemmon, Kim Novak (com quem possuiu a sua beleza, casando-se com ela), Fred Astaire, Como matar a sua esposa (How to Murder Your Wife, 1965), com Lemmon e Virna Lisi, Sortilégio do amor (Bell Book and Candle, 1958), com James Stewart e Kim Novak (a mesma dupla recém-saída de Um corpo que cai), Quando Paris alucina (Paris - When It Sizzles, 1964), entre muitos outros.


18 setembro 2011

O Desespero de Veronika Voss

Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, obra crepuscular de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), O Desespero de Veronika Voss é o seu penúltimo filme (o derradeiro: Querelle, baseado em texto de Jean Genet) antes de morrer aos 36 anos vitimado por uma overdose de álcool e cocaína. O DVD, distribuído pela Versátil, conserva o formato original da tela de cinema (1.66:1) e apresenta uma cópia luminosa, perfeita, capaz de dar ao filme toda a sua expressividade, principalmente porque a sua plástica da imagem é fundamental, pois se insere no próprio tecido dramático. O que assombra em O desespero de Veronika Voss é a iluminação expressionista de Xaver Schwarzenberger, que trabalha o preto e branco com extrema funcionalidade, a permitir que a produção de sentidos do filme se faça muito pela sua plástica ao invés de se restringir (como a maioria das obras cinematográficas) ao conteúdo da fábula. Neste particular, a luz (muitas vezes estourada) é o elemento que sufoca o espectador, inserindo-o num mundo desordenado e caótico. O branco assume uma dimensão asfixiante, como nas seqüências no interior da clínica. Não se pode ter uma compreensão de O desespero de Veronika Voss sem a percepção da expressão fotográfica.

Estilizadíssimo, com uma evocativa reconstituição da década de 50 na Alemanha, o filme, como em quase todos os de Fassbinder, é influenciado pelo melodrama de Douglas Sirk. Com o cineasta de Veronika Voss, o gênero assume uma potencialização e, pelo excesso de sua construção tonal, beira ao paradoxo. Esta obra-prima faz parte dos filmes que o autor rodou sobre o seu país do pós-guerra.

Narra o drama existencial de uma atriz decadente (vivida por Rosel Zech, que faleceu há duas semanas,  tem, aqui, um desempenho antológico, e, no DVD, quase uma hora de extra com seu depoimento tomado exclusivamente para o lançamento neste formato), que, antiga estrela da UFA (Universum Films AG) durante o nazismo, vicia-se em morfina. Vem a conhecer um jornalista esportivo que, fascinado por ela, tenta ajudá-la. A visão de Fassbbinder do mundo e das pessoas é cruel: não existe lugar para o afeto, pois todos querem exercer o domínio pelo outro, e as instituições da sociedade são podres e contaminadas por natureza. O filme parece ser a premonição do desespero do realizador, que viria a morrer também de angústia existencial pela tragicidade da vida. O Desespero de Veronika Voss também poderia ter um sub-título: O Desespero de Rainer Werner Fassinder.

Há uma seqüência que define bem a estética fassbinderiana: aquela num bar quando Veronika convida Robert para um encontro e, na mesa, plenamente iluminada como numa luz pentecostal, ela fala do cinema diante dele. O cinema é luz, e Fassbinder, neste filme, esculpe as cenas com a luz. Há, em O Desespero de Veronika Voss, a influência não somente de Sirk (Palavras ao Vento; Tudo que o Céu Permite; Imitação da vida) como a de Max Ophuls e, principalmente, a de Josef Von Stenberg, para quem o cinema era essencialmente composição plástica. Realizador consagrado (O Anjo Azul, O Expresso de Shangai), Sternberg foi o responsável pelo lançamento de Marlene Dietrich, que, dele, disse um dia: “Sternberg fazia brotar a beleza de um jogo de luzes e sombras”.

Filme sobre uma atriz em decadência, mas, também, sobre a Alemanha dos anos 50, e, principalmente, uma obra que reflete a luz criadora que potencializa a estesia da arte do filme, O Desespero de Veronika Voss faz lembrar, também, Crepúsculo dos Deuses (o célebre Sunset Boulevard, 1950), de Billy Wilder, com William Holden e uma interpretação inexcedível de Gloria Swanson. Rosel Zech, a Veronika de Fassbinder, não lhe fica atrás.

14 setembro 2011

"A roda da fortuna", de Vincente Minnelli

Ainda que seja uma unanimidade a preferência por Cantando na chuva (Singin'in the rain, 1952), de Stanley Donen e Gene Kelly, como o maior musical de todos os tempos, que gosto muitíssimo, o melhor filmusical para mim, no entanto, continua sendo A roda da fortuna (The band wagon, 1953), de Vincente Minnelli, o estilista admirável que recentemente teve uma retrospectiva no eixo Rio-São Paulo. Com o gênero já em decadência, o filme minnelliano reflete a desilusão dos profissionais do ramo. Como uma premonição do que viria a acontecer. Tanto é que, segundo os especialistas, o último grande musical da Metro é Gigi (1958), do mesmo Minnelli. Vejam o vídeo e reparem a excelência do número com Fred Astaire e Cyd Charisse. O cinema nunca mais fez algo parecido.



11 setembro 2011

"Porcel Unicorn", de Keegan Wilcox

Precioso filme curto de três minutos que ganhou o grande prêmio em Cannes de maio passado em sua categoria. Chama-se Porcel Unicorn, de Keegan Wilcox. Excepcional!

"As ervas daninhas", de Alain Resnais

Les herbes folles tem nos pensamentos dos personagens a sua mola propulsora. São os pensamentos que detonam os atos e as situações. Alain Resnais é um realizador cinematográfico que tem como característica sempre a investigação da mente do ser humano. O que eleva sobremaneira seus filmes é a sua capacidade de apresentar, cinematograficamente, as angústias, os desejos, as hesitações de seus personagens. Há, em Les herbes folles, um trabalho original no que concerne ao tratamento da fragilidade do homem frente as suas circunstâncias. Evitando qualquer tipo de psicologia banal, o filme é sobre o mecanismo de funcionamento paradoxal da mente humana. Kubrick, em De olhos bem fechados (Eyes wide shut, 1999), ainda que uma obra a respeitar, tornaria este seu derradeiro filme numa obra-prima se possuísse os recursos resnaisianos ou, melhor a dizer, se Resnais filmasse De olhos bem fechados daria, a ele, uma funcionalidade e uma expressão que o gênio kubrickiano tentou, mas não conseguiu, a considerar que também aqui se trata dos desvarios da mente humana num processo de obsessão.

