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27 outubro 2011

O dia em que conheci Rubem Biáfora

Dezembro de 1979. Nesta época, estava no Rio de Janeiro e precisei ir a São Paulo resolver um negócio. Hospedei-me no Hotel Central, que fica na Avenida São João. Mas não pude solucionar a questão que me levou a SP pelo fato de a pessoa, com a qual deveria me encontrar, ainda que combinado o encontro, teve de viajar de repente. Assim, restei-me sozinho, e sem fazer nada, no citado hotel. Comentarista cinematográfico diário do jornal Tribuna da Bahia, lembrei-me de ter recebido uma carta do cineasta Juan Bajon (que não conhecia) sobre o lançamento de seu filme, O estrangulador de mulheres, em Salvador. Visto o filme, e considerando a gentil missiva, recortei a página, na qual estava estampada minha crítica, e a mandei ao realizador, pois tinha gostado do filme, principalmente pelo seu lado bizarro e insólito (enterro de baratas etc). E, vale ressaltar, nunca enviei nada para ninguém. Nunca tive o hábito de recortar artigos para enviá-los. Mas, surpreendentemente, talvez pela carta pessoal - o que não é também hábito dos realizadores, bastando aos críticos os releases das distribuidoras. Bajon me respondeu em várias folhas datilografadas (naquele tempo computador era peça de Millor Fernandes).

Assim, no quarto do Hotel Central, vi, no criado-mudo, um grosso catálogo de telefone, e resolvi procurar o nome de Juan Bajon. Qual não foi a minha surpresa quando, achando-o, telefonei e ele, muito receptivo, disse-me que o esperasse em cinco minutos. Menos do que isso, o telefone toca me anunciado que, na portaria, tinha uma pessoa como o nome de Juan Bajon a me esperar. Desci e o encontrei. Um rapaz em torno de trinta anos, chinês, que me recebeu e maneira efusiva. Fomos a um bar na Avenida São João, e tomei algumas cervejas, ainda que Bajon não bebesse. Convidou-me, então, para almoçar no bairro da Liberdade, onde mora quase toda a colônia de nipônicos. Conversamos bastante e, de tarde, levou-me à rua do Triunpho, lugar do nascimento e estabelecimento da famosa Boca do Lixo, quando ele me apresentou a vários cineastas. Resolvi me sentar num daqueles bares, e, totalmente em ócio, continuei a tomar minhas cervejas, desfrutando do ambiente. A las cinco de la tarde, Juan Bajon se despediu, convidando para me levar ao hotel. Fiquei, no entanto, a continuar o processo etílico começado. Mas disse, taxativo, que iria, no outro dia, me apanhar às dez horas no hotel para irmos ao apartamento de Rubem Biáfora, que disse ser seu amigo. Gostei da idéia, pois Biáfora, para mim, aos 29 anos, era um mito.

Durante a rolagem de pensamentos que ocorre sempre quando se bebe sozinho, achei que Bajon, apesar de simpático, era um anticomunista feroz. Esquerdista que era, não gostei muito disso. Contou-me que sua família, por burguesa, tinha sido massacrada pelas tropas de Mao-Tsé-tung. Estava, no entanto, mais preocupado em conhecer o famoso Biáfora. Fui para o hotel e ainda, neste, tomei, no quarto, mais cervejas, compradas em latas grossas na avenida - ainda não havia as latinhas leves e práticas. Acordei de ressaca pelo telefone, cujo recepcionista me informava da chegada de um tal de Juan Bajon. Falei com ele e pedi, desculpando-me, para que esperasse dez minutos, pois tinha, ainda, que tomar banho.

Fomos andando para o apartamento do severo crítico. Antes de entrar, Bajon se dirigiu a um telefone público, comunicando a nossa subida. E ao sairmos do elevador, já estava Biáfora a nos esperar. Não podia acreditar: Gervásio Rubem Biáfora em pessoa. Entramos e ficamos a conversar. Biáfora me recebeu com muita gentileza e disse ter gostado de meu comentário sobre O estripador de mulheres. Percebi, então, que Bajon realmente tinha amizade com o crítico. Irônico, lembro-me que falou mal da frase de Paulo Emílio Salles Gomes, quando afirmou que o pior filme brasileiro era melhor do que qualquer filme estrangeiro, achando-a uma bobajada (sic). Não estou, aqui, fazendo juízo de valor nem concordando com o crítico, mas constatando fatos. Recordo-me que contou que dias atrás tinha ido a um cinema ver Procura insaciável (Taking off), de Milos Forman, com sua colega do Estado de São Paulo, Póla Vartuk - que já morreu, e ficou estupefato quando esta, na seqüência em que todos fumam maconha, engoliu as orelhas de tanto rir. Achou que uma senhora daquela idade não deveria ficar tão efusiva. Mas sempre rindo. Muita conversa rolou até que falei de Walter Hugo Khoury. Biáfora, então, disse que era seu vizinho e telefonou para ele a perguntar se poderia dar um pulo acompanhado de um jornalista baiano. Khoury concordou e pediu, apenas, meia hora, pois estava na banheira. Biáfora me disse que, quando o realizador de Noite vazia acordava, tinha o hábito de ficar na banheira por um bom período de tempo.

Subindo o elevador, a porta deste se abre diretamente no apartamento de Khoury, não havendo, portanto, hall. Khoury nos recebeu no seu imenso espaço, e eu, Biáfora, Bajon, conversamos bastante, apesar de certo acanhamento característico de minha personalidade, que se poderia traduzir por timidez. De repente, de um dos quartos, aparece Sandra Bréa, que estava trabalhando com ele em O convite ao prazer. Finda a visita, estávamos já na rua, quando Biáfora nos convida para almoçar num restaurante italiano ali perto. Fomos. Iria viajar à meia-noite de ônibus para voltar ao Rio de Janeiro e já tinha fechado a conta no Hotel Central. Depois do almoço, resolvi me despedir para andar pelas ruas de São Paulo até o anoitecer, quando iria para a rodoviária esperar o ônibus. Ciente do fato, Biáfora, terminada a refeição, convidou-me para descansar um pouco em seu apartamento. Bajon, lembro-me, não nos acompanhou porque estava com um parente muito doente. Na entrada do prédio, o porteiro disse que tinha ali uma encomenda para ele. Era um álbum de fotografias americano, fotografias de atrizes famosas, as divas do cinema, como Greta Garbo, em imagens ricamente iluminadas. Já no apartamento, não tive vontade de descansar, e Biáfora me mostrou os cadernos manuscritos onde anotava os filmes que via, com fichas completíssimas, comentários, etc. Quando falei de minha admiração por Moniz Vianna, Biáfora, incontinenti, pegou do telefone e ligou para ele, que concordou em me receber quando estivesse no Rio. Perguntei como, antigamente, conseguia as fichas técnicas já que as distribuidoras não as forneciam assim tão completas. Disse-me que anotava tudo dentro do cinema. Via o filme e, depois, na outra sessão, ficava a anotar.

Bem, para quem não sabe, Gervásio Rubem Biáfora foi um dos grandes críticos de cinema dos anos 50, 60 e 70. Também realizador, dirigiu, entre outros, dois filmes que merecem, porque muito bons, uma revisão: Ravina e O quarto, este último, para mim, o seu melhor trabalho, que foi injustamente desprezado pela crítica ideológica.

P.S: Gustavo Dahl traça um excelente perfil de Rubem Biáfora nos dois últimos números da revista Filme/Cultura. Aqui: http://filmecultura.org.br/categoria/edicoes/#

25 outubro 2011

A miséria cultural baiana

Diz-se que a Bahia já teve seu Século de Péricles, uma alusão ao período efervescente que se situou nos anos 50 e na primeira metade dos 60, quando Salvador congregava o que havia de mais criativo na expressão artística. Estimuladas pela ação da Universidade Federal da Bahia, comandada, e com mão de ferro, pelo Reitor Edgard Santos, as artes desabrocharam com o surgimento do Seminário de Música, da Escola de Teatro, do Museu de Arte Moderna, dos inesquecíveis concertos na Reitoria, da porta da Livraria Civilização Brasileira na rua Chile, dos papos ao por do sol frente à estátua do Poeta, no bar e restaurante Cacique, dos debates calorosos da Galeria Canizares (no Politeama), da "boite" Anjo Azul (na rua do Cabeça), entre tantos outros pontos que faziam da Bahia um recanto pleno de engenho e arte.

Na Escola de Teatro, por exemplo, que, inicialmente, foi dirigida por Martim Gonçalves, montava-se, lá, de Bertolt Brecht, passando por Ibsen, Eugene O'Neill, entre tantos, a Strindberg, com um rigor inusitado, e tal era a excelência de seus espetáculos que vinham pessoas do sul do País, e até do exterior, vê-los encenados "in loco". No curso de preparação de ator, o estudante levava alguns anos para poder participar de uma montagem teatral, iniciando a sua trajetória como um mordomo mudo ou de poucas falas. Somente ter o seu nome no programa da peça já era um prêmio, uma alegria, um consolo.

O livro Impressões Modernas - Teatro e Jornalismo na Bahia, de Jussilene Santana, analisa a configuração do teatro como temática na imprensa baiana em meados do século XX e, pela primeira vez, faz justiça a Martim Gonçalves, o responsável pela excelência das montagens teatrais, criador da Escola de Teatro (que hoje tem o seu nome), mas muito criticado na sua época e até mesmo denegrido pelos opositores. Após a leitura deste livro imprescindível, a conclusão é única e inequívoca: sem Martim Gonçalves não se teria um teatro baiano do nível a que chegou, ainda que, décadas depois, tenha perdido todo o seu vigor, transformando-se num grande proscênio destinado à proclamação de "besteiróis", honradas as exceções de praxe.

Cinqüenta anos depois, meio século passado, a realidade cultural baiana é uma antípoda da efervescência verificada, uma época que foi chamada, inclusive, de "avant garde" pela sua disposição de inovar, pela marca de vanguarda da mentalidade de seus artistas e intelectuais. Atualmente, a Bahia regrediu muito culturalmente a um estado, poder-se-ia dizer, pré-histórico, e o "homo sapiens" do pretérito se transformou no "pithecantropus erectus" do presente. Aquele estudante do parágrafo anterior, por exemplo, não existe mais.

Na Bahia miserável da contemporaneidade, qualquer um pode pular em cima de um palco, qualquer um se sente apto a dirigir uma peça, "mexer" com cinema, fazer filmes. Com as sempre presentes exceções de praxe, o teatro que se pratica na Bahia é um teatro besteirol, que faria corar aqueles que participaram da antiga escola de Martim Gonçalves.

A Bahia não está apenas mergulhada em bolsões de pobreza, na violência diuturna e desenfreada, com seu povo excluído de tudo - e até mesmo dos cinemas, mas do ponto de vista cultural a miséria é a mesma. Miséria cultural, descalabro, ausência do ato criador, apatia, desinteresse. Eventos existem para a satisfação de pseudo-intelectuais que não possuem as bases referenciais necessárias para a compreensão do que estão a ver ou a ouvir. O momento presente, se comparado aos meados do século passado, assinala uma regressão cultural sem precedentes. Como disse Millor Fernandes, a cultura é regra, mas a arte, exceção, o que se aplica sobremaneira sobre o estado atual da cultura baiana. Cultura se tem em todo lugar, mas arte é difícil, e a arte baiana praticamente não existe.

Com o desaparecimento dos suplementos culturais e o advento de normas editoriais que privilegiam o texto curto, além da incultura reinante pela assunção do império audiovisual em detrimento da cultura literária (vamos ser sinceros: ninguém hoje lê mais nada), a crítica cultural veio a morrer por falência múltipla das possibilidades de exercício da inteligência numa imprensa cada vez mais burra e superficial.

Sérgio Augusto, crítico a respeitar, que militou nos principais jornais cariocas, em entrevista ao "Digestivo Cultural", site da internet (vale a pena lê-la na íntegra: http://www.digestivocultural.com/entrevistas/entrevista.asp?codigo=10), do alto de sua autoridade no assunto, afirmou que o jornalismo cultural está morto e enterrado, ressaltando que se fosse um jovem iniciante não entraria mais no jornalismo porque não vê, nele, perspectivas para a crítica de cultura (área de sua especialidade).

Dava gosto se ler o Quarto Caderno do Correio da Manhã com aqueles artigos copiosos, imensos, que abordando cultura e artes em geral, eram assinados por Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, José Lino Grunewald, Antonio Moniz Viana, entre tantos outros. A rigor, todo bom jornal que se prezasse tinha seu suplemento cultural. Aqui mesmo em Salvador, vale lembrar o do Diário de Notícias e o do Jornal da Bahia (em folhas azuis). Atualmente, resiste o Suplemento Cultural de A Tarde (mas, mesmo assim...).

A inexistência da crítica de arte não diz respeito apenas ao soteropolitano. É uma constatação geral no jornalismo brasileiro. Mas, e os cadernos culturais e as ilustradas da vida? Caracterizam-se pela superficialidade e servem, apenas, como guia de consumo, com suas resenhas ralas. Atualmente, os cadernos dois, assim chamados, são até contraproducentes porque elogiam o que deveriam criticar, colocando na posição de artistas personalidades que deveriam, no máximo, estar no departamento de limpeza de estações rodoviárias.

A crítica de arte serve justamente para isso: para, construtivamente, sem insultos, mas com argumentos sólidos, desmontar aquilo que não presta. Que falta não faz uma crítica de teatro séria, que, semanalmente, venha a apreciar o que se está a apresentar na cidade como literatura dramática! Ou uma crítica de artes plásticas. A interferência de um crítico faria corar muitos pintores que estão expondo na Bahia e posando como artistas. Assim também uma crítica de cinema que fosse menos paternalista com os "coitados' dos cineastas baianos cujas imagens são a de "franciscanos" em busca da expressão cinematográfica, mas cujos resultados, em sua grande maioria, remetem o espectador aos braços de Morpheu, quando não à aporrinhação.

Para se ter um pequeno exemplo: a emissora de tv de maior audiência da Bahia apresenta todos os dias, em seu noticiário, grupos de pagode, de arrocha, entre outros, que passam a impressão de que os soteropolitanos não possuem talentos musicais - o que não é verdade.

Se a miséria da cultura baiana é cristalina, a miséria da crítica cultural é, também, imensa. Que esmola pode ser dada para se acabar com ela?

A imagem. Retirantes, de Portinari.

23 outubro 2011

Para um domingo de encantamento

A magia do cinema do pretérito, uma certa ingenuidade e, diria mesmo, uma certa inocência, e um certo tipo de comédia, se perderam com o passar do tempo. Neste domingo, aqui chuvoso, nada melhor do que se sentir em plena década de 50, e dentro de um cinema de verdade, com dois mil lugares, vendo um filme como Artistas e modelos (Artists and Models, 1955), de Frank Tashlin, com Jerry Lewis, Dean Martin, Shirley MacLaine, Dorothy Malone. O final deste filme é puro encantamento pela sua simplicidade, pela sua poesia. Vejam, por exemplo, o ligeiro movimento de câmera que sai dos dois casais para uma igrejinha e, na volta, mostra-os já vestidos com a indumentária de casamento. Um primor. Tashlin introduziu o cartoon no cinema, e é um realizador importante, apesar de esquecido. Há, dele, uma comédia, além de muitas outras, evidentemente, antológica: Em busca de um homem (Will success spoil Rock Hunter?, 1957), que, inclusive, influenciou Billy Wilder em Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960), que, nem por isso, deixou de ser uma prima obra.

Foi a partir de filme como Artistas e modelos que aprendi a amar o cinema.

19 outubro 2011

Deputados baianos louvam Glauber Rocha

Recebo da jornalista Maria Olivia Soares o convite e o comunicado da homenagem que vai ser prestada, quinta, pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, a Glauber Rocha pela passagem dos 30 anos de seu falecimento. Transcrevo na íntegra:
"Há 30 anos, em 1981, morria o maior de todos os realizadores cinematográficos brasileiros: Glauber Rocha. A Assembleia Legislativa da Bahia realizará uma sessão especial, proposta pelo deputado Álvaro Gomes, dia 20 de outubro, às 14 horas e 30 minutos. 'Uma justa homenagem ao cineasta de Deus e o diabo na terra do sol, um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos', afirma o deputado idealizador da sessão. Na ocasião, o escritor (autor de Glauber, Esse Vulcão, considerada a melhor biografia de GR), jornalista, intelectual, e amigo de Glauber desde a sua adolescência, João Carlos Teixeira Gomes (Joca) falará sobre a trajetória deste artista do cinema, que tem hoje dimensão internacional. Durante o encontro, o professor e compositor Fábio Paes vai cantar em memória de Glauber. 'Vamos realizar um belo encontro no plenário do Legislativo baiano, para manter viva a memória de um dos mais importantes cineastas do século XX, o baiano de Vitória da Conquista que conquistou o mundo com sua genialidade', afirma Álvaro Gomes, proponente da homenagem ao diretor de Terra em Transe, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, entre outros."

Antonioni e a antinarrativa

Geômetra cartesiano dos sentimentos humanos, Michelangelo Antonioni é um realizador que, com seus filmes, principalmente a trilogia A aventura, A noite, e O eclipse, renovou a linguagem cinematográfica, e introduziu, nela, o domínio da antinarrativa, o silêncio como elemento de produção de sentidos, os tempos mortos como estabelecimentos rítmicos da mise-en-scène. O cinema moderno tem em Michelangelo Antonioni o seu grande impulsionador, principalmente porque instaurou a desdramatização. Se o cinema americano pasteurizou, por assim dizer, a linguagem do filme, privilegiando, na narrativa, somente os tempos fortes, Antonioni introduziu, como peça de estilo, mas, também, de significação, os tempos mortos, quando as expectativas do espectador são frustradas, porque sempre espera que, dada uma determinada situação, aconteça alguma coisa no processo narrativo. Mas o grande realizador, que saiu da cena da vida com idade provecta, 94 anos, deixou uma fortuna crítica considerável e sua influência foi imensa, bastando dizer que todo o Wim Wenders dos anos 70 é puro Antonioni, além das influências exercidas em cineastas de diversos países, a exemplo, no Brasil, de Walter Hugo Khoury, autor do definitivo Noite vazia (1964). Antonioni soube, como poucos, captar o mal-estar do mundo, e se revelou um tratadista da incomunicabilidade entre os homens.

Egresso do neo-realismo italiano, na década de 50, assim como Fellini, abandonou a tônica social do movimento para focalizar a angústia do homem do pós guerra, principalmente daquele pertencente à sociedade burguesa italiana. Há, portanto, em Michelangelo Antonioni, uma importância dupla para o cinema, a do ponto de vista do elo sintático (da linguagem), e aquela do elo semântico (do tema). Inovou na sintaxe e inovou, também, na maneira de fazer emergir seus temas recorrentes: a análise perfuratriz da incomunicabilidade na burguesia italiana, o silêncio que se estabelece nas relações humanas, o vazio, e a ausência de perspectivas.

Nasceu em Ferrara (Itália), em 1912. Adolescente, viveu em Bolonha, onde começou seus estudos de economia e letras, que depois seriam substituídos pela arquitetura. Nesta época, já se inicia na crítica cinematográfica, escrevendo alguns ensaios sobre a arte do filme para o jornal IL Corrière Padano. Aficionado pelo tênis, competiu em vários torneios dessa categoria, e, na juventude, ganhou muitos troféus, que, até morrer, guardava-os com especial apreço. O desabrochar do futuro realizador, porém, precisaria esperar a sua transferência para a capital da Itália, Roma, que se deu quando tinha 27 anos, em 1939. Nesta cidade, centro cultural, ainda que sob regime fascista e às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, fez parte da entourage da revista Cinema, publicação oficial que congregava os nomes do futuro neo-realismo: Luchino Visconti, Giuseppe De Sanctis, Vittorio De Sica, Pietro Germi, entre outros. Passou por um período de dificuldades financeiras, mas conseguiu se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, abrindo-se, então, a oportunidade de escrever vários roteiros e, entre eles, uma colaboração com aquele que viria a detonar o neo-realismo italiano com Roma, cidade aberta: Roberto Rossellini. O jovem Michelangelo se estabelece com maior desenvoltura no meio cinematográfico, colaborando com traduções e críticas para Itália Libera, Film d’Oggi e Film Revista. Trabalhou, nesta ocasião, como assistente de um ícone do cinema clássico francês: Marcel Carné e, por isso, foi enviado à França como representante de Os visitantes da noite (Les visiteurs du soir), deste diretor.

Na volta, vê-se considerado a experimentar a realização de alguns documentários, sendo que, o primeiro deles, Gente Del Pó, tem suas locações nos mesmos lugares aos quais voltaria quando fez, muitos anos mais tarde, O grito. Logo no seu primeiro longa metragem, Cronaca di um amore (1950), já se pode encontrar os temas que seriam característicos deste que é um dos mais importantes e pessoais realizadores do cinema moderno, as suas constantes temáticas, como a do vazio que se estabelece na relação humana. Dois anos depois, 1952, um filme em três episódios, um na Inglaterra, um na França, e um na Itália, abordando, nestes países, o problema da juventude que privilegia o crime como forma de sobrevivência: Os vencidos/I vinti. A seguir, La signora senza camelie, em que se preocupa de novo por estudar um personagem feminino, outra das características de seu cinema.

Autor de filmes, nunca um mero estilística, ou um artesão, Michelangelo Antonioni já revela sua marca e seu estilo inconfundível nos filmes que se seguem: As amigas (Le amiche, 1955), O grito (Il grido, 1957). Mas é com A aventura (L’avventura, 1959), filme que dá início à sua famosa trilogia da incomunicabilidade, que se consagra, definitivamente, entre a crítica internacional, constituindo-se uma síntese de sua obra anterior e uma espécie de prelúdio dos outros filmes que viriam a seguir, como A noite (1960) e O eclipse (L’eclisse, 1961). A idéia de ficção que, mediante um processo de descascamento narrativo, vai desaguar na água documental, foi uma das grandes constantes do cinema de Antonioni. As imagens finais de O eclipse, por exemplo, já eram documentário. José Lino Grünewald, inclusive, constatou que Antonioni terminava por onde Alain Resnais começava. Ele se referia, sem dúvida, ao processo de descascamento narrativo que, uma vez concluído, só poderia dar lugar ao espetáculo puro – ou seja, O ano passado em Marienbad.

A primeira experiência de Antonioni em cores se deu em O dilema de uma vida (Il deserto rosso, 1964), a retomar, aqui, o tema da incomunicabilidade, que se estabelece dentro de uma mise-en-scène na qual a cor exerce função dramática e de produção de sentidos. A pesquisa da cor no tecido dramático seria exacerbada no filme que fez, em seguida, na Inglaterra: Blow up, que no Brasil tomou o título de Depois daquele beijo. Antonioni exigiu que alguns quarteirões de Londres fossem todos pintados com cores berrantes. Blow up traumatizou duramente os devotos (que não se chame aqui de cinéfilos) do bom cinema nos anos 60. Um filme que expressa o niilismo da juventude de sua época através do personagem de David Hemmings, fotógrafo da moda e de moda, que, bem nutrido, com vida confortável, sente, porém, profundo vazio em sua existência até que, fotografando, por acaso, um casal que se beija num parque, descobre, com a ampliação das fotografias, um crime. Antonioni deixa, porém, a resposta vaga, e a significação que pode de tudo advir é aquela da seqüência final, quando pessoas jogam tênis sem a bola. A influência de Janela indiscreta (Rear window), de Alfred Hitchcock, é evidente, mas, aqui, relida em outro ângulo e em outro prisma.

Não se pode falar em Michelangelo Antonioni sem ressaltar a sequência derradeira de O passageiro: profissão repórter (The passenger, 1975) e do seu emblemático plano-sequência no qual a câmera sai do quarto onde está deitado Jack Nicholson, atravessa a janela, circula pelo pátio e volta ao quarto. Quando ela, a câmera, está fora, é que se ouve um tiro com o qual é morto o personagem. Até hoje não se sabe como Antonioni conseguiu realizar este plano, tal o seu virtuosismo, tal a sua habilidade. E em O mistério de Oberwald, como numa premonição, antecipa a estética do vídeo.

Num ensaio escrito para a extinta revista Filme/Cultura (setembro de 1967, número 6), o crítico Jaime Rodrigues, discípulo de Moniz Vianna, estabeleceu com rara felicidade as características do cinema de Michelangelo Antonioni. Um estilo que se define mais por determinadas linhas de ação que por variações em torno de um mesmo tema. Cineasta amargo, mas que procura reencontrar uma linguagem comum aos seres humanos. Em seus filmes, patente, a integração do indivíduo e ambiente: os objetos, as coisas – o mundo industrializado, enfim, fazendo parte do millieu humano. Antonioni constata a caducidade dos valores do nosso tempo numa pesquisa intensa para chegar a novas formas de compreensão. Rodrigues vê nos filmes de Antonioni o último eco do expressionismo pelas construções, com os objetos dominando o ambiente. E, neste particular, vale lembrar que, sendo Antonioni um arquiteto, seus enquadramentos são estudados, perfeitos, primorosos, E, no frigir dos ovos, é o neo-realismo passado a limpo: as implicações dos desajustes sociais sobre a estrutura psicológica do homem. E a certeza de que os problemas da consciência são, sobretudo, problemas de reflexão diante do mundo.

16 outubro 2011

Bergman e o silêncio autofalante

Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, cidade universitária sueca, em 1918, vindo a morrer aos 89 anos, em julho de 2007, prestes a completar os mitológicos novent'anos. Se todos não podem escapar à Implacável (como é personificada em um de seus filmes mais celebrados: O sétimo selo), pode-se dizer que o grande cineasta cumpriu além da conta a sua missão, pois ofertou à humanidade uma das obras mais sólidas e densas de toda a história do cinema. Deixou um legado inestimável, que transcende o próprio cinema para ser considerado uma contribuição indiscutível e inquestionável ao patrimônio cultural da humanidade.

Filho de um severo e grave pastor luterano da corte real (que retratou em Fanny e Alexander), a influência de seu pai foi muito forte para a visão atormentada do mundo do jovem Bergman, cuja educação, rigorosa, carregava o fardo do sentimento do pecado e da culpa (duas constantes que iria desenvolver em sua rica filmografia). Ainda adolescente, saiu de Uppsala para se fixar em Estocolmo com o propósito de, na capital do país, estudar literatura e artes e, nestas, a arte dramática que logo o fascinou. Por este tempo atuou como diretor de uma companhia teatral universitária, a qual o pôs em caminho de sua vocação. Com a sua inscrição nos cursos de aperfeiçoamento do Master-Olofsgarden e do Medborgarhuset, a formação de Ingmar Bergman toma corpo, principalmente depois que experimentou montar um de seus autores preferidos: Sonata dos espectros, de August Strindberg.

Após passar por um período de treinamento como assistente de direção da Ópera Real de Estocolmo, ingressou no cinema em 1944, aos 26 anos, por causa de um amigo, Carl Andrés Dymling, que era administrador do Svenskfilindustri, para o qual escreveu o roteiro de Tortura (Hets), realizado por Alf Sjoberg. O sucesso de Hets fez com que o estúdio prestasse atenção a seu roteirista, dando-lhe a oportunidade de dirigir o seu primeiro filme, em 1945, Crise (Kris), adaptação de uma peça teatral de Leck Fischer.

O cinema de Ingmar Bergman é um cinema culto e refinado que engloba toda a tradição cultural nórdica, incluindo, aí, os filmes clássicos suecos, principalmente os de Victor Sjostrom - A carroça fantasma (Korkalen, 1920), deste, era visto toda noite de Ano Novo pelo realizador, chegando a afirmar que era a maior obra de todos os tempos, e os realizados pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer (A paixão de Joana D'Arc, Vampyr, A palavra). Mas além da tradição nórdica, Bergman incorporou ao seu cinema as experiências do expressionismo alemão (o início de Morangos silvestres tem influência do expressionismo e é uma homenagem a Korkalen, de Sjostrom), do surrealismo e do existencialismo sartriano, enraizando-os em seu próprio país. Sjostrom seria o principal ator em Morangos silvestres no papel centro, a do velho que faz uma revisão de sua vida.

Observando-se bem, em cada obra de Bergman se unem a problemática moral, a incomunicabilidade dos seres, a urgência da morte, o silêncio de Deus, a angústia de estar-no-mundo. A primeira fase de seu cinema, a fase juventude, que tem início em Crise e vai até meados do decurso dos cinquenta, ainda comporta otimismo, apesar do amargor, e até mesmo a comédia embora não desprovida de certo cinismo, como a notável Sorrisos de uma noite de amor (Somarnattens leende, 1955), cujos acentos shakespearianos são evidentes, assim como a influência, notória, de A regra do jogo (La règle du jeu, 1939), de Jean Renoir. Nesta fase inicial, no entanto, os filmes mais marcantes e que proporcionaram a seu autor o reconhecimento internacional foram Noites de circo (Gyclamas afton) - tortura e solidão, um libelo do artista contra a sociedade e sua ordem - e Mônica e o desejo (Sommarenmed Monika), ambos de 1953. O Bergman pessimista das últimas fases cede, aqui, lugar a um olhar simpático pela beleza da juventude, mas nunca, no entanto, deixando a sua visão ácida da existência. A tragédia da humilhação, talvez mais do que em Shakespeare, nunca esteve tão bem apresentada quanto em Noites de circo.

Se Deus colocou o homem no mundo, pensava Bergman, deixou-o à sua própria sorte, desamparado, triste, desesperado. A única solução possível para amainar o seu desespero está no amor, mas este é efêmero, passa, e a vida permanece sem sentido. A busca por uma metafísica da existência faz parte de seus temas recorrentes. A filmografia de Bergman, por seu um autor de filmes (em oposição ao cinema de gêneros) é como se fosse constituída por um macrofilme do qual as obras singulares se enquadram como variações sobre um mesmo tema, excetuando poucos filmes atípicos, a exemplo de O ovo da serpente (Das Schlangenei, 1979), que realizou na Alemanha quando saiu da Suécia motivado pelo rigor fiscal, obra política que mostra a gênese do nazismo, A flauta mágica (Die Zauberfloete, 1975), homenagem à ópera e a Mozart num filme que obedece as marcações teatrais, Para não falar de todas estas mulheres (For Att Inte Tala Om Alla Dessa Kvinnor, 1963), entre poucas.

O silêncio de Deus é uma constante em seus filmes. Traumatizado com o rigor de sua educação religiosa, nos filmes de Bergman estão sempre presentes os tormentos em torno do pecado e da culpa. Um silêncio que é sentido com a progressão de sua filmografia já na fase que tem início em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), a fase da perplexidade, e que engloba Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), A fonte da donzela (Jungfrukallan, 1959), entre outros.

Entre todos os filmes de Bergman, a preferência do comentarista recai sobre Morangos silvestres e O silêncio (Tystnaden, 1962), ainda que fique difícil se escolher entre as obras de um cineasta que explodiu o conceito de obra-prima, considerando-se que realizou várias delas. Em Morangos silvestres, cuja preferência talvez seja ser o seu primeiro Bergman, visto no entusiasmo da adolescência e, nesta, a constatação de que o a arte do filme se encontra além do cinema de gênero, da qual fora acostumado a ver, e a constatação de que o cinema também podia ser um veículo do pensamento, de uma visão de mundo, de uma filosofia de vida. Um velho senhor, professor universitário, sai de sua cidade interiorana na Suécia para receber, na universidade de Estocolmo, o título de Doutor Honoris Causa. Apesar de todos os seus familiares preferirem ir de avião, o velho opta por ir de carro com a sua nora. No caminho, durante a viagem, ele faz uma revisão de sua vida, concluindo que somente a generosidade e o amor podem torná-la mais suportável.

A fase dos filmes de câmera tem início em Através do espelho (Sasom i em spegel, 1960), sendo bastante extensa, uma fase na qual Bergman se fecha cada vez mais, reduzindo ao essencial seus atores e o cenário. É nesta fase que se destacam O silêncio, Quando duas mulheres pecam (Persona, 1966), e A paixão de Ana (En passion, 1970), e Gritos e sussurros, filme síntese da obra bergmaniana.

A fase psicanalítica encontra o seu apogeu em Cenas de um casamento (Scener ur ett Aktenskap, 1974), seguido de Face a face (Ansiktet mot Ansiktet, 1976), Sonata do outono (Hortssonat, 1978) quando Bergman encontra Ingrid Bergman, também sueca como ele, a atriz famosa, hollywoodiana, que trabalha ao lado de Liv Ullman. Segundo a impressão do comentarista, e questão subjetiva, a fase psicanalítica é a mais fraca - ainda que, como um grande autor, fraca para Bergman não queira dizer sem importância.

Em 1982, Bergman anunciou sua aposentadoria do cinema, com a conclusão de Fanny e Alexander (Fanny och Alexander), mas não cumpriria a promessa, pois ainda faria alguns filmes. Seu último filme, Sarabanda, data de poucos anos atrás, e é uma releitura de Cenas de um casamento, com o encontro do mesmo casal já na velhice.

Cliquem, por favor, na imagem

14 outubro 2011

Leon Cakoff: agente da cultura cinematográfica

Morreu Leon Cakoff, um agente cultural que possibilitou aos amantes do cinema um grande enriquecimento com a sua grande Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Tinha apenas 63 anos. E ontem também faleceu Alberto Salvá, autor de um dos mais belos filmes brasileiros de todos os tempos: Um homem sem importância, com Oduvaldo Vianna Filho e Glauce Rocha.

13 outubro 2011

Incontinência Urinária

O espaço de meu blog é democrático - disso faço questão. E a pluraridade, quero crer, é conditio sine qua non do debate democrático. O cinema baiano, no entanto, parece que se fecha em copas quando se trata de seus filmes. Já disse aqui que, na noite do lançamento de O homem que não dormia, não o pude ver com a atenção necessária e, por ironia (mas não é ironia), por causa das cervejas tomadas no café-teatro durante a tarde e o cansaço, tive, durante a projeção, uma incontinência urinária, que me fez afastar vários minutos da contemplação do último filme do caro Navarro. Voltando, adormeci. Não vi, portanto, O homem que não dormia. O título dado por Raul Moreira, porém, e devo deixar isso bem claro, não tem a ver com o que me aconteceu.  Polemista por natureza e vocacão, o jornalista e cineasta Raul Moreira me enviou o texto que vai abaixo com o título acima exposto. É de sua exclusiva lavra todas as palavras que estão abaixo. E, para que não percamos mais tempo, vamos a elas, abrindo as necessárias e imprescindíveis aspas:

"Caro Edgard Navarro,
Por respeitá-lo como realizador e também por reconhecer certa autenticidade em seu caráter irreverente, só eu sei o quanto foi difícil constatar que a sua derradeira peripécia cinematográfica, O Homem que não dormia, infelizmente não se constituiu à altura das expectativas, mostrando-se irregular em sua “espinha dorsal”.

Digo-lhe isso com absoluta convicção, pois, depois de assisti-lo pela primeira vez no Teatro Castro Alves, dentro do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual, pude revê-lo de recente, no Festival de Brasília, em concurso, como você bem sabe.

E, através destas linhas, finalmente faço público o meu parecer a respeito de O Homem que não dormia, avaliação que você me cobrou na Capital Federal de forma deselegante, demonstrando, como de costume, o seu desequilíbrio em lidar com as supostas adversidades, principalmente quando atingem às suas convicções.

Antecipo-lhe que não quero entrar no mérito de seus descompassos, pois aqui não é espaço terapêutico, mas, sim, um blog que se propõe a discutir e reverberar questões importantes da Sétima Arte. E, nada melhor, portanto, do que incorrer na leitura de um filme que tinha tudo para acontecer e que perdeu-se, quem sabe, na sua obsessão em curar-se através de sua própria obra.

Cá, antes de entrar na análise da coisa em si, vou situar rapidamente o leitor a respeito de quem é você, a partir de suas principais obras cinematográficas, os premiados SuperOutro (1989) e Eu Me lembro (2005), média-metragem e longa-metragem que respectivamente o elevaram à condição de cineasta de relevo.

Há quem diga que SuperOutro, o super-herói esquizoide interpretado de forma magistral por Bertrand Duarte, é um dos dez melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Exagero ou não, a verdade é que o média de pouco mais de 48 minutos tornou-se cult e, explicitamente, revelou a sua personalidade criativa e atormentada.

Por fim, 16 anos depois de o SuperOutro, finalmente você se deu ao seu primeiro longa, Eu me lembro, obra que talvez tenha sido supervalorizada pelos inúmeros prêmios conquistados no Festival de Brasília em 2005. De certa forma autobiográfico e de perceptível inspiração felliniana, tanto que o batizaram de “amacord edgardiniano”, trata-se de um filme arrumado e convencional na sua estrutura, levando-se em conta a referência que tínhamos do imbatível SuperOutro.

Agora, talvez completando um ciclo, que acabou formando uma trilogia toda ela autorreferente, você arriscou-se em O Homem que não dormia através de uma abordagem junguiana, de forma confessa. Em outras palavras: para soterrar os seus fantasmas e garantir-lhe uma almejada redenção, você nos brindou com um filme que beira o realismo fantástico, nos transportando ao seu universo complexo e repleto de sombras e perversões, dando-se ao direito, claro, de escapar pelos ares a gritar, novamente através de seu ator fetiche, Bertrand Duarte, como o fizera em SuperOutro, a sua frase mais famosa: “Abaixo a gravidade!”.

Pois bem, Edgard Navarro: espero que você tenha encontrado alívio para os seus tormentos, que tenha alcançado a sua redenção. E, se assim realmente se deu, nos resta, tão-somente, analisar a obra cinematográfica através da qual você libertou-se, nas suas belezas e misérias, pois, independentemente de suas convicções pessoais, quando ganhou as telas, O homem que não dormia passou a ser nosso, também.

Realizado a partir de um insight que bateu-lhe à porta há mais de 32 anos, quando fumava um baseado de boa erva, você construiu a trama de O Homem que não dormia centrado na maldição que acompanha um barão sanguinário e a qual se desdobra direta e indiretamente nas angústias de cinco personagens que encontram-se perdidos em suas existências e sonham os mesmos sonhos: Vado (Fábio Vidal), um epilético que apanha do pai; Madalena (Mariana Freire), mulher livre e mal falada; Brígida (Evelin Buccheger), mulher do coronel e grávida de seu amante; PráFrente Brasil (Ramon Vane), um sequelado da época da ditadura militar e, por fim, padre Lucas (Bertrand Duarte), atormentado pelos seus desejos carnais.

Para completar o desfilar de personagens centrais, Edgard Navarro vive o sanguinário Barão, proposto em flashbacks, enquanto Luiz Paulino dos Santos é uma espécie de ermitão que supostamente o reencarna no tempo presente, dentro de uma perspectiva kardecista, numa clara alusão ao mito das vidas passadas. E, de lambuja, uma série de personagens secundários tentam dar um sentido ao processo narrativo.

Assim, em um mundo perdido de uma Bahia profunda, Navarro constrói um mosaico no qual estão expostas questões ideológicas, de classe, de raça, de credo e, principalmente, nos transporta ao cerne de suas perversões e angústias. E o faz, diga-se de passagem, não apenas com imaginação e criatividade, mas, também, contagiado pelos seus autores e filmes prediletos, a exemplo de Artaud, Pasolini e até Buñuel, sem falar do próprio SuperOutro, influências que o mesmo reconheceu durante entrevista coletiva no Festival de Brasília.

O diabo é que em O Homem que não dormia você acabou por menosprezar a inteligência dos espectadores, pois, as cenas explicativas de seu filme, para não falar em didatismo, acabaram tirando a graça de uma trama que poderia vingar, muito bem. E, tal lacuna, reflete a falta de ajuste do roteiro, o que prejudicou a montagem e, por tabela, tornou a narrativa irregular. No final, o somar de derrapagens, como o diluir do filme em tantos personagens, o comprometeu sobremaneira, expondo outras fraturas, como a trilha sonora exagerada e estrondosa, sem falar do abuso que causou certas cenas que não tinham propósito algum, senão aquele de chocar, como o surto de “incontinência urinária” de seus desajustados. Como não poderia deixar de ser, tais escolhas acabaram por minar alguns acertos pontuais, como a direção de arte, a fotografia e o bom representar de parte do elenco.

Sim, O homem que não dormia é um filme que merece um estudo aprofundado por parte daqueles que se interessam pelos processos de construção e afirmação de uma obra cinematográfica. Isso porque, em um mesmo trabalho, encontram-se elementos que o fazem vigoroso e corajoso no seu sentido autoral e anárquico, mas, ao mesmo tempo, é repleto de discrepâncias, as quais são difíceis de relevar, principalmente quando se envolve interesses que não podem ser deixados de lado e dinheiro público.

ESTRUTURA - Se certamente vai encontrar dificuldades para encarar o dito público médio, o que significa que não vai fazer bilheteria, no seu primeiro teste de fogo O Homem que não dormia desandou. No Festival de Brasília, encerrado na semana passada, levou apenas um prêmio de consolação, no caso o merecido Candango de Melhor Ator coadjuvante para Ramon Vane. No restante, passou de mãos abanando, sendo derrotado por filmes de estrutura acadêmica, mas que foram capazes de comunicar, de construir um fio entre o desejo e a realização de seus autores.

No final, fica a sensação de que O homem que não dormia é um navio no qual o comandante Edgard Navarro conclamou a sua tripulação a partir em busca de uma viagem redentora, sem mostrar-lhe com exatidão a rota que pretendia seguir. Mesmo assim, sem pestanejar, seus marujos embarcaram de cabeça, achando que iriam alcançar juntamente com o velho lobo do mar um porto seguro. Por azar, uma tempestade avariou a nau no início do percurso. Hoje, ironia da sorte, a dita cuja encontra-se à deriva e fazendo água, deixando poucas opções ao comandante: ou se dá ao retirar incessante da água que a inunda, impossibilitada de reparo, numa espécie de mito de Sísifo, ou afunda nas profundezas com o seu mastodonte, de preferência sozinho, na mais honrosa das mortes.

Curioso, para não dizer sintomático, foi que após as duas primeiras exibições, em Salvador e em Brasília, você afirmou que fez um filme para si e, ainda que a sua obra afundasse diante dos olhos alheios, não estava nem aí, comportamento que mais parece uma estratégia de autodefesa. Em poucas palavras: você passou a ideia de que a materialização de O homem que não dormia era suficiente para aplacar a sua dor, para afastá-lo de seus tormentos, para fazê-lo alcançar a bendita redenção. Que não tenha uma recaída, ainda que para nós, espectadores vorazes dos seus filmes, bom seria vê-lo em ação novamente, arriscando-se em percorrer os caminhos do Inferno para alcançar o Paraíso."

Raul Moreira

Na imagem, Bertrand Durate e Luis Paulino dos Santos em um momento de O homem que não dormia. Clique nela.

09 outubro 2011

A vida íntima de Sherlock Holmes (The private life of Sherlock Holmes, 1970), do mestre Billy Wilder, originariamente filmado no formato cinemascope, vem sendo exibido pelo Telecine Cult em tela espichada, cheia (full screen), a resultar, com isso, a deformação da imagem, a desfiguração do enquadramento do filme. Pouco apreciado, porque, quando lançado em sua época, e retirado de cartaz, nunca mais exibido, A vida íntima de Sherlock Holmes é um Wilder em plena sensibilidade de seu humor e de seu cinema com um acento hitchcockiano que o faz ainda mais saboroso. Trata-se também do primeiro filme que Wilder (vienense radicado no cinema americano) realiza na Inglaterra (os interiores nos estúdios Pinewood) e Escócia (exteriores em Inverness). Produzido em 1970, com roteiro do inseparável I. A. L. Diamond, baseado nos personagens de Sir Conan Doyle, A vida íntima de Sherlock Holmes, sobre ser um espetáculo de grande finura, humor, e observação de comportamentos, é uma obra que se incorpora a uma filmografia quase única da história do cinema como mais uma variante de sua verve versátil e amplitude temática. A influência de Hitchcock se faz notável, mas influência benéfica, mais que soma do que diminui, como acentua Paulo Perdigão, o grande crítico, em comentário que posto abaixo.

Inativo, ocioso, Sherlock Holmes (interpretado por Robert Stephens) passa o tempo a tomar cocaína, apesar dos reclamos de seu biógrafo e amigo Dr. Watson (Colin Brakely). Aceitando o convite para assistir ao balé russo, Holmes é levado à presença da primeira-bailarina, Petrova (Tamara Toumanova), que, a desejar um filho genial, escolhe Holmes como o pai ideal. Polidamente, como é do seu feitio, o detetive recusa, a alegar ser um homossexual (é audacioso, para a época, a insinuação desta condição), declaração que deixa atônito o Dr. Watson totalmente desconfiado de sua misoginia. Dias depois, uma jovem, Gabrielle (a insinuante Geneviève Page), que tentara o suicídio no Tâmisa, é levada à residência de Holmes (rua Baker, 221-B). Ela viera da Bélgica para descobrir o paradeiro do marido, um engenheiro. O fleumático private eye segue uma pista, apesar das advertências em sentido contrário de seu irmão, Mycroff (interpretado pelo emblemático Christopher Lee).

Em Inverness, na Escócia, descobre Holmes a existência de um estranho submersível testado pelo governo, e que tem a forma do lendário monstro marinho Long Ness. Mycroff, que trabalha no projeto, revela a Holmes que Gabrielle é, na verdade, uma espiã alemã. Frustrado, o detetive volta à sua Londres enquanto Gabrielle é presa. Mais tarde, Holmes vem a saber, transtornado, que a moça fora executada. A solução, e solução wilderiana, diga-se de passagem, será voltar à cocaína.

The private life of Sherlock Holmes é o vigésimo - segundo filme da carreira do diretor e o nono em parceria com o roteirista Diamond (trabalham juntos desde Amor na tarde/Love in the afternoon, 1956). Produzido com sete milhões de dólares (uma mixaria em relação aos tempos faraônicos da Hollywood atual), é o centésimo vigésimo filme a apresentar a figura do detetive criado por Conan Doyle e aqui abordado livremente.

Como homenagem a este filme pouco apreciado de Billy Wilder e, também, como homenagem ao grande crítico que foi Paulo Perdigão, publico aqui uma crítica de sua lavra publicada no antigo Guia de Filmes do INC (Instituto Nacional de Cinema, que também publicava a revista Filme/Cultura. Nos bons tempos da crítica cinematográfica. Perdigão morreu em janeiro de 2007, o que se constituiu numa perda enorme para os escritos sobre a arte do filme. Tinha Perdigão como o seu melhor filme Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens. Chegou a ir, sob os auspícios da Filme/Cultura, entrevistar Stevens, que, a princípio arredio, com o desenrolar da conversa, assombrou-se com o conhecimento de Perdigão sobre Shane. No final da entrevista, disse que Perdigão conhecia mais o filme do que ele, seu diretor. Eis seu comentário:

"Elementar, meu caro Wilder. É o que o roteirista Diamond deve ter comentado com o diretor Billy Wilder quando ambos resolveram decifrar - sem consulta à fonte Conan Doyle - