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15 novembro 2011

"Intriga Internacional", de Alfred Hitchcock

Filme-síntese de Alfred Hitchcock, obra-prima (se é possível que um autor tenha mais de uma), Intriga internacional (North by Northwest), lançado nos Estados Unidos em 17 de julho de 1959, acaba de completar 52 anos de existência.

Realizado entre Um corpo que cai (Vertigo, 1958) e Psicose (Psycho, 1960), North by Northwest é, a rigor, a narrativa de uma iniciação onde o herói é uma criatura de ficção - Roger Thornhill/Cary Grant - que se revolta contra um destino imposto pelas circunstâncias e luta contra uma encenação que lhe é determinada e da qual procura escapar.

Desde a abertura dos créditos, com as linhas que se cruzam, para a emergência de edifícios, um magnífico e inovador projeto de Saul Bass, com a partitura dissonante de Bernard Herrmann, a mise-en-scène se insinua, a abastecer o espectador com um trato raro das possibilidades expressivas da arte do filme.

Fonte de inspiração para a maioria dos thrillers dos anos 60 (inclusive os primeiros filmes de James Bond, o agente secreto 007, que, segundo François Truffaut, não existiriam sem o advento de North by Northwest), Intriga internacional é uma obra de gênio e sintetiza toda a primeira fase americana de Hitchcock, assim como Os 39 degraus (The thirty-nine steps,1935) pode ser visto como uma súmula de seus primeiros filmes ingleses.

Roger Thornhil é um americano típico de meia-idade que faz parte da maioria que caracteriza a sociedade de consumo estadunidense. Na opinião de Noel Simsolo, exegeta da obra hitchcockiana com tese de doutorado na Sorbonne sobre o autor, Roger não é totalmente adulto, desenvolveu-se por preguiça, não tem uma personalidade marcante, não tem alma. As forças dos espiões e, indiretamente, da polícia, fazem com que se transforme em um outro: Kaplan, bode expiatório, criação fictícia das forças do serviço secreto. Por causa dessa identificação, como observa Simsolo, Thornhill terá o seu calvário, o que o levará à união com Eve - a possibilidade de uma vida real para ele.

Na primeira parte do filme, Thornill é vítima dos outros e encontra Eve/Eva Marie Saint, agente duplo, mas não consegue perceber a realidade na qual se encontra envolvido. Intriga internacional é brilhante como idéia e como execução, porque puro cinema, pura "mise-en-scène" e, como narrativa de um itinerário, de um percurso, é, também, uma luta contra a encenação à qual o personagem é forçado a combatê-la. Hitchcock, com seu gênio, com a sua astúcia, com a sua inteligência, não estaria a fazer, neste filme admirável, uma reflexão sobre o próprio espetáculo cinematográfico?

A partir do meio, Roger abandona o combate impossível contra a representação (caça e a morte em questão) para se refugiar junto à polícia e aceita uma encenação tendente a salvá-lo e a fazer com que mereça Eve. No último terço do filme, Roger, ainda segundo Simsolo, recusa as consequências da representação que aceitou, e segue seu impulso, age sozinho e merece não apenas viver como ganhar Eve.

(A minha admiração por Intriga Internacional é enorme. O impacto inicial se deu quando o vi pela primeira vez nos anos 60, algum tempo depois de seu lançamento. A partir daí, anos sem o ver, com o filme apenas na memória, quando, em 1977, houve o seu relançamento em cópia nova. A constatação de sua grandeza não apenas se ratificou como aumentou muito, porque já um pouco mais afinado com a expressão cinematográfica. O tempo passou. Nos anos 80, North by Northwest é lançado em VHS, mas antes o tinha revisto em cópia espúria dublada na televisão. O seu lançamento em DVD restituiu a sua majestade. Comprei-o imediatamente e sempre o revejo. Pelo menos três vezes por ano. É quase uma terapia.)

Intriga internacional assombra o cinéfilo, e é uma lição fecunda de cinema, de mise-en-scène. Atestado do que disseram Claude Chabrol e Erich Rohmer no livro que escreveram sobre o mestre, Le cinema selon Hitchcock (que nunca saiu em tradução no Brasil): "Em Hitchcock, o conteúdo é a forma". Hitchcock, porém, se, atualmente, pode ser considerado uma unanimidade da crítica especializada, nas décadas de 40 e 50, no entanto, não era visto como um autor, mas como um habilidoso mestre do suspense. Foi preciso esperar a sua consagração pela revista francesa Cahiers du Cinema, que lhe descobriu as potencialidades expressivas como um dos maiores autores do cinema de todos os tempos. Por todo o respeito que tenho, por exemplo, em relação ao ensaísta baiano Walter da Silveira, em seu livro - uma belíssima reflexão sobre a arte cinematográfica, Fronteiras do cinema, não soube, porém, no ensaio As vertigens de Alfred Hitchcock, compreender a sua importância e a sua essência.

Mas como escreveu Truufaut: "Porque domina os elementos de um filme e impõe idéias pessoais em todas as etapas da direção, Alfred Hitchcock possui de fato um estilo, e todos reconhecerão que é um dos três ou quatro diretores em atividade que conseguimos identificar só de assistir a poucos minutos de qualquer filme seu".

O mestre, ao perceber que o vilão não poderia estar concentrado somente na figura de James Mason, um ator de finesse insuperável, decidiu reparti-lo em três. Assim, há uma trindade na personificação da vilania: o próprio Mason (Vandamme), Martin Landau (Leonard) e um outro com cara sempre zangada e com um físico de origem germânica. No DVD que se encontra disponível, o roteirista genial Ernest Lehman comenta o filme cena por cena.

Mas, e a pedir a ajuda da exegese de Noel Simsolo (que está no livro Alfred Hitchcock, de Noel Simsolo, editado da Distribuidora Record na coleção Grandes Cineastas, tradução de Wilson Cunha do original publicado em Paris, 1969, pela Seghers), que se veja aqui a beleza dos significados que podem ser extraídos desta obra-prima: "O tema do filme, meditação sobre a vertigem de criar e amar uma obra de arte, explode no início da segunda parte, quando Thornill dialoga com o chefe dos espiões (James Mason). Conversa sobre o papel do objeto de arte ou sobre as possibilidades da alma. Diálogo em que aceitamos Eve como uma obra de arte, meio de transição entre o sonho e a realidade, entre o corpo e o espírito, entre a passividade e o movimento, entre as trevas e a luz, a ignorância e o conhecimento. No fim do filme, o plano de um trem entrando em um túnel marca a posse sexual de Eve por Thornill e a posse da vida e do filme por esta personagem de ficção. North by Northwest, portanto, é o negativo de Vertigo.

Duas seqüências, pelo menos, são antológicas: a do teco-teco que persegue, em amplo espaço aberto, num campo de trigo, Roger Thornill, e a da fuga do casal pelos Montes Rushmore. Nesta última, há notória influência de Eisenstein, principalmente no que se refere à disposição, dentro do plano, dos volumes e da arte de significar pelo espaço cinematográfico. Hitchcock disse certa vez em uma entrevista a Le Monde logo após o lançamento de North by Nortwest em Paris: "Faço o máximo para ligar o 'décor' à ação. Em North by Nortwest, situei a perseguição nos Montes Rushmore onde estão esculpidos os rostos dos presidentes dos Estados Unidos. Parece-me interessante mostrar a silhueta e a figura dos atores tão pequenos contra os grandes narizes e orelhas dos presidentes. Eu gostaria de ter filmado todas as cenas lá, mas não me permitiram. Pensei mesmo em fazer com que Cary Grant entrasse pelas narinas de Abraham Lincoln, mas é claro que isto era impossível".

E mais: "Minha lógica é uma lógica de mórmon. Vocês conhecem os mórmons? Quando as crianças fazem uma pergunta difícil, eles respondem: 'Vá brincar, menino'. Existe algo de mais importante do que a lógica, é a imaginação. Se pensamos primeiramente na lógica, não podemos imaginar mais nada. Frequentemente, trabalhando com meu roteirista, eu lhe dou uma idéia: 'Mas isto é possível!'. A idéia é boa, apesar de ela ir contra a lógica. A lógica deve ser jogada pela janela".

13 novembro 2011

Cineastas baianos conversam com Jaques Wagner


Recebi uma mensagem do presidente da Associação de Produtores e Cineastas da Bahia (APCB) na qual contém a carta dirigida pelos realizadores baianos ao governador Jaques Wagner e um relatório da reunião escrito por Olavo. Seguem abaixo os dois textos como os recebi. E abrindo aspas:

Salvador, 9 de novembro de 2011
Excelentíssimo Senhor Jaques Wagner
Governador do Estado da Bahia Senhor Governador:

A Associação de Produtores e Cineastas da Bahia - APCBahia, aqui representada por cineastas e produtores, inicialmente manifesta o agradecimento por sua gentileza em nos receber neste dia. Consideramos este encontro por demais oportuno, visto que estamos vivendo um momento histórico. Quatro filmes baianos estão sendo exibidos simultaneamente em salas do circuito comercial na Bahia e no Brasil, além de vários outros circulando em festivais nacionais e internacionais.

A nossa vocação para o cinema vem se consolidando ao longo de décadas, onde foi construída uma significativa filmografia, que precisa ser mais conhecida e valorizada. Em 10 anos produzimos 32 filmes longa metragem. Esta frondosa lavra, que vem obtendo tão ampla receptividade de público, crítica e premiação em festivais, precisa de um apoio mais intenso do Estado para manter uma continuidade e ampliar seu desenvolvimento. Não podemos mais voltar aos tempos dos filmes “bissextos”. Compreendemos o audiovisual como um segmento com alto potencial de comunicação e de forte impacto econômico no mundo. Mas, é sobretudo o cinema que lhe dá o fundamento de linguagem e investe em abordagens não convencionais, na busca constante de processos de identificações e interatividades, fatores de suma importância na discussão de problemas relacionados às questões culturais, comportamentais, tecnológicas e ideológicas. O cinema se desenvolve a partir do discurso político dessas contradições levando personagens e situações ao furacão existencial do cotidiano numa época onde intensas transformações acontecem na vida de jovens em busca de novos paradigmas. Trama de utopias revolucionárias no mundo das idéias e das práticas. É através do cinema que (re)escrevemos a nossa cultura na sua destinação histórica de universalidade e (re)ligamos os nossos costumes mestiços com as vertentes culturais das nações e dos povos fundadores, provocando novos encontros, novos conflitos, novas soluções e o consequente surgimento de novos signos culturais. E para isso, faz-se necessária cada vez mais uma política de fomento à produção de filmes, da preservação da nossa memória, das promoções de mostras e seminários reflexivos sobre o nosso cinema. O cinema é uma legitima expressão artística e cultural do nosso povo, mas também um instrumento destacado na cadeia produtiva da economia estadual. O cinema carrega consigo toda uma vertente econômica, sendo capaz de gerar emprego, renda e ser um dos mais eficientes canais de difusão da imagem da Bahia para o Brasil e o Mundo. Com isso atraímos investimentos, turistas e negócios, que significam recursos financeiros para o Estado, fortalecimento do mercado interno e a consequente ampliação da arrecadação tributária. Em qualquer lugar do mundo onde for exibido um filme baiano, a imagem da Bahia estará despertando interesses: políticos, econômicos ou culturais.Reconhecemos que as mudanças operadas na política cultural baiana nesses últimos cinco anos representam o primeiro impulso no sentido de retomar o contato do Estado com as forças criativas profundas que caracterizam a nossa história. Mas, por outro lado, a nossa atividade vive em permanente insegurança na medida em que a dependência de editais e programas de fomento cujos valores são decididos a cada ano impedem a cadeia produtiva de planejar suas atividades e dificultam a comercialização e difusão dos filmes realizados. Por conta disto, apresentamos como uma das nossas principais reivindicações a implantação de Editais de cinema, como a mola mestra propulsora de uma política para o audiovisual que necessita dar suporte à continuidade de produção de filmes longa metragem na Bahia. Queremos Editais de cinema que incorporem recursos para as etapas iniciais de realização (pesquisa, roteiro e elaboração do projeto), produção (execução do projeto), finalização (complementação de longas) e distribuição. Isso necessariamente irá fortalecer o mercado estadual para profissionais de cinema em todas essas áreas. E consideramos fundamental que sejam adotadas as providencias adequadas para introduzir na legislação ordinária do Estado, a obrigatoriedade de Editais anuais, garantindo a continuidade e renovação permanente do cinema na Bahia. Queremos Editais como Politica de Estado, não politica de uma gestão, de secretário ou governador. Assim como é indispensável a criação de marcos legais que contemplem as especificidades do campo da cultura e que regulem o fomento ao setor audiovisual, de modo a favorecer a sustentação da atividade para as empresas produtoras locais. Através de Editais dos mais diferentes elos que unem a carpintaria da construção cinematográfica, o cinema brasileiro desde 2003 vem experimentando um novo ciclo criativo e vigoroso. Na Bahia, mesmo tendo sido lançados apenas cinco Editais nos últimos 13 anos, a produção local vem se destacando nacionalmente. A consolidação dos Editais anuais, a partir do início de 2012, muda qualitativamente este quadro, com o inevitável crescimento da nossa produção baiana. Para nós, os Editais são instrumentos estimuladores, democráticos e confiáveis. Acreditamos que adotando os Editais anuais de cinema, definidos em lei, como centro de uma Política de Audiovisual na Bahia, a partir deles outras ações e qualificações poderão se agregar no entorno, como o estímulo a produção de eventos sobre cinema, a criação de uma Revista de Cinema, a implementação de um Programa de Difusão de Filmes e de um Circuito de Exibição de Filmes Baianos dentro e fora da Bahia, a estruturação de núcleos que deem suporte as produções cinematográficas, a formação de mão de obra qualificada para o mercado profissional, a formalização de convênios entre o governo da Bahia e instituições baianas e nacionais buscando uma maior abrangência na captação de recursos para a produção e difusão do cinema na Bahia etc. Governador, queremos que o Senhor se aproxime do cinema baiano e o eleja como uma das prioridades estratégicas do seu governo. Precisamos de Editais anuais, definidos em lei. Queremos seu envolvimento direto na formalização de convênio entre o Governo da Bahia e instituições como Ancine, Petrobras, CHESF, FIEB, Polo Petroquímico, Polo de Informática etc, objetivando a injeção de recursos na produção e difusão do cinema na Bahia. Queremos também seu apoio e intermediação entre as Secretarias de Cultura, Planejamento, Turismo, Educação, Comunicação e Indústria & Comércio, para que possamos construir de forma transversal, apoios e suportes ao fomento do cinema baiano. Por fim, desejamos exibir filmes baianos para o Senhor e consideramos muito importante a sua presença nas nossas pré-estreias, sentimos falta disto, pois sua presença amplia a dimensão simbólica do cinema baiano. Isso fortalece nosso cinema. Afinal, a imagem da Bahia também está no cinema. Associação de Produtores e Cineastas da Bahia (APCBahia)

Jorge Alfredo Guimarães

Presidente

Relatório da reunião da APCBahia com o Governador Jaques Wagner

A reunião na governadoria começou as 17h 55. Além do governador Jaques Wagner, estavam presentes os representantes da APCBahia: Jorge Alfredo, Sylvia Abreu, Antonio Olavo, Edgard Navarro e João Rodrigo. Pela Secult estavam o secretário Albino Rubim, Sofia Federico, Nehle Franke e Fátima Froes.

Jorge abriu a reunião falando que há muito tempo desejávamos ter esse encontro com o governador e nossa expectativa é muito positiva, por conta disso estar ocorrendo em um momento muito especial que estamos vivenciando no cinema baiano, com a exibição simultânea de quatro filmes nas salas do circuito comercial: Filhos de João, de Henrique Dantas, Bahêa Minha Vida, de Márcio Cavalcante, Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro e Capitães da Areia, de Cecília Amado. Ressaltou ainda o fato que não somente estes filmes estavam em cartaz simultaneamente, algo de importância histórica, como também, todos eles estavam tendo excelente receptividade de público. Citou os números mais recentes de Bahêa Minha Vida (72 mil), Capitães de Areia (150 mil), Filhos de João (17 mil) e Jardins (que em apenas um final de semana chegou a 3.300 espectadores).

O governador interveio perguntando o que significavam estes números? Qual era seu comparativo e relevância?

Houve então várias pequenas intervenções de Jorge, Sylvia, Edgard, João e Olavo, expressando dados e informações que ressaltavam a importância desses números, levando em conta a média de público dos filmes nacionais. Falou-se em casos como Tropa de Elite, Dois Filhos de Francisco etc, filmes que ultrapassaram 1 milhão de espectadores, mas estes são exceções no cinema nacional.

João falou do êxito de Filhos de João, de Henrique Dantas, que continua circulando nas salas comerciais do Brasil e já percorreu vários países do mundo, tendo na semana passada estado em Barcelona e esta semana estava sendo exibido em Berlim. Isso era importante porque era a música e a cultura baiana que estavam sendo vistas no mundo.

Jorge falou que nos últimos 10 anos a Bahia produziu 32 filmes e destes, muitos estão a espera de uma distribuição digna. E nós gostaríamos que o governador elegesse o cinema, como uma das prioridades estratégicas do seu governo.

Wagner respondeu que uma das prioridades estratégicas do seu governo é a cultura, e que evidentemente cada segmento da cultura busca atrair mais recursos para sua área, todos querem mais dinheiro, porém, ocorre que o cobertor é curto: “puxa de um lado, falta de outro”. Mas reconhece que o cinema tem suas particularidades, pois realmente é caro fazer cinema. Criticou as leis de incentivo, afirmando que os empresários precisam botar dinheiro próprio na cultura e não ficar apenas se valendo da renúncia fiscal.

Após esse preâmbulo, foi lida por Olavo a Carta/Documento que a APC elaborou para ser entregue ao Governador (reproduzida ao final do Relatório).

Logo após a leitura da carta, o governador perguntou sobre quais as empresas que estão promovendo editais para cinema e se estes eram nacionais ou estaduais.

Sylvia falou sobre os editais e os apoios das empresas nacionais. Citou a Petrobras, dizendo ser a maior patrocinadora do cinema no Brasil, e que tem um edital nacional. Falou também da Chesf que não investe praticamente nada na cultura da Bahia e foi complementada por Olavo que disse que a Chesf embora gerisse grandes recursos hídricos na Bahia, praticamente somente investe em projetos culturais de Pernambuco. Sylvia falou também dos Editais do BNDES / Eletrobras etc. Jorge complementou dizendo que este momento vigoroso do cinema nacional, também está relacionado com a ação do Minc a partir da gestão Gil/Juca, que potencializou os Editais BO de apoio ao cinema e a descentralização dos recursos, abrangendo o Nordeste, principalmente Pernambuco, Bahia e Ceará. Na Bahia, esperávamos que esta tendência também se estabelecesse, com a consolidação e continuidade dos Editais anuais, e não foi isso que ocorreu. O Governo Wagner tem o Fundo de Cultura, FazCultura muito mais complementando os nossos filmes que já foram contemplados em editais nacionais.

Wagner perguntou quanto seu governo investiu em cinema.

Sylvia informou os valores do investimento do governo baiano desde 2007. Ao que Jorge entregou ao governador uma tabela preparada por Sylvia, que sistematizava esses dados por ano de investimento em filmes longa metragem: 2007 (R$ 1.537.992,03); 2008 (R$ 000,0000); 2009 (R$ 1.971.988,47); 2010 (R$ 1.579.136,36); 2011 (855.000,00). A seguir, Jorge falou da importância do Polo de Camaçari, chamado por ele de “a nossa Paulínia”, investir no cinema baiano e clamou o governador para abrir mais esta frente de captação de recursos.

Wagner fez algumas somas dos valores apresentados, enquanto Albino e Sofia intervieram com alguns outros dados. O governador tomou a palavra, e se dirigindo a Albino, disse que evidentemente qualquer decisão que ele venha a tomar será encaminhada junto com a SECULT, mas o que ele pensava, destacando os Editais como ponto central das nossas reivindicações explicitadas na Carta, era que poderia haver um processo de Edital, que assegurasse sua realização anual, por um período de tempo maior, por exemplo, 4 anos. Assim as produtoras e proponentes poderiam se planejar melhor. Isso precisaria ser melhor analisado, mas ele achava que essa forma facilitaria mais a realização dos Editais.

Jorge falou que os realizadores também precisam de um tempo mais longo para a concretização de seus filmes. E que muitas vezes um governo colhe um fruto que um outro governo plantou. Também falou sobre a Caixa 100 anos de cinema na Bahia, uma iniciativa importante, mas que poderia ter tido uma maior difusão e repercussão. Albino respondeu que a caixa foi uma iniciativa boa, no que foi reforçado por Sofia, dizendo que a Caixa foi distribuída para mais de 1.000 instituições (pontos de cultura e cineclubes etc.)

Wagner, mais uma vez se referindo à nossa Carta, disse que algumas coisas poderiam ser melhor ajustadas, se, por exemplo, toda a parte de divulgação dos filmes fosse para a Secretaria de Comunicação, com a utilização da verba de publicidade do governo. Jorge respondeu que considerava isso muito complicado, pois poderia alterar o equilíbrio de um Plano de Trabalho da produção de um filme, que tem suas regras e caminhos próprios, com tempos e formas especificas de conduzir seus projetos.

Edgard interveio falando sobre a importância deste encontro com o governador, recordando que em 1996 um grupo de cinco cineastas, entre os quais ele estava presente, tiveram uma audiência com o governador Paulo Souto e aquele encontro também teve um significado simbólico muito grande para o cinema baiano. Disse também que o filme Eu me Lembro, foi projeto de grande envergadura no cinema baiano, porquanto mais de 300 pessoas se envolveram diretamente com a produção. Este filme obteve várias capas dos cadernos de cultura dos jornais do Sul (FSP, O Globo, Estadão etc), quanto vale tudo isso? São coisas que ficam para a história. Enfatizou que essa prática cinematográfica na Bahia não pode sofrer descontinuidade. Destacou o quanto seria bom a presença do governador nos lançamentos dos filmes baianos e revelou que durante a pré-estreia de O homem que não dormia, no TCA lotado, ele cobrou a presença do governador, que não estava.

Wagner, disse que muitas vezes tem dificuldades de agenda e há todo uma logística a considerar quando se trata da presença do governador. Ele pessoalmente gosta de andar em ambiente público, e faz isso com frequência, mais até no interior do que na capital, mas que muitas vezes não pode estar onde gostaria. Considerou importante a presença do governador nestes momentos de pré-estreia, pois reafirmava o valor simbólico do cinema baiano para a população, mas que muitas vezes não dava pra ir...

Neste momento Jorge interveio e disse: “Então faça como o presidente Lula, traga o cinema baiano para dentro do seu gabinete. Vamos programar sessões de filmes em sua sala”. O governador sorriu com a sugestão.

João citou uma pesquisa realizada pela CNN, que apontou o Porto da Barra, como uma das mais belas praias do mundo. O seu filme Trampolins do Forte foi filmado basicamente no Porto da Barra. Isso aponta o potencial que tem o cinema de difundir mundo afora aspectos positivos da Bahia. Essa questão deveria interessar à Secretaria de Turismo. Aproveitando a deixa, Sylvia falou sobre a importância de conseguirmos que as companhias de aviação pudessem exibir nossos filmes durante os voos e lembrou que a AIR FRANCE já exibiu o filme Esses Moços, de Araripe, quando da existência da linha direta Salvador/Paris. No vôo da TAP Lisboa/Salvador, completou Jorge, bem que poderia ser disponibilizados nossos filmes no menu. E sugeriu uma Ação inicial de resolver os problemas de algumas produções que estão precisando de 200, 300, 500 mil para serem lançadas. E citou Pau Brasil, de Fernando Belens, Antonio Conselheiro, de Walter Lima, entre outros.

Wagner disse que poderíamos escolher 4 a 5 itens indicados no documento, independente do aspecto financeiro e os eleger como prioridades para serem resolvidos pelo governo. Chamando novamente a participação de Albino que pouco antes da reunião lhe falou do PEF (Programa Imagens da Bahia) convênio que foi celebrado entre o Irdeb e a Ancine, e está aguardando a captação de recursos nas empresas privadas, ele disse que não vê problema em ligar para as empresas e abrir o processo de captação. Sobre a solicitação de intermediação entre as secretarias citadas (Planejamento, Turismo, Industria e Comércio, Educação etc) disse que não vê dificuldade alguma em viabilizar isso e lembrou que o Secretario de Planejamento é irmão de um cineasta (Pola Ribeiro), e disse que também Leonelli (Turismo) era próximo dá gente... Falou também que não há problema em ligar para as companhias de aviação, como TAP e American Airlines, para negociar a exibição de filmes baianos. E citou também a importância de se constituir e consolidar um circuito de exibição de filmes no interior, aproveitando a estrutura do governo. E até mesmo nas praças esses filmes poderiam serem exibidos. Albino disse que isto já se faz presente nos centros e pontos de cultura do interior. Jorge disse que isso era importante, mas que se deveria levar em conta a qualidade de projeção dos filmes, que não poderia ser exibidos com qualidade baixa, como é feito atualmente. Centros Culturais como o João Gilberto, em Juazeiro, assim com o de Itabuna, e até mesmo em praça pública podemos fazer projeções de alta qualidade, de imagem e de som.

Buscando evitar a discussão de aspectos técnicos, os quais confessou que não tinha conhecimento, o governador reafirmou que deveria ser selecionados 4 a 5 propostas e definir quem as encaminharia, “quem faz o quê”. Ressaltou acreditar ser importante o estabelecimento de um prazo para o encaminhamento das questões.

Provocado por Olavo: “então o Senhor é simpático aos Editais?” Wagner respondeu que o Edital é o melhor processo de encaminhar as demandas que vem da sociedade. Disse que o governo já faz isso em muitas outras áreas e ele não vê problemas em se adotar para o cinema.

Jorge, falando sobre o somatório de nossas produções e a existência de editais, declarou que no governo Wagner somente houve dois editais, e a seguir, fez uma analogia com a construção do metrô, cujo planejamento atual é, até 2014, ano da copa, construir o dobro do que foi construído até agora: “Queremos o mesmo para o cinema, até 2014, o dobro de filmes longa metragens, que até então já produzimos”.

Por fim o governador disse que deveríamos formar um grupo para estudar e definir as prioridades do cinema baiano, definir um prazo para seus encaminhamentos e lhe entregar. E peremptório declarou:

“Eu sou disciplinado, alguém deve chegar pra mim e dizer: sua parte é esta, você tem que fazer isso. Vamos definir um prazo e vocês podem cobrar; nem sempre estou disponível, mas se tiver algum projeto encalhado, liguem cobrando que vamos desencalhar; liguem pra minha secretária Regina Afonso, falem com ela”. (grifos do relator)

Albino concordou em criar um grupo de trabalho com integrantes da APC e da Secult para estudar as propostas prioritárias sobre o cinema baiano e posteriormente entregá-las ao governador.

Por fim, o governador deu por encerrada a reunião.
Na saída do prédio da governadoria, os cinco representantes da APCBahia, em breve conversa, consideraram muita positiva a reunião.

Forte abraço a todos.
Olavo

11 novembro 2011

Hamilton Correia: o colecionador de cartazes

Figura lendária da crítica de cinema na Bahia, Hamilton Correia teve, por muitos anos, uma coluna diária no jornal soteropolitano Diário de Notícias, além de programas em rádio e televisão. Quando editou o seu famoso suplemento literário, publicou um artigo de um jovem meio abusado que se chamava Glauber Rocha. Hamilton Correia, embora muita gente disso não saiba, é o introdutor do autor de Deus e o diabo na terra do sol na imprensa. Amigo de Walter da Silveira, um dos maiores ensaístas de cinema no Brasil, ajudou a programar o Clube de Cinema da Bahia e, um belo dia, indo a Recife, descobriu ninguém menos do que Ingmar Bergman, que passou a ser programado no clube soteropolitano. Aposentado, continua a ver filmes e filmes. É um grande amante do cinema como expressão da arte. Mas a novidade é que, aderindo ao espaço virtual, resolveu fundar um blog. Antes, porém, gostaria de ressaltar que Hamilton, hoje, é um colecionador de cartazes preciosos de filmes importantes da história do cinema.

Certos cartazes de cinema adquirem o status de objetos de arte. Hamilton Correia é, talvez, o maior colecionador de cartazes do Brasil. Possui cartazes de várias cinematografias, a exemplo de reproduções dos originais de O encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein, A última gargalhada, de Murnau, Oito e meio, de Federico Fellini, entre muitos e muitos outros. Ter a oportunidade de visitar o seu acervo, como já o tive, é uma espécie assim de viagem pela história do cinema. A dedicação do veterano crítico baiano aos cartazes vem já de algumas décadas, quando foi aos Estados Unidos visitar um filho cardiologista que estava fazendo residência médica, e, na estadia estadunidense, veio a conhecer os cartazes. Segundo ele, na terra do Tio Sam, os cartazes de filmes são muito valorizados, havendo, inclusive, cartórios especializados para o reconhecimento da originalidade deles. Conta que um exibidor de cidade do interior tinha em seu poder, fechadas as portas de seu cinema, o cartaz original de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), do grande John Ford, arquétipo do western moderno que deu as coordenados do gênero com a introdução da psicologia na estruturação de seus personagens. O exibidor não sabia que o cartaz tinha valor, tendo-o guardado apenas por uma relação afetiva com a obra-prima fordiana. Um colecionador, de passagem pela cidadezinha desse exibidor, vendo o cartaz, poderia tê-lo comprado, mas, honesto, deu-lhe a dica que ele valia uma fortuna. O exibidor procurou saber e conseguiu vendê-lo pela fantástica quantia de 250.000 dólares.

A arte dos cartazes de cinema é fascinante. Por vezes é difícil imaginarmos que em tempo idos a divulgação de um filme dependia de um simples papelão pintado afixado no cinema uns dias antes da estreia. Por isso os artistas gráficos davam o seu melhor e alguns dos grandes aí mostraram o seu talento como Saul Bass, responsável por muitos excelentes genéricos da história do cinema, autor de alguns cartazes que se destacaram dos restantes pelo seu design inovador. Design inovador que foi além dos cartazes para surpreender na abertura dos créditos, a exemplo dos filmes Um corpo que cai (Vertigo), Psicose, Intriga internacional, Os pássaros, todos do mestre Alfred Hitchcock, O homem do braço de ouro, e Anatomia de um crime, ambos de Otto Preminger, e, ainda deste, Bom dia, tristeza, entre outros notáveis.

Hamilton Correia exerceu por várias décadas a crítica de cinema e, com a morte de seu amigo Walter da Silveira, é, hoje, o decano da crítica na Bahia. Participou da imprensa soteropolitana quando existia, aqui, um verdadeiro jornalismo cultural. Uma página inteira do Suplemento Cultural do Diário de Notícias era reservada para a publicação de textos críticos sobre cinema. E Hamilton era quem os editava. Nos outros dias da semana, possuía uma coluna diária para comentar os lançamentos e os filmes do Clube de Cinema da Bahia. Com o passar do tempo, o baiano, que não tem memória, costuma esquecer os seus valores pretéritos. É chega a hora de se instituir um prêmio nos eventos cinematográficos da cidade (ou Cine Futuro, ou Jornada, ou Panorama...) com o nome de Hamilton Correia.

Na página reservada às dedicatórias no livro Fronteiras do cinema, de Walter da Silveira, o ensaísta escreveu: “A Hamilton Correia, com muita amizade.” Agora, já aposentado, mas nunca desatento ao que se passa no mundo do cinema, dedica-se a colecionar cartazes raros e belíssimos. Não apenas colecionar, mas também vendê-los a quem estiver interessado. Integrante da geração de críticos que apareceram na imprensa nos anos 50, Hamilton Correia é do tempo em que Glauber Rocha escrevia no ‘Jornal da Bahia – depois substituído, neste, por José Gorender, que assinava Jerônimo de Almeida, Orlando Senna, Walter Webb, José Augusto Berbert de Castro (em A Tarde), José Olympio da Rocha, e, claro, Walter da Silveira, o maior ensaísta que a Bahia já teve.

Publicado originariamente no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia em 10 de novembro de 2011

Hamilton tem mais de 7.000 cartazes procedentes de todas as partes do mundo e está vendendo cada peça ao módico preço de 10,00 – uma ninharia em se tratando de cartazes de filmes famosos elaborados com arte e inventividade. Ele me deu o seu endereço para publicação: Avenida Princesa Leopoldina, 17, Condomínio Villa Velha – Villa Palma – que fica próximo ao Largo da Graça, descendo a ladeira que vai para a Perini e o Hospital Português. Para telefonar, basta ligar: 32472501. Visitem seu blog na internet: http://www.hamiltoncorreia.blogspot.com

10 novembro 2011

Festival Internacional de Cinema de Salvador

Recebi as informações que estão abaixo sobre o 7 Festival Internacional de Cinema de Salvador. Transcrevo-as:

Começa nesta sexta (dia 11) e segue até o dia 24, nas Saladearte Cinema da UFBA (Vale do Canela), Cinema do Museu (Corredor da Vitória) e também no Cine XIV (Pelourinho), o 7º Festival Internacional de Cinema de Salvador. O festival reúne 30 filmes em cinco mostras: Mostra Wajda - Cinema Polonês, Mostra Mundo, Cine DOC, Cine Brasil e Sessão Coruja. Toda a programação pode ser acompanhada diariamente às 18h30 no Cine XIV, às 18h30 e 20h30 no Cinema da UFBA e às 20h30 no Cinema do Museu, onde, aos sábados, haverá também sessões às 22h30. Os ingressos custam R$ 6 (preço único) no Cine XIV e R$ 7,50 (meia) ou R$ 15 (inteira) nos Cinema da UFBA e do Museu.

Segundo o diretor da Saladearte Marcelo Sá, entre os destaques da Mostra Mundo estão 'Triângulo Amoroso', de Tom Tykwer (diretor de 'Corra, Lola, Corra' e 'Perfume') e 'O Moinho e a Cruz', de Leck Majewski, que recria a pintura épica de Pieter Brugel 'A Procissão para o Calvário'. Na programação do festival também aparece 'Tancredo - A Travessia', de Silvio Tendler, que integra a Cine DOC ao lado de produções da França, Irã e Israel. E atores em cartaz na tevê, como Luana Piovani (A Mulher Invisível) e Otávio Muller (o Djalma da 'Tapas e Beijos'), que participam dos elencos dos filmes da Cine Brasil 'Família vende tudo', de Alain Fresnot, e 'Riscado', de Gustavo Pizzi.

Onze filmes de vários gêneros traçam uma visão abrangente do cinema polonês, através da obra do consagrado diretor Andrzej Wajda, que continua filmando aos 85 anos de idade. A Mostra Wajda - Cinema Polonês traz: Cálamo (Tatarak), A Vingança (Zemsta), Senhor Tadeu (Pan Tadeusz), Korczak (Korczak), Crônica dos Acidentes Amorosos (Kronika Wypadków Milosnych), As Senhoritas de Wilko (Panny Z Wilka), O Maestro (Dyrygent), O Homem de Mármore (Czlowiek Z Marmuru), Tudo à Venda (Wszystko Na Sprzedaz), O Mesclado (Przekladaniec) e Os Magos Inocentes (Niewinni Czarodzieje).

O tema 'De Olho no Mundo', escolhido para a edição 2011 do Festival Internacional de Cinema de Salvador, é uma homenagem ao crítico e criador da Mostra Internacional de Cinema Leon Cakoff, que morreu em 14 de outubro deste ano e inspirou a criação do projeto Saladearte.

09 novembro 2011

A máscara da morte branca

Considerado pelo historiador e ensaísta francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema, Os olhos sem rosto (Les yeux sans visage, 1960), insólito filme de George Franju, realizado no despertar da Nouvelle Vague, é uma obra atípica e bem característica desse estranho e genial realizador francês. Segundo Beylie, "esta obra de um dos grandes poetas do cinema situa-se a meio caminho entre o grand guignol e o documento clínico." Em Les yeux sans visage, o diretor parece, no começo, fazer um pastiche de algum filme expressionista alemão, lançando-nos, de repente, no mais glacial realismo. Beylie atesta: "de fato, o que mais chama a atenção neste filme não são os doutores sádicos, os subterrâneos escuros ou os cemitérios profanados, mas um carro preto entrando no pátio de um necrotério, os bisturis abrindo uma ferida, a necrose de um enxerto de carne humana. Nenhuma complacência no horror, mas uma rigidez da forma, próxima da catalepsia." Claude Beylie tem um livro essencial, As obras-primas do cinema,  e traduzido em português pela editora Martins Fontes (ao que tudo indica, esgotadíssimo).

Um cirurgião célebre (interpretado por Pierre Brasseur) tem sua única filha (Edith Scob) horrivelmente desfigurada num acidente automobilístico, restando, apenas, intactos, seus olhos. Para tenta restituir-lhe a beleza de antes, ele, com a cumplicidade de uma enfermeira (Alida Valli), não hesita em raptar e mutilar moças sadias para fazer ensaios de enxertos de pele, que, aliás, fracassam um após o outro.

O crítico baiano Adalberto Meireles, em seu blog .C de Cinema (http://pontocedecinema.blog.br/blog/), considera que Os olhos sem rosto é o molde de A pele que habito (La piel que habito), último filme de Pedro Almodóvar que se encontra ainda em cartaz no circuito exibidor.E, realmente, ele tem razão: não é possível que Almodóvar não tenha visto Les yeux sans visage e se impressionado com a obra de Franju.

Deixo aqui o trailer desta obra-prima, chef d'oeuvre do cinema francês em todos os tempos e que foi devidamente distribuida em dvd às locadoras do Brasil para gáudio de todos os amantes do cinema.



08 novembro 2011

Robert Mulligan: evocação e sentimentos

Realizador evocativo, cultor das memórias de tempos idos em alguns filmes, dotado de pleno domínio formal de seu meio de expressão, Robert Mulligan (1925/2008) pode ser considerado um cineasta bem acima da média e que não foi devidamente valorizado, fora alguns filmes ocasionais mais louvados por outros motivos que pela mise-en-scène (como são os casos de O sol é para todos, que deu o Oscar a Gregory Peck, e Houve uma vez um verão).

O blogueiro (ou bloguista), por coincidência, começou a sua trajetória de cinéfilo na mesma época em que Robert Mulligan deu início a seu percurso como realizador cinematográfico, ou seja, em 1957. E, portanto, acompanhou toda a sua filmografia, ainda que os primeiros filmes tenham sido vistos nas constantes reprises que existiam no cinema do passado (a televisão matou a reprise dos filmes). A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.

Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O'Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedy que causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.

Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehicle para Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neorrealista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue: À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

06 novembro 2011

A formação de um cinéfilo

O pouco que sei sobre cinema se deve às minhas constantes idas às salas exibidoras. Cinema se aprende indo ao cinema, já disse José Lino Grunewald, e, neste particular, nada mais verdadeiro. Mas o cinéfilo, que se queira completo, tem que amar aquilo que está a ver, contemplar o seu objeto e investigá-lo. Desde cedo, a começar a me interessar pelo cinema, via-o com interesse e dedicação, a procurar leituras que pudessem me dar uma compreensão melhor daquilo que estava a ver. Existem muitas pessoas que vão constantemente ao cinema, mas não o compreendem, pela simples razão de tê-lo como algo descartável, para passar o tempo, esquecendo-se muito rapidamente do que viu. Alguém, que não me lembro agora, afirmou que a cultura cinematográfica é aquilo que permanece na sua memória algum tempo depois de já tê-lo contemplado.

Não tenho formação cinematográfica acadêmica. Minha experiência com as imagens em movimento é autodidata. Formado em Direito nas priscas eras do século passado (1974), advogado por acidente de percurso, mas sem nunca ter exercido a profissão (a rigor, se entrar no fórum não sei para que lados ficam os principais cartórios nem onde se dá entrada a uma petição inicial), embrenhei-me, depois de formado, pelo jornalismo, e mais tarde, pelo magistério (neste caso, vindo a concluir um mestrado em artes visuais).

Minha formação cinematográfica, como ia dizendo, é, portanto, autodidata, com conhecimentos adquiridos pela visão rigorosa dos filmes e algumas visitas às cinematecas. E a considerar que tenho provectos 61 anos, e que fui pela primeira vez ao cinema aos 5 anos, tenho, já de quilometragem rodada, 56 anos e meio de cinema, meio século, portanto, e mais alguma coisa. Mas a considerar, para ser mais rigoroso, que dos 5 aos 8 a contemplação ainda se fazia pela novidade e pelo assombro da descoberta, poderia dizer que tenho 50 anos de rotina cinematográfica.

No início, anos 50, via muito os filmes de gêneros do cinema americano e chanchadas nacionais. Assim, posso dizer que o meu interesse pela chamada sétima arte se desabrocha com a cinematografia estadunidense, Hollywood, que, ainda no seu ocaso, era, ainda, a fábrica de sonhos. Encantei-me logo com os diversos gêneros. O western, por exemplo, com filmes como "Sem lei e sem alma", "Duelo de titãs", "7 homens e um destino", todos os três do habilidoso John Sturges, com "Rastros de ódio", "O homem que matou o facínora", "Audazes e malditos", todos de John Ford, entre tantos outros, como "Shane", de George Stevens. O musical tinha seu esplendor, seu engenho e arte com os filmes de Vincente Minnelli ("A roda da fortuna", "Gigi") e Stanley Donen ("Cantando na chuva", "Dançando nas nuvens") para ficar apenas em dois diretores.

A comédia sofisticada, o "noir", o melodrama, o filme de guerra, o thriller, enfim, gêneros que determinaram o gosto pelo cinema. Bem de acordo com os postulados da indústria de Hollywood, cujos três principais sustentáculos estavam no "star system" (sistema de estrelas), "system" studio (sistema de estúdios), e a divisão do cinema em gêneros.

Ainda que industrial, o cinema americano tinha filmes adultos e não se encontrava infantilizado como ocorre atualmente. O império ideológico, no entanto, mais adiante, fez com que se desprezasse muitas pérolas oriundas de Hollywood para uma parcela de pessoas ditas intelectualizadas e de esquerda (festiva ou não). Lembro de um amigo que se dizia marxista-leninista que foi flagrado por mim no cinema Liceu (Salvador) na sala de espera de "Moscou contra 007". Ao me ver, num átimo de segundo, e em desabalada carreira, desceu para se esconder nos banheiros. Mas não adiantou: eu o tinha visto. E para um militante, como ele, não ficava bem ver filmes do agente secreto britânico com permissão para matar.

Um filme exerce influência sobre o espectador de acordo com as circunstâncias externas nas quais se o viu. É o caso de "Spartacus", de Stanley Kubrick, que, proibido para menores de 14 anos, vi-o com 11 após quatro tentativas infrutíferas para entrar. Naquela época, existia muito rigor em relação à proibição classificatória dos filmes, a existir, ao lado do porteiro, um comissário de menores na porta para impedir o ingresso deles. Mas existiam algumas sessões nas quais o tal comissário não aparecia, principalmente as sessões das 18 horas. Era o momento da oportunidade.

Mas "Spartacus" provocou no adolescente que eu era um assombro. Aquela tela grande, o épico-histórico narrado com ênfase dramática precisa, a amplidão dos espaços, os intérpretes carismáticos (Laurence Olivier, Kirk Douglas, Tony Curtis, Peter Ustinov...). Mas as circunstâncias externas determinaram muito a envolvência, a idade, etc. Atualmente, mesmo que ainda admire muito "Spartacus", não me vem aquela emoção de tempos idos, principalmente porque falta as tais circunstâncias e vê-lo em DVD não é a mesma coisa que assisti-lo na tela imensa e em cinemascope das salas de exibição.Em meados dos anos 60, em torno de 15 anos, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, que era programado pelo grave e sisudo (e grande ensaísta) Walter da Silveira, que, nesta época, exibia filmes especiais aos sábados pela manhã no cine Guarany. O assombro que tive com "Spartacus" teve recaída quando vi, pela primeira vez, "Hiroshima, mon amour", numa dessas sessões matinais. A partir daí vim a entender que o cinema era também uma expressão artística e não mero "divertissement", embora nunca tenha encarado os filmes como puro entretenimento, mas como fontes de emoções puras.

É preciso, portanto, ver e ver filmes. Mas a visão deve ser intensa e não desinteressada - como acontece, atualmente, com a horda de debilóides que freqüenta os complexos de salas instalados em shoppings. Se a pessoa não se interessa pelo filme, e pensa, durante a sua projeção, no encontro que terá com o namorado e com o vestido que irá usar em determinada balada, dias depois não vai mais se lembrar dele.

Minha formação cinematográfica se deu, portanto, nos cinemas soteropolitanos, e, a seguir, no contato com as obras-primas oferecidas nas exibições matinais do Clube de Cinema da Bahia. A partir daí, nasceu o cinéfilo, que se completou com leituras, investigações e reflexões.

03 novembro 2011

A permanência de "Ladrões de bicicleta"

Muito mais do que uma data comemorativa, os 63 anos de "Ladrões de bicicleta" ("Ladri di biciclette", 1948), que se completam neste 2011, que já se encontra no ocaso, refletem a dimensão temporal de um marco do neo-realismo italiano que modificou profundamente a maneira de se fazer cinema.

Sobre ser um filme que ultrapassa o documento de uma época, para se revelar um monumento divisor-de-água do cinema moderno, pleno de um humanismo desaparecido da cinematografia contemporânea, esta obra de autoria de Vittorio De Sica (diretor) e Cesare Zavattini (roteirista) oferece à história do cinema não somente uma evolução como também, e principalmente, um modelo que iria influenciar sobremaneira toda a geração de realizadores posteriores.

Talvez o Cinema Novo não existisse sem o neo-realismo italiano, assim como o Free Cinema inglês e outras manifestações referentes a uma nova postura diante da realidade, uma inédita representação do real. O neo-realismo tem tanta força que influencia até os dias atuais o cinema no mundo (a maioria dos filmes que se faz no Irã que outra característica tem senão o forte acento neo-realista?).

Por outro lado, é verdade que o ponto de partida neo-realista (sem falar dos seus precursores) é "Roma, cidade aberta" ("Roma, città aperta"), de Roberto Rossellini, que data de 1945. Esta obra, de um mestre renovador (que instaurou, nos anos 50, ao lado de Michelangelo Antonioni, a desdramatização e a liberdade em relação ao "roteiro de ferro"), não possui, entretanto, com o passar dos anos, a mesma atualidade, a mesma envolvência, o mesmo espanto que ainda causa, nos dias de hoje, "Ladri di biciclette". "Roma, città aperta" é um grande filme, um momento de extrema urgência para o realismo cinematográfico, mas um filme circunscrito aos fatos da época ou, numa palavra, datado.

O neo-realismo (termo criado pelo esteta Umberto Barbaro) caracteriza um cinema que procura focalizar a realidade de um momento histórico, qual sejam as condições de vida na Itália logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Na década de 40, o cinema era Hollywood, o "star-system" (o sistema de astros e estrelas), o "system-studio" (o sistema de estúdios), com o predomínio do cinema de gênero e os filmes todos feitos nos interiores dos estúdios.

Nos postulados de Zavattini, havia a necessidade de os realizadores cinematográficos abordarem a realidade "in loco" sem enfeites, com as filmagens nas ruas, na cidade. Seu manifesto do "descer às ruas" é eloqüente nesse sentido, além de, também, procurar dar ênfase ao humanismo. A utilização de atores não-profissionais tinha a função de desglamurizar o espetáculo cinematográfico.

Do interior hollywoodiano, passava-se ao exterior das ruas de Roma, e, por extensão, das ruas de todas as cidades cujos cineastas apostaram na concepção neo-realista do cinema. A influência desta vai até ao cinema de Hitchcock (cineasta, por excelência, de estúdio), que, com "O homem errado" ("The wrong man"), filmado em Nova York, adere, ainda que por pouco tempo e por um único filme, à necessidade de representar o homem no seu "habitat" natural.

Claude Beylie, exegeta francês, disse que "Ladri di biciclette" é uma parábola sobre a solidariedade humana, chegando a compará-lo a uma obra-prima inconteste do cinema: "Em busca do ouro" ("The gold rush", 1925), de Charles Chaplin. E disse mais sobre este filme "sessentão": "Sob a máscara da constatação objetiva de um país arruinado pela guerra," Ladrões de bicicleta", como, mais tarde, "Milagre em Milão" (1951) e "Umberto D" (1952) - todos de DeSica, denuncia, na verdade, a impotência das instituições para resolverem dignamente os dramas do proletariado".

Ettore Scola, em 1974, com seu poético "Nós que nos amávamos tanto" ("C'eravamo tanto amanti!") faz alusão a este filme de Vittorio DeSica através de um crítico de cinema que o tem como um de seus filmes preferidos e chega, inclusive, a participar de um programa de televisão para responder sobre o método que o diretor empregou para fazer o filho do operário, Enzo Staiola, chorar. A sua resposta, porém, não o faz vencedor, mas anos mais tarde, vem assistir ao próprio DeSica (em sua última aparição nas telas) contar como fez para extrair a emoção de seu pequeno personagem.

Em Roma, um operário desempregado (Lamberto Maggiorani) consegue um emprego para o qual é preciso possuir uma bicicleta. Para consegui-la, sua mulher penhora seus bens domésticos, mas logo no primeiro dia do trabalho a bicicleta lhe é roubada. O filme é a história da busca do veículo até que, ao constatar que este é praticamente irrecuperável, o operário decide, por sua vez, roubar uma bicicleta em dia de muita agitação às portas de um estádio de futebol. Mas é surpreendido e recriminado por seu filho, com o qual, lado a lado, efetuou a procura de seu instrumento de trabalho.

Há, evidente, e ao contrário do esquema narrativo "in crescendo" hollywwodiano, uma certa desdramatização do tema, com os atores e cenários naturais, inseridos num contexto social determinado. A busca é um pretexto para a exposição das mazelas deixadas pela guerra recém-findada. O que faz de "Ladri di biciclette" uma obra tão expressiva e de impressionante atualidade é que os personagens são seres vivos (atualmente na maioria dos filmes oriundos da industrial cultural de Hollywood os personagens são títeres e meros condutores da ação). E a cenografia está eleita por um critério tal que transcende o mero naturalismo para se converter em verdadeiro elemento expressivo.

02 novembro 2011

Em homenagem ao grande Ildásio Tavares

Publico aqui uma coluna original de Ildásio Tavares, grande poeta, intelectual, e escritor baiano já falecido, que fala de Cascalho, de Tuna Espinheira. O recorte, de 2005, que saiu no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia,  já está até amarelado. O móvel da publicação é uma homenagem a Ildásio, que conheci quando ainda pertencente ao reino dos vivos, mas, de quebra, também não deixa de ser uma homenagem a Tuna, ainda que bem vivo - e que continua avexado para concluir seu filme sobre Anísio Teixeira, que o Fundo de Cultura rejeitou.

01 novembro 2011

Ernesto Geisel e "Dona Flor"

1) Luiz Carlos Barreto, numa longa entrevista à TV Senado, conta a sua trajetória de homem de cinema e, lá pelas tantas, fala de Dona Flor e seus dois maridos, o maior sucesso de bilheteria de todos os tempos baseado em romance homônimo de Jorge Amado e dirigido por seu filho, Bruno Barreto. O ano, 1976, a ditadura militar exercia poderosa censura sobre todos os filmes. E implicou com Dona Flor. Queria proibi-lo. Barreto foi à Brasília tentar convencer os censores, mas tudo em vão.

2) De repente, ao sair de um ministério, encontra, por acaso, Amália Lucy, filha de Ernesto Geisel, o general de plantão, a quem se atribui o dito de Chico Buarque de Holanda ("você não gosta de mim, mas sua filha gosta¿). Barreto já conhecia Amália, e ela, surpresa, perguntou o que ele estava a fazer em Brasília. O produtor disse a ela que Dona Flor e seus dois maridos tinha sido proibido pela censura. Mas por quê? indagou a filha do general, que manifestou desejo de ver o filme.

3) Barreto marcou um encontro numa sala de exibição brasiliense e projetou "Dona Flor" para Amália Lucy. No final, ela revelou a ele ter gostado muito do filme e não via razão para ser proibido. E disse a Barreto: "Quem gostaria muito de ver seria meu pai, pois ele gosta dos romances de Jorge Amado" O célebre produtor, surpreso, ia dizer alguma coisa, quando ela o interrompeu: "Você não conhece meu pai. Vamos marcar uma sessão no Palácio do Planalto. Marcada a exibição, Barreto entrou meio constrangido para projetá-lo para Geisel e encontrou uma sala toda equipada para a sessão especial, com farta distribuição de 'scotch¿ e salgadinhos.

4) Barreto conta que Ernesto Geisel, durante o transcorrer da projeção, riu muito e, no final, congratulou-o por ter feito um filme ágil e engraçado. Disse que entraria imediatamente em contato com o Ministério da Justiça para a liberação de Dona Flor.

5) Dona Flor e seus dois maridos foi filmado em Salvador em 1975 e me lembro de ter acompanhado a filmagem de uma cena no Largo da Palma. Terceiro filme do jovem Bruno Barreto, que tinha em torno de 20 anos (o primeiro, Tati, a garota, baseado em Anibal Machado, o segundo, A estrela sobe, segundo Marques Rabelo), "Dona Flor" foi lançado no Brasil inteiro e na Bahia em mais de seis salas simultaneamente. Sucesso imenso, filas quilométricas. Mas aconteceu um fato peculiar.

6) Programado para ser exibido em seis salas, na segunda (dia em que os lançamentos entravam em cartaz), o distribuidor da Embrafilme somente tinha recebido em seu escritório apenas cinco cópias e não haveria tempo hábil para mandar buscar a que faltava. Mas, de repente, surgiu uma idéia. A cópia do cinema Bahia poderia ser exibida também no Tamoio, sala perto daquela. Para funcionar, no entanto, era preciso que os horários fossem diferentes. Naquela época, um filme de longa-metragem tinha, a depender de sua duração, cinco, seis latas, contendo, cada uma, um rolo ou carretel. Exibido o primeiro rolo no Bahia, um funcionário da Embrafilme corria para levá-lo ao Tamoio. E assim sucessivamente.

7) Apesar de Barreto ter contado que Geisel tinha ordenado a liberação do filme, o que, realmente, aconteceu, a minha memória me diz que houve o corte de uma cena, quando há um coito anal entre José Wilker e Sonia Braga. Mais de 20 anos depois, quando o filme foi relançado em cópias novas, a cena cortada foi reposta. Se, em 1976, Dona Flor e seus dois maridos foi um êxito sem precedentes, quando do seu relançamento, duas décadas passadas, revelou-se um fracasso retumbante no mercado exibidor.

8) Sonia Braga tinha feito uma Gabriela maravilhosa para uma novela da Globo e o seu aproveitamento como outra personagem amadiana, a Dona Flor, deu muito certo, a ponto do próprio escritor ficar encantado com ela. Poucos anos depois, 1982/83, Barreto a dirige numa produção internacional no papel de Gabriela, mas o filme não soube captar, com a desenvoltura necessária, a crônica de uma cidade de interior que é Gabriela, cravo e canela. No elenco, Marcello Mastroianni. Mas nem mesmo assim conseguiu as graças do público.

9) Em Dona Flor e seus dois maridos, além da de Wilker e Braga, destaca-se a primorosa interpretação de Mauro Mendonça, como o segundo marido de Flor. O primeiro, Vadinho/Wilker, farrista, boêmio, morre de repente num domingo de Carnaval, mas o seu espírito reaparece a tentar a bela Dona Flor. Um triângulo amoroso com acentos espíritas, um "ménage-a-trois" atípico, portanto.

10) A trilha musical é funcional e eficiente a cargo de Francis Hime. E há, ainda, a letra e música de Chico Buarque de Holanda na interpretação de Simone (O que será, o que será...). Murilo Salles, antes de se tornar realizador, é o diretor de fotografia e, no elenco, vários atores baianos como Nilda Spencer, Mário Gusmão, Dinorah Brillanti, Haydil Linhares, João Gama, Wilson Mello, entre outros. Nesta época, meados dos anos 70, a Bahia virou "décor" de alguns filmes, entre os quais Tenda dos milagres, de Nelson Pereira dos Santos, também baseado em romance homônimo de Jorge Amado. Nelson, porém, o grão-duque do cinema brasileiro, se tem resultados excelentes quando faz adaptação de Graciliano Ramos (Vidas secas, Memórias do cárcere) não consegue transferir os romances do escritor baiano para um resultado cinematográfico convincente (Tenda dos milagres é melhor, mas Jubiabá decepcionante, ainda que com a ajuda de capital internacional - ou talvez por isso).

31 outubro 2011

Rosa Espinheira abraça Zé do Caixão

A bela filha do avexado cineasta baiano Tuna Espinheira, Rosa, entrevistou José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão. Espinheira, autor de Cascalho, que passou no Canal Brasil, encontra-se coletando dados para um documentário precioso sobre Anísio Teixeira, que, segundo parece, não foi aprovado pelo chamado fundo de cultura do estado. Se é fundo de cultura, e também considerando a folha corrida do requerente, que há décadas faz filmes, o fundo, na verdade, não pode ser cultural, mas alguma outra coisa. De qualquer maneira, Espinheira, que nunca dorme de touca, vai em frente na esperança de ver, logo, concluído o seu importante registro documental. Torço por você, meu velho, e aqui, deste reduto, faço minha a sua indignação pela reprovação havida nesse fundo, que é, na verdade, um fundo destinado mais à ação dos amigos e outros que tais, assim é se me parece, como diria Pirandello.

O velho Tuna mandou uma mensagem para os seus amigos. Ei-la sem retoques nem maquiagem:
Gente,

Uma ajudada prometida pelo IRDEB dizia respeito ao lançamento, daí meu pedido ao Pola/Sofia. Meu compromisso com a obra de Herberto Sales e com o dinheiro público que bancou a produção, eram coisas sagradas pra mim. Jamais deixei o vagão correr solto, estive, estou e estarei, sempre pelejando para que, o filme CASCALHO, seja arrastado para o ossuário geral da utopias. Tive o projeto do DVD do filme, vetado pelo Fundo de Cultura, sem qualquer explicação. Batalhei e um ano e meio depois consegui pela Assembléia Legislativa. Talvez eu tenha o nome morfético nas engrenagens do famigerado FUNDO... agora excluíram meu projeto sobre Anísio Teixeira, eles, os mesmos que permanecem lá, sem largar o osso. Se, como diz a sabedoria popular: ninguém é profeta em sua terra, quanto mais na Bahia. Mas sou de Capricórnio e tenho o corpo fechado... Eles passarão... (M.Q.)
Abs
Tuna

30 outubro 2011

"Os homens que não amavam as mulheres": 'thriller' surpreendente

Thriller surpreendente, de impacto, Os homens que não amavam as mulheres (Män Som Hatar Kvinnor, 2009), de Niels Arden Oplev, com os não menos surpreendentes Michael Nyqvist e Naomi Rapace (que estão na foto). Produção sueca, o filme se baseia no best-seller Millenium e possui um ritmo desenvolto capaz de criar uma tensão inusitada, como um fio elétrico que estivesse instalado na sua estrutura narrativa. Um jornalista investigativo de uma revista famosa é condenado por denunciar um empresário corrupto baseando-se em provas falsas (na verdade plantadas para incriminá-lo). Antes de começar a cumprir a pena, no entanto, é convidado por um aristocrata milionário que o contrata para investigar o que aconteceu com uma sobrinha, que parece que foi assassinada há mais de quarenta anos. A família do aristocrata é dona de uma empresa e seus familiares vivem uma harmonia hipócrita por causa dos negócios. O velho tem vários irmãos e a sobrinha desaparecida (ou morta) era a sua preferida e provável herdeira de seus bens. O jornalista se transfere para a cidade fria onde ocorrera o suposto assassinato e, na sua busca, encontra uma punk, verdadeiro gênio da informática, uma hacker de primeira, que saiu de clínica psiquiátrica e se encontra sob custódia de um tutor. Ela é a talentosa Naomi Rapace e ele, o jornalista, o excelente Michael Nyqvist.

No que se propõe o diretor Oplev, o resultado obtido por Man Som Hatar Kvinnor é excelente, acima da média dos thrillers que são dados a ver no circuito comercial. Não vi o filme nos cinemas, mas o peguei, au hasard, numa locadora de DVD. Sem nenhuma informação prévia, fiquei admirado com a competência de Oplev. Tudo é ritmo, pulsação, suspense, interesse contínuo, e, ainda de sobra, um olhar nada romântico sobre a triste perversão humana.

29 outubro 2011

"Dawson Ilha 10" já está chegando

Dawson Ilha 10 (Dawson Isla 10), do consagrado realizador chileno Miguel Littin, tem seu lançamento nacional marcado para novembro. O filme, na tradição do excelente cinema político do autor, mostra a agonia dos ministros depostos de Salvador Allende pela fúria do General Pinochet, que são levados para uma ilha gelada no extremo sul do Chile. O versátil Bertrand Duarte faz a sua estreia como ator internacional, e, segundo os comentários de pessoas que já viram o filme, dá, como de hábito, um show de interpretação. O filme também assina a participação de José Walter Pinto Lima como um dos produtres com a sua empres VPL. Todos devem ficar atentos para não perdê-lo de vista.

28 outubro 2011

O semeador de orquestras

O jornalista Jorge Ramos, um dos mais cultos da Bahia, publicou recentemente um livro no qual cita o velho e avexado cineasta Tuna Espinheira, como se pode ler na imagem acima. É bom dar um clique nela porque aumenta de tamanho. Do fundo do baú, Tunático caça imagens e as dá à luz das imagens em movimento, quer dizer, do cinema.