Além do mais, As ervas daninhas é um exercício cinematográfico puro no qual a lógica e a psicologia se explodem num redemoinho. A mise-en-scène é de tirar o fôlego (como um movimento de câmera para frente - travelling - na sequência do almoço na casa de Dussolier quando este, que aparece sentado num sofá, de repente, com a continuação, aparece já sentado na mesa, havendo, um deslocamento não somente da máquina de filmar como também dos personagens em cena num tour de force admirável. O recurso resnaisiano dos lances de memória é usado com eficiência na estrutura narrativa: a bolsa amarela roubada em câmera lenta, o plano de detalhe da carteira perdida debaixo de um dos pneus do carro, os close ups de Sabine Azéma, os pacientes a sofrer na cadeira de dentista de Marguerite etc. É o imaginário controverso dos seres em movimento que dá margem à fabulação desse extraordinário Les herbes folle.

Marguerite Muir (interpretada com a elegância de Sabine Azéma, companheira, na vida real, de Resnais) é uma dentista que tem fascinação pelos sapatos exclusivos de uma loja parisiense. Depois de comprá-los, ao sair do estabelecimento, sua bolsa amarela é-lhe roubada. Georges Palet (André Dussolier, ator constante dos últimos filmes do cineasta) após comprar um relógio num centro comercial acha a carteira de Marguerite, que fora jogada fora pelos ladrões e se encontra embaixo de seu carro no estacionamento do shopping center. Curioso, verifica os documentos e descobre que a dona da carteira tem brevê de piloto, o que o fascina, porque, desde tenra idade, tem mania por aviões e seu sonho seria ter se tornado um aviador. É bom observar que a ação de Les herbes folles se estabelece a partir dos pensamentos de seus personagens, como já foi dito. Palet, por exemplo, ainda no estacionamento do shopping, fica revoltado com uma mulher que usa uma calcinha preta e tem desejo súbito de matá-la. É neste cipoal de desejos paradoxais e esquisitos que se estrutura o filme, baseado em O incidente, de Christian Gailly, com roteiro de Alex Reval.

Palet entra em obsessão para conhecer Marguerite e imagina várias formas de entrar em comunicação com ela. A cena na qual ele está dentro do carro, e imagens laterais vão sendo mostradas como soluções hipotéticas, é bem ao feitio resnaisiano. De repente, durante um almoço familiar (Palet é casado há 30 anos com Suzanne/Anne Consigny e tem três filhos), recebe uma ligação de Marguerite para agradecer a devolução da carteira (não sem antes ter ido à polícia para entregá-la e fazer os trâmites legais com o comissário interpretado por Mathieu Amalric, que se desorienta com as hesitações dele). É quando tem início a idéia fixa de Palet em entrar em contato, custe o que custar, com Marguerite. É a pulsão de um desejo na estrutura mental de Palet que aciona os mecanismos fabulatórios de Les herbes folles, que, para evitar o spoiler, deixa-se, aqui, de contar o resto.

Se ainda pudesse existir uma, por assim dizer, lógica narrativa, esta explode no final numa apologia à liberdade da mise-en-scène. Resnais propõe, na parte final, a apologia do espetáculo puro, do cinema em plena autonomia de vôo, quando a fábula dá lugar à narrativa imaginária, à disposição do específico cinematográfico. Os leitmotivs (como que refrões) que permeiam o filme (as ervas daninhas das circunvizinhanças e que adentram a casa de Palet, a bolsa amarela em câmera lenta...) se desatam num processo único. A tal ponto que é a celebração do cinema que se verifica com o passeio aéreo que pontua a obra-prima. A partir mesmo, antes disso, do momento em que Marguerite vai procurar Palet, que se encontra num cinema de bairro a ver As pontes de Toko-Ri (The bridges of Toko-Ri, 1954), com William Holden e Grace Kelly, por ser um filme de guerra e de aviões em combate. Mas, em verdade, não são apenas os tormentos mentais dos personagens que se constituem o móvel de Les herbes folles, mas, também, as formas de expressá-los de maneira puramente cinematográfica.

Duas vezes a bela fanfarra da Fox, a pontuar a fantasia que é o cinema: tocada, com aquela ênfase que fez a emoção dos antigos frequentadores das salas de exibição, no neon do cinema onde Palat se escondera para ver os aviões de As pontes de Toko-Ri, e, quando ele se encontra com Marguerite e a beija no hangar. O filme, na terceira parte, toma um rumo surpreendente, a transformar as hesitações iniciais dos personagens em decisões. A rigor, não há rumo a tomar em Les herbes folles, ainda que haja o rumo do roteiro a seguir, a se fazer cinema pela varinha mágica de Resnais. Mas os personagens, as criaturas resnaisianas, não o têm. Como a vida.

Impressionante o poder de convencimento que passa as interpretações de André Dussolier (que tem neste filme a maior performance de sua carreira) e de Sabine Azéma, além de todos os outros intérpretes, buscados, a maioria deles, na excelência do cast da Comédie Française.

Celebração ao cinema e ao imaginário, como bem acentua a interrogação aparentemente infantil do garoto, na última tomada do filme, que pergunta à mãe: "Quando eu for gato, posso comer a ração do gato?".

08 setembro 2011

Mostra Vincente Minnelli

A grande retrospectiva de Vincente Minnelli ficou, infelizmente, restrita ao eixo Rio-São Paulo.
O seu curador, Luis Carlos de Oliveira Jr, escreveu, na página home do site, um texto primoroso sobre a obra desse estilísta maior do cinema. Não resisto a transcrever um trecho:

"Minnelli, a priori, não distingue entre um assunto nobre e um assunto menor. Qualquer coisa lhe parece digna da mais alta representação artística. Ele não necessariamente dá ao público dito intelectual um tema rico e profundo para refletir após a sessão (embora filmes como Paixões sem Freios e Papai Precisa Casar possam render conversas densas e intermináveis). Se muita gente relutou em considerá-lo um grande cineasta e não apenas um embelezador de espaços, foi porque se prendeu a um caduco pressuposto de que a grande arte só se faz a partir de um grande assunto. Ora, isso relegaria a um segundo plano uma parcela considerável das obras-primas da pintura. As maçãs de Cézanne ou as bailarinas de Degas não são geniais porque representam maçãs ou bailarinas, mas antes por conta do traço peculiar que as vivifica na tela. As botas de um camponês, num quadro de Van Gogh, condensam um mundo. O que dá o tamanho de uma obra é menos o objeto escolhido pelo artista do que a forma como ele o representa. Os filmes de Minnelli, assim como as pinturas de Van Gogh, só fazem sentido pela cor, pela composição, pela textura dos materiais, pelo arranjo dos corpos e dos elementos plásticos no interior do quadro. O “touch” minnelliano é o motivo pelo qual vemos seus filmes. Se todo grande autor possui um tema recorrente, que ele explora sistematicamente no decorrer de sua obra, o de Minnelli foi a própria função da arte – e, mais especificamente, do cinema – enquanto transformação estética do mundo. Algo que ele deixa bastante claro em seus dois filmes plantados no universo do cinema: Assim Estava Escrito (1952) e A Cidade dos Desiludidos (1962). Neste último, que é certamente o precursor imediato de O Desprezo (Godard, 1963), Minnelli enfatiza alguns detalhes que, no set de filmagem, são responsáveis pelo sentido geral da obra. Uma mudança de ângulo da câmera, um objeto acrescido ou subtraído ao quadro, e a cena será outra – para melhor ou pior."

07 setembro 2011

"Psicose" é uma obra-prima

Psicose (Psycho, 1960), de Sir Alfred Hitchcock, trata-se de uma obra excepcional, que abalou o seu tempo. Realizado pelo mestre logo depois de Intriga internacional (North by northwest, 1959), e numa fase em que se dedicava a produzir e dirigir filmes de meia-hora para a televisão, o Alfred Hitchcock apresenta, o realizador teve a idéia de fazer um filme para cinema com os recursos bem inferiores das produções televisivas. Ninguém, nem mesmo seu distribuidor, poderia prever o sucesso que alcançaria. Um êxito retumbante!

Mas, antes de falar em Psycho, gostaria de dizer alguma coisa sobre os filmes televisivos, que foram veiculados no Brasil (vi quase todos há 50 anos, no início da implantação da televisão na Bahia). A memória, que é, muitas vezes, traiçoeira, apagou a maioria, mas alguns me ficaram nítidos para sempre tal a força de suas imagens. Lembro-me de um sobre um ventríloco bem apessoado, alto e elegante, que se apresentava em várias cidades dos Estados Unidos, tendo, em uma de suas pernas, sentado, um boneco. Uma mulher madura, uma senhora, apaixonado pelo ventríloco, acompanhava-o por todas as cidades. A sua idéia fixa era conhecê-lo de perto. Uma noite, finda a apresentação, toma coragem e vai até o camarim e sofre intensa emoção e decepção ao ver que o homem pelo qual tinha se apaixonado era um boneco e o ventríloco, na verdade, era um anão.

Há um outro curta feito para a televisão, de meia hora, que trata de um homem angustiado e solidário perdido na selva de pedra novaiorquina. A sua frustração é enorme e não consegue se comunicar com ninguém. As pessoas não o cumprimentam. Vive sozinho em um pequeno apartamento. Mas tenta, desesperadamente, ser alguém, ser visto, ser conhecido pelo outro. E, no final, ato extremo, resolve se suicidar. O plano derradeiro mostra um livro que contabiliza os suicídios por ano e há um acréscimo nos números. Ele é este acréscimo. Por que não vem aos disquinhos meia centena dos curtas de Hitchcock para a televisão? Uma lacuna para o conhecimento integral de um realizador excepcional que muito contribui para a evolução da linguagem cinematográfica.

Marion Crane (Janet Leigh) é uma funcionária de um escritório na cidade de Phoenix que é incumbida pelo patrão de depositar uma grande soma de dinheiro em cash. Vê-se, porém, tentado a roubá-lo e decide se evadir pela estrada, saindo da cidade. Por causa da chuva, incessante, pára num pequeno motel de beira de estrada que tem, ao lado, uma casa sinistra. Seu proprietário, Norman Bates (Anthony Perkins) a recebe tímido e gaguejante. Tem início a sucessão de choques que não vale a pena adiantar sob o risco de ser acusado de spoiler, ainda que filme muito visto e conhecido. Mas, para comentar Psycho é preciso que se descortine algumas cenas. Assim, quem ainda não viu a obra-prima que termine, agora, de ler esta coluna.

A estrutura narrativa é genial e, de certa maneira, revolucionária para a época, pois Hitchcock mata a atriz principal (na famosa sequência do chuveiro) ainda no primeiro terço do transcurso da fábula. Procedimento inusual que causou estupefação.

Na verdade, a estrutura narrativa de Psicose ao invés de ter uma uniformidade dentro da lei de progressão dramática se encontra construída como se fossem três filmes. Cada um com sua apresentação do conflito, desenvolvimento deste e desenlace. Morta Marion, esfaqueada no box do chuveiro, o filme como que parece que se extingue. Mas começa tudo novamente com a aparição do detetive Arbogast (Martim Balsam), contratado pelo amante de Marion (John Gavin) e sua irmã (Vera Miles). Arbogast, quando chega ao motel, é também esfaqueado a subir as escadas da mansão sinistra, caindo para trás. Um terceiro filme se desenvolve com a busca, desta vez, efetuada por Gavin e Miles, que encontram o motel e, neste terceiro bloco, por assim, dizer, há o desenlace definitivo. Além disso, há um epílogo, quando um psiquiatra (Simon Oakland) explica o comportamento de Norman Bates (este epílogo, longo, é um único senão que se pode fazer ao filme, pois desnecessário).

A concepção estrutural de Psycho revela, mais uma vez, o gênio hitchcockiano para a subversão do clichê narrativo. Para ele, tout est dans la mise-en-scène (tudo está na mise-en-scène) e muito mais do que a fábula em si é a mise-en-scène que produz o impacto cinematográfico, que se traduz na exposição do específico fílmico. A narrativa de Psycho é uma narrativa de emoção, de êxtase, e de assombro: a partitura de Bernard Herrmann a acentuar uma Marion dentro do carro angustiada pelo crime cometido enquanto os pára-brisas, numa noite de chuva, acentuam-lhe a agonia e os pensamentos; a clássica e antológica cena do chuveiro na qual, em menos de um minuto, há mais de cinquenta tomadas, a revelar a ilusão do cinema e o poder da montagem; no início, a colocação brincalhona da hora exata em que Marion está no quarto do hotel com o amante; o esfaqueamento de Martin Balsam que cai em câmera lenta da escada, entre muitas outras cenas antológicas e definitivas.

Um crítico mineiro, de Juiz de Fora, hitchcockiano de carteirinha, Francisco Carlos Lopes, escritor e jornalista, realizou uma exegese de Psycho, que, aqui, vai um trecho:
"A grande cena do filme todo, para mim, aliás, nem é a do chuveiro, mas aquela em que Norman leva um sanduíche para Marion e conversa com ela, falando das armadilhas particulares em que todos nós, desolados seres humanos, nos sentimos viver, em alguns momentos, e dentro das quais nos debatemos sem conseguir sair (e que angústia há em quando ele fala da loucura da mãe e dos lugares chamados "hospícios"!). Ninguém precisa ser psicótico para entender aquela alma, aquela treva que é seu néctar e veneno. O diálogo é fabuloso. Perkins será lembrado por toda eternidade por esse personagem. Não teve nenhum outro papel tão denso assim".

Continua Lopes: "Hitchcock era um neurótico consumado, mas um neurótico de bom-gosto. Não queria, por exemplo, que o filme fosse a cores para que a cena do assassinato do chuveiro, com todo o sangue escorrendo, não fosse de um realismo muito grande - achava que seria excessivo. Mas mostrava, pela primeira vez no cinema americano, uma privada, o som de uma descarga, detalhes íntimos e alusivamente sórdidos daquele motel que, por sua discrição relativa, são até hoje muito mais fortes que muitas cenas deslavadas que os filmes de suspense, depois de tanto tempo, podem mostrar a espectadores sádicos que, decididamente, não se impressionam (nem se comovem) com mais nada e com o bom-gosto não fazem nenhuma espécie de pacto".

PSICOSE (Psycho, 1960), de Alfred Hitchcock. Produção: Alfred Hitchcock (não creditado). Roteiro> Joseph Stefano, baseado no livro de Robert Bloch. Fotografia: John L. Russell. Montagem: George Tomasini. Créditos de Saul Bass. Elenco: Janet Leigh (Marion Crane), Anthony Perkins (Norman Bates), Vera Miles (irmã de Marion), John Gavin (amante de Marion), Martin Balsam (detetive Albogarst), John McIntire (xerife), Pat Hitchcock (secretária do escritório), Simon Oakland (psiquiatra), Mort Mills (patrulheiro rodoviário).

05 setembro 2011

"La Dolce Vita" ainda permanece na memória

La dolce vita (1960), de Federico Fellini, é um filme que causou imenso impacto na época de seu lançamento. Esta obra de Fellini assinala uma ruptura na sua filmografia, além de se constituir, também, um impacto na linguagem cinematográfica daquela época, ainda permeável a inovações e invenções.

Discurso sobre o processo decadentista da civilização ocidental em meados do século XX - e é impressionante a visão premonitória do autor, La Dolce Vita - aborda, com grande criatividade, alguns problemas existenciais do homem moderno, assumindo proporções de um vasto documentário de um tempo contraditório e conflituoso.

Fellini celebra e critica o hedonismo moderno nas andanças do jornalista Marcello (Marcello Mastroianni) por uma Roma devassa onde circulam, principalmente na famosa Via Veneto, intelectuais, celebridades, astros e estrelas do cinema. La Dolce Vita pode ser considerado o filme-síntese da primeira fase do cineasta, que abandona a decupagem clássica em função de um ritmo no qual as sequências se sucedem sem a tradicional progressão dramática. Cada sequência do filme tem, por assim dizer, uma propulsão restrita a ela mesma sem a necessidade dos liames narrativos à Griffith. O impacto de A Doce Vida foi enorme em sua época e a sua visão, hoje, ainda consegue atingir o deslumbramento de cinquenta anos atrás - assim como ocorreu com Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti. Há momentos antológicos, se o filme não fosse, ele mesmo, uma antologia: na abertura, o Cristo de gesso que passa de helicóptero sobre a Cidade Eterna serve como prenúncio da obra-prima que virá a seguir. Outro momento fulgurante é o aparecimento de uma estrela de cinema (Anita Ekberg) e sua visita, fantasiada de padre, à Catedral de São Pedro ou quando ela e Marcello se beijam na Fontana Di Trevi (revivido com singular poesia em Nós que nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola, 1974). Ou a desmistificação do marketing organizado em torno de um milagre religioso.

Fellini, com seu especial sentido de cinema, adentra no "dolce far niente" dos parasitas sociais que vivem à custa dos outros. A soirée na casa do filósofo Steiner (Alain Cuny) e seu apavorante suicídio são dois pontos dramáticos que causaram polêmicas quando do lançamento de La Dolce Vita há cinco décadas. De personalidade enigmática, mas sinalizadora de uma esperança para a humanidade em crise, Steiner, com sua morte imposta, com a destruição de seu ser - e pelo fato de, talvez, ser o único personagem positivo e consciente do filme, configurava uma esperança que se viu despedaçada no momento em que o cineasta mata a personagem.

Assim como, na derradeira seqüência de La Dolce Vita, aparece, enquadrado em toda a extensão da tela como um quadro de Hyeronimus Bosh, um peixe enorme que crava seu olho único sobre os sobreviventes da longa noite de loucuras, da notte brava.

La Dolce Vita, o sétimo de Fellini, engloba todos os anteriores - é, mais ainda, a soma de todos. Na sua filmografia se podem distinguir três fases: a primeira dos boas-vidas, das cabírias, da estrada e dos trapaceiros, onde o cineasta ainda se atém a um discurso moldado aos cânones da narrativa mais acadêmica, ainda que, se bem observados, estes filmes da primeira fase já rompem com o academicismo; e La Dolce Vita, em 1960, inaugura a segunda fase e registra um desprendimento visível com a etapa anterior.

Existe um Fellini antes de La Dolce Vita e um Fellini depois de La Dolce Vita. O corte longitudinal viria, no entanto, em 8 ½ (1964), onde a narrativa, de estrutura complexa, de inserção, mistura tempo e espaço; a terceira fase pode ser considerada aquela que se inaugura com Roma (1971), quando o cineasta, a partir daí, começa a estilizar seus temas anteriores até chegar ao preciosismo de Amarcord (1976) - e neste há uma das seqüências mais bonitas de toda a história do cinema: a chegada triunfante do transatlântico Rex.

Se atualmente a exibição de La Dolce Vita não é capaz de despertar mais arruídos nem a ira dos moralistas e conservadores, na época, porém, este extraordinário filme chegou, inclusive, a ser condenado pela Igreja. Walter da Silveira (o grande ensaísta baiano hoje esquecido) publicou um longo ensaio no Diário de Notícias (depois reunido no livro Fronteiras do Cinema), no qual esclarece as intenções do artista sufocado, naquele tempo, pelas diatribes conservadoras: "Nada traduziu melhor o caráter ecumênico de La Dolce Vita do que a repulsa ostensiva ou disfarçada da maior parte do público, em todo mundo."

E disse mais: "Dizem que a audácia de Fellini consistiu unicamente em documentar as faces negativas do ser humano e do social, sendo a sua moral uma ética da impiedade, sem um clarão breve e tênue a iluminar as sombras densas. Mas, além de inverdade, por que recusar ao artista o direito ao realismo crítico do que vê de hediondo diante dele, sem poder enxergar, nas trevas, qualquer efêmera e insignificante luz? Fellini não mostrou que toda a humanidade está perdida: viu e expôs uma fração humana que já não ouve os frescos chamados da inocência, porque sobre as praias da vida o único rumor vem do mar de todas as angústias e a única imagem insistente deriva de um podre peixe simbólico, de olhos abertos três dias depois de morto."

Completa o ensaísta: "E tanto Fellini não quis exprimir a perda de toda a humanidade, porém somente de uma parcela, que, do ponto de vista do estilo, da linguagem, La Dolce Vita não constitui uma unidade narrativa, mas várias que se interrompem e alternam, com o nexo ontológico permitido pela presença contínua de Marcello, o jornalista que vê o mal e de tanto vê-lo acaba por participar de sua crueldade e de seu egoísmo".

La Dolce Vita já se tornou há muito tempo um clássico da sétima arte. Realizado em plena efervescência da renovação da linguagem cinematográfica, em fins dos esfuziantes anos 50, quando explodia por todas as partes uma neo-avant-garde - Nouvelle Vague, Cinema Novo, Free Cinema, underground novaiorquino, Resnais, Antonioni, Godard..., o filme de Fellini, além de documento de uma época, possui uma beleza extraordinária. E entrou direto para o folclore internacional de nossa época; o próprio título foi imediatamente incorporado ao jargão jornalístico universal; os paparazzi da Via Veneto revelaram-se parentes próximos de certa fauna de fotógrafos furões do mundo inteiro.

04 setembro 2011

"Deus sabe quanto amei", de Vincente Minnelli

O título da obra-prima de Vincente Minnelli em português, Deus sabe quanto amei, vem a desmerecer o filme e pode fazer parecer se tratar de um melodrama banal. O original é Some came running e que, traduzido ao pé da letra, seria Alguns vieram correndo. Na França, foi chamado de Comme une torrent... (Como uma torrente...).

Longe das telas há muitas décadas (foi visto na época de seu lançamento e depois desapareceu), Deus sabe quanto amei, para a satisfação dos admiradores de Minnelli (entre os quais se inclui este comentarista), saiu, há algum tempo, em DVD luzidio, em cópia muito boa distribuída pela Warner Bros como um dos integrantes da Coleção Frank Sinatra. Trata-se de acontecimento da maior importância para os minnellianos, os quais, infelizmente, são poucos no Brasil. Mas a sua revisão o coloca entre um dos melhores filmes americanos de todos os tempos.

O filme é um retrato da sociedade americana na década de 50, realizado com o requinte particular de Minnelli. Baseado no livro de James Jones (o mesmo escritor de A um passo da eternidade), Some came running, para ser melhor apreciado, precisa estar contextualizado na obra do diretor. Realizador de extremo bom gosto, Minnelli se dividiu, em sua trajetória de funcionário da Metro Goldwyn Mayer, entre os insuperáveis musicais que dirigiu (O pirata, A roda da fortuna, Sinfonia em Paris, Gigi, A lenda dos beijos perdidos...), os dramas ásperos (Assim estava escrito, A cidade dos desiludidos...), e as comédias românticas (Papai precisa casar, Teu nome é mulher, Brotinho indócil...).

Em Some came running, Frank Sinatra é um romancista frustrado que depois de longo tempo retorna à sua cidadezinha e reencontra, nela, seu irmão rico e mesquinho (o grande Arthur Kennedy). Na verdade, depois de uma grande bebedeira em Chicago, na qual houve briga e agressão, o personagem de Sinatra foi colocado no ônibus em direção à cidade natal. Junto, viaja uma prostituta, Shirley MacLaine, no papel que despertou os olhares da crítica internacional, que se apaixonara por ele. Quando chega, janta na casa do irmão (que lhe colocara ainda menino num orfanato de onde fugira para ficar on the road), conhece uma professora de literatura que admira seus livros e pela qual tem um romance (Martha Hyer) e faz amizade com um bon vivant, jogador profissional (Dean Martin).

O filme caminha a passos lentos, mas rigorosos, em direção à tragédia final no parque de diversões, quando Minnelli exercita o fulgor de sua esplendorosa mise-en-scène, a utilizar, com grande estesia, a montagem paralela e as cores como um arabesco para a composição de seu painel trágico.

O que pode haver de tão especial num filme à primeira vista simples e até mesmo estruturado dentro da convenção estabelecida do estilo de representação do cinema americano? O diferencial reside, a rigor, na escrita minnelliana, no seu modo de estabelecer e articular a narrativa. Há, bem observado, um particular sentido de composição dos enquadramentos (e sendo o filme em cinemascope, Minnelli sabe encher a tela larga com eficiência dramática, a fazer com que seus personagens habitem-na com funcionalidade do espaço cinematográfico). E impressionante o seu conceito de duração das tomadas. A bem ver, o filme se estrutura, como se disse, a passos lentos, como se tudo estivesse preparado em função da catarse final, um grand finale no qual o artista que é Minnelli se mistura com a arte de um pintor e de um músico, já que a montagem é, no final das contas, pura pulsação, puro ritmo, puro timing.

O equilíbrio de composição da estrutura narrativa minnelliana (e não se está a falar apenas de Some came running, mas de todo o cinema deste realizador) é de uma extraordinária força dramática. No caso específico de Some came running, o melodrama é elevado ao patamar trágico. A tragédia do homem e da procura do amor. A tragédia de uma sociedade viciada e preconceituosa. A tragédia que enleva e que proporciona a ars poética.

Com o cinemascope, o registro visual que Minnelli estabelece é no sentido do aproveitamento do espaço maior com tomadas longas nas quais, ao invés de a câmera se movimentar, são os atores que habitam o espaço, que se deslocam neste para evitar o corte. Assim, tem-se as tomadas com maior duração em todo o decorrer do filme, à exceção do final do Carnaval no parque de diversões, quando o realizador muda o registro visual, e os cortes se sucedem com maior rapidez num festival de luzes e cores, ângulos insólitos, pulsação, ritmo. Nesta seqüência derradeira, vê-se o estilo minnelliano dos seus musicais primorosos e o cinema se estabelece como timing ou, melhor dizendo, o que se tem, nesta seqüência, é a beleza do cinema em sua quintessência. Um design visual de grande impacto.

Além da seqüência final do Carnaval, que é antológica, e já registrada como um dos momentos sublime da história do cinema, há uma outra também de sublimidade mais de um ponto de vista humanístico do que estético. É aquela quando Sinatra lê para MacLaine o seu conto que a professora de literatura consegue publicá-lo numa revista de Nova York.

Sentada no chão, os braços à volta dos joelhos, de calças cor-de-rosa, Shirley está toda nele e nada no que ele diz. A câmara fica fixa no rosto de Sinatra, e tudo quanto o filme e a vida até aí acumularam nele (tempo, décor, cidade, néons, família, a loura e frígida professora) sai cá para fora no inesperado pedido de casamento. A personalidade da personagem de MacLaine é de uma humanidade e de uma generosidade capaz de dotá-la de uma singularidade e ser ela assemelhada a uma Cabíria, aquela prostituta de Fellini interpretada por Giulietta Massina que, por sinal, MacLaine também a viveu na versão musical de Le notti de Cabiria dirigida por Bob Fosse, Sweet Charity.

No final do filme, a câmera se desloca para mostrar, abalados, os personagens da tragédia durante o enterro dela. Dean Martin, o jogador inveterado, que nunca admitira tirar o seu chapéu, mesmo a dormir ou num hospital, tira-o para ela, ele que sempre criticara as mulheres, mas que, naquele momento, se rende e presta uma homenagem a seu modo à personagem de MacLaine. E a câmera millenniana se movimenta para observar a paisagem. A vida continua, afinal de contas.

Há cineastas, como observou o crítico lisboeta João Bénard da Costa, como há pessoas, que procedem por silogismos e assim destroem tudo e se destroem a si próprias. Há cineastas, como há pessoas, que estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de avis raras.

Os minutos finais de Some came running representam uma admirável lição de como integrar os esquemas narrativos do cinema musical dentro de uma estrutura estética fundamentalmente dramática.

03 setembro 2011

Vida longa à Jornada de Cinema de Guido

Tuna Espinheira acompanha a Jornada Internacional de Cinema da Bahia desde as suas primeiras manifestações, participando quase sempre com um curta (e várias vezes premiado), e escreve, aqui, um artigo no qual salienta e ressalta a importância da Jornada, que vive, neste 2011, o maior sufoco financeiro de sua história. O blog o acompanha nesse seu esforço.

Era uma vez, na década de setenta... Dr. Walter da Silveira, fazia algum tempo, deixara órfão e à deriva, o cinema baiano. Guido Araújo, ainda recém chegado da Europa, ode passou largo período estudando cinema. Resolveu criar a Jornada de cinema da Bahia, em 72. Cosme4 Alves Neto, (Diretor da Cinemateca do MAM, RJ); Rudá de Andrade (um dos fundadores da Cinemateca de SP); Fernando Coni Campos, Nelson Pereira dos Santos, Olney São Paulo, entre muitos outros, fizeram presença. Um evento, quase caseiro, neste primeiro momento. Logo-logo- tomaria impulso, passaria a Jornada Nordestina, Nacional, e mais tarde Internacional.

Foi durante décadas, o acontecimento cinematográfico, voltado para o cinema cultural, mais importante do Brasil. Um oásis libertário nos anos de chumbo destinado a ser um evento democrático, abria as portas para as inscrições de filmes em Super-8, 16 mm, 35 mm. A linguagem digital ainda estava por nascer. Todos eram projetados e exibidos, nos chamados horários nobres. Principalmente, participavam dos aguerridos debates. Muita polêmica, brigas boas e outras nem tanto. Mas, era assim a Jornada. Ali nasceu a ABD, ganhou sangue novo os Cines Clubes, palco de uma luminosa resistência cultural à ditadura.

É preciso não se perder de vistas que, o cinema baiano, no limbo, recebeu o espinafre do Popeye, através da Jornada. Muitos tomaram gosto, se formaram, contraíram a febre do cinema, pelos contatos, exibições, participação na arena de debates, justamente nestes eventos.

Graças aos ensinamentos do Mestre Dr. Walter da Silveira e a saga da Jornada de Guido, existe-resiste o cinema baiano (mesmo ainda movido com produções bissextas, em termos do filme de longa metragem).

Mesmo sabendo estar clamando no deserto, não poderia me furtar de expor minha indignação, por ter lido, hoje, 31 de agosto, em A Tarde, uma reportagem afirmando que, a Jornada, nº 38,vai acontecer entre os dias 09 e 15 de setembro, com um orçamento escandalosamente pífio, desrespeitoso, para um acontecimento que, fez e faz-história. É de lascar! Triste Bahia!

Tuna Espinheira

01 setembro 2011

Vincente Minnelli: sofisticação e estesia

Com a mostra completa de Vincente Minnelli em cartaz no Rio de Janeiro, um acontecimento raro na vida de um cinéfilo digno desse nome, resta, apenas, lamentar que não esteja disponível para outros estados brasileiros. Os soteropolitanos já estão fartos de tanta exclusão (nada de Resnais, de Ford, de Hitchcock). E principalmente os soteropolitanos que não possuem acessos a determinadas sinecuras que os permitem viagens e mordomias com direito a cama, mesa, banho, e outros mimos. Mimos por mimos, fico com Gigi, encantadora personagem do filme do mesmo nome dirigido pelo grande Minnelli, a quem, novamente, faço uma singela e pequena homenagem - o post é uma republicação. Mas vale sempre a repetição em se tratando de cineasta de tal envergadura.

 Em 1903, nasce em Chicago (Illinois) Vincente Minnelli, que vem a morrer em 1986, aos 83 anos de idade, considerado um dos maiores diretores do cinema americano de todos os tempos. Ainda pequeno, apenas a iniciar o seu conhecimento do mundo, aos 3 anos, atua na companhia paterna Minnelli Brothers Dramatic Tent Shows, especializada em espetáculos de vaudeville. Adolescente, o jovem Minnelli estuda decoração e trabalha como fotógrafo em um estúdio de Chicago, revelando, desde já, o gosto pela coreografia e pela composição. O circuito Balaban & Kats lhe contrata como decorador e figurinista, trabalho que desempenha até ser nomeado diretor artístico do Paramount Theatre de New York e do imponente Radio City Music Hall. Distante de sua terra natal, e com residência permanente em New York, dá início ao trabalho de direção de balés e espetáculos musicais na Broadway (At home abroad, Ziegfeld Follies, The show is on, etc). Em 1937, contratado pela Paramount, muda-se para Hollywood e, três anos depois, a MGM, o estúdio de maior envergadura na época, tira-o da empresa onde trabalha para ficar full time a seu serviço. Louis B. Mayer, acompanhando seus projetos na Paramount, vê em Minnelli um futuro promissor em seu estúdio, considerando que este é o que mais investe em musicais. Na MGM, Minnelli leva a cabo um profundo aprendizado em todos os departamentos de produção. Para assumir a direção, basta, apenas, uma oportunidade, que lhe é chegada com o convite de Arthur Freed (famoso produtor de musicais, entre eles Cantando na chuva) para dirigir, em 1942, Uma cabine no céu (Cabin in the sky), fantasia musical sobre as comunidades negras do sul.

Todos os historiadores do filmusical americano não têm dúvida ao afirmar que o gênero se transforma radicalmente com a chegada de Minnelli à Hollywood, pois o seu gênio faz integrar os elementos ficcionais da história com a música e as canções. Estas se tornam o próprio assunto do filme. Grande especialista em espetáculos musicais, Vincente Minnelli, após conceber Agora seremos felizes (Meet me in StLouis, 1944), O ponteiro da saudade (The clock, 1944), Yolanda e o ladrão (Yolanda and the thief, 1946), e O pirata (The pirate, 1947) - que exerce influência poderosa em Gene Kelly, que, aqui, trabalha ao lado de Judy Garland, a qual se casa com o realizador, encantado que fica Minnelli pelo extraordinário talento dessa cantora e atriz única, revoluciona o gênero, inaugurando, com eles, uma nova escola do musical cinematográfico, que logra seus títulos oficiais de nobreza com Sinfonia de Paris (A american in Paris, 1951), filme pelo qual recebe o Oscar de melhor direção, que voltaria a ganhar em 1958 por Gigi.

Martin Scorsese, em sua aula sobre o cinema americano, que saiu completa em três vídeos, destaca, entre as suas sequências preferidas, a de Meet me in St. Louis, quando a menina, numa noite de Natal, ao saber que vai sair de sua cidade, quebra todos os bonecos de neve que ela constrói no quintal. Há, nesta seqüência admirável, uma conjunção musical e dramática poucas vezes superada. Em Sinfonia de Paris, que tem roteiro assinado por Alan Jay Lerner (My fair lady), com a partitura recheada de George Gershwin, um pintor americano (Gene Kelly), que vive em Paris, é cortejado por bilionária (Nina Foch), mas gosta de uma linda moça (Leslie Caron), que, no entanto, é noiva de seu amigo francês (Georges Guétary).

Segundo o historiador francês Georges Sadoul, este cine-balé não é uma revista em estilo de teatro de revista, mas uma ópera cujas danças e músicas fazem parte de uma ação dramática. A coreografia, criada por Gene Kelly, é esplendorosa, principalmente nos 17 minutos finais, quando presta uma homenagem aos grandes mestres franceses: Toulouse-Lautrec, Raoul Dufy, Utrillo, Renoir, etc. Minnelli, porém, não se consolida apenas como um brilhante diretor de filmes musicais. Em sua extensa filmografia, podem ser distinguidas três vertentes: a do musical, que tem em A roda da fortuna (The band wagon, 1953) sua obra mais perfeita, a que se deve aplicar o termo obra-prima do gênero, a dos dramas ásperos e desesperados, cujos exemplares mais notórios são Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), Deus sabe quanto amei (Some came running, 1959), A cidade dos desiludidos (Two weeks in another town, 1962), entre outros, e a da comédia agridoce, que se inaugura com O papai da noiva (Father of the bridge, 1950), passando por Chá e simpatia (Tea and sympathy, 1956), Brotinho indócil (The reluctant debutante, 1958) entre outras, até atingir a sua culminância absoluta em Papai precisa casar (The courtship of Eddie's father, 1963) - considerada por muitos minnellianos talvez a sua obra maior no gênero, comédias que constituem um dos testemunhos mais lúcidos e agudos da burguesia americana. Para o colunista, os melhores filmes de Minnelli são: Deus sabe quanto amei, Assim estava escrito, Papai precisa casar, A cidade dos desiludidos, e A roda da fortuna.

No primeiro, obra-prima absoluta, lancinante radiografia do american way of life em que Minnelli, num drama áspero, tenso, utiliza elementos do filmusical, resultando, com isso, uma mise-en-scène deslumbrante, de pura estesia, principalmente perto do final, quando da perseguição num parque de diversões. Neste momento supremo do cinema minnelliano, que reflete a trágica invasão da realidade num mundo ideal onde os personagens pensam em se refugiar, as cores, os objetos, as pessoas e o espaço são praticamente coreografados; e quase nunca se vê, na estética da arte fílmica, um testemunho tão intenso da eficácia de um autor que se utiliza dos elementos componentes da linguagem cinematográfica de maneira tão marcante. Neste filme, cujo título em português nada acrescenta a sua excelência, antes ridicularizando-o (o original Some came running quer dizer como uma torrente), um romancista volta à sua cidadezinha natal para reencontrar o irmão rico, Mas, a seu lado, viaja uma prostituta que se apaixona por ele. Com Frank Sinatra, Dean Martin e Shirley McLaine, todos inexcedíveis.

Se Billy Wilder, no expressionista Crepúsculo dos deuses (Sunset boulevard, 1950), oferece um retrato crítico de Hollywood, Minnelli, em Assim estava escrito, o consegue superar não somente pelo elo semântico - a força do tema - como pelo elo sintático - a mise-en-scène que, sobre ser a de Wilder impecável, atinge aquilo que alguns estetas chamam de maravilhoso. Não dá, aqui, neste espaço, para falar de The bad and the beautiful, tal a sua riqueza, tal a sua imensa beleza. Em poucas palavras: um escritor (Dick Powell), uma atriz (Lana Turner), e um diretor (Barry Sullivan), recordam em flash-backs como um famoso produtor (Kirk Douglas) os traiu. Partitura de alto nível de David Raksin. Papai precisa casar é um primor de comédia, a maior, sem dúvida, do autor, no gênero. Encontra-se aqui toda a maturidade de um mestre do cinema, que sabe equilibrar, com uma fluência assustadora, os elementos da linguagem, a utilizar, com engenho e arte, o espaço e o tempo cinematográficos.

Realizado em 1963, Papai precisa casar, no apogeu da desconstrução, quando a crítica mais enragé exige dos filmes uma rigorosa falta de linearidade, Minnelli, desprezando as circunstâncias, e, com isso, fazendo valer o seu modo de fazer cinema, recusa-se à abdicação do linear. O resultado é mais que perfeito, ainda que, o filme, alta voltagem como cinema, como arte, como testemunho, como comédia que sabe deliciar o espectador, passe despercebido pelas autoridades que carimbam o atestado de valor. Glenn Ford é um viúvo que se vê às voltas com três lindas mulheres que o cercam. Seu filho, um garoto de 10 anos (o futuro diretor Ron Howard), o ajuda na escolha, O trio é esplendoroso: Shirley Jones, Dina Merrill e Stella Stevens, que vem a trabalhar nesse mesmo ano em O professor aloprado, de Jerry Lewis.

No magistral A roda da fortuna, Tony Hunter (Fred Astaire), no ocaso de sua carreira, regressa a New York, onde é recebido por seus velhos amigos. Minnelli sinaliza, aqui, já em 1953, no ocaso do personagem interpretado por Astaire, num rasgo premonitório, a decadência do filmusical. A roda da fortuna tem alusões e citações, e o autor, avant la lettre, introduz, no cinema, a referência. Os antigos colegas do dançarino projetam montar um grande espetáculo na Broadway, com uma bailarina clássica, Cyd Charisse. A princípio desconfiado, Astaire, no entanto, com o desenrolar das situações, acaba por se apaixonar por ela. Um famoso diretor, Jeffrey Cordova (interpretado por Jack Buchanan) transforma o espetáculo numa pomposa versão musical de Fausto, expressionista e pedante, que redunda em estrondoso fracasso. Astaire, porém, tenta reformula-lo com a ajuda de Charisse e consegue, na remontagem, um êxito surpreendente. Apogeu admirável da primeira etapa das experiências de Minnelli, filme-síntese, portanto, A roda da fortuna oferece uma imagem da vida pública e privada dos artistas que fazem o espetáculo. A sua atração, porém, reside nos pequenos, mas significativos, detalhes do cotidiano dos bastidores, em notações autobiográficas e satíricas. Mas onde o filme alcança sua dimensão mais específica está na singular identificação entre Fred Astaire e seu personagem, talvez a expressão mais acabada do mito pessoal do grande bailarino em números admiráveis como, logo no início, com o engraxate, e a dança de amor no parque - com uma Cyd Charisse na plenitude de suas faculdades. A culminação espetacular do filme se encontra no balé Girl Hunt - brilhante e violenta sátira dos filmes de detetive e do chamado cinema noir, que, sem nenhuma dúvida, é um dos mais completos e inteligentes números musicais da história do cinema.

Na vertente dos dramas ásperos, além de Assim estava escrito, um outro, que lhe parece uma espécie de continuação, e de impacto extraordinário, é A cidade dos desiludidos, de 1962. A história gira em torno de Jack Andrus (interpretado por Kirk Douglas), que, após temporada de descanso numa clínica, é chamado por Kruger (Edward G. Robinson), que está, em Roma, dirigindo um filme. Jack toma o avião e vai se encontrar com o amigo, ainda que amargurado e deprimido pela vida. O contato, no entanto, com a doce beleza de Dahlia Lavi, e a volta à atividade profissional, oferece-lhe a possibilidade de recomeçar de novo, ofertando-lhe um novo ânimo, de libertar-se de suas obsessões e das amargas lembranças de sua mulher (Cyd Charisse). Mas há um acidente de percurso com o ataque cardíaco de Kruger, que fica impossibilitado de trabalhar e Jack se vê obrigado a assumir a direção do filme. A chegada da ex-esposa, no entanto, e o stress do trabalho, levam Jack a uma crise. Contornada, e definitivamente curado, Jack retorna aos Estados Unidos para recomeçar sua carreira de diretor. O título original do filme, traduzido, é Duas semanas em outra cidade, tempo que Jack passa em Roma. Um ator (Douglas) e um diretor (Robinson) vivem encerrados em um mundo de sonhos para escaparem da realidade de seus fracassos. Mas somente o primeiro consegue se libertar, sendo que sua penosa experiência constitui a trama de A cidade dos desiludidos. Continuação espiritual de Assim estava escrito - uma das cenas desse filme serve para precisar a evolução psicológica de Jack, o filme oferece uma visão ácida do mundo cinematográfico de Roma. Pleno de observações incisivas e justas, como o tumulto da Via Veneto - o filme é realizado dois anos depois de La dolce vita - em torno da estrela italiana (Rosanna Schiaffino), as relações entre o produtor e o diretor, o ambiente das filmagens, etc. Minnelli, no entanto, não se limita somente a este aspecto, mas, superando as limitações melodramáticas da intriga, leva a cabo uma reflexão moral sobre a condição do cineasta, que vem a sintetizar o eterno conflito do homem entre a ilusão e a realidade, tema básico de sua obra.

PS: Acabo de ver, em dvd, Os quatro cavaleiros do apocalipse (The 4 Horsemen of the Apocalypse, 1962), de Minnelli, épico desenrolado durante a Segunda Guerra Mundial que prenuncia Os deuses malditos, de Luchino Visconti, e Lili Marlene, de Rainer Werner Fassbinder. Malhado pela crítica na época de seu lançamento, The 4 Horsemen of the Apocalypse foi um tremendo fracasso de bilheteria para uma produção cara e ambiciosa. Minnelli queria Alain Delon (que lhe foi apresentado por Visconti, mas a MGM vetou) ou Dirk Bogarde para o papel que ficou com Glenn Ford. Fiquei empolgado com a força da mise-en-scène minnelliana. Obra que precisa de revisão. Elenco soberbo: Lee J. Cobb, Ingrid Thulin (dublada por Angela Lansbury), Charles Boyer, Yvette Mimieux, Paul Henreid etc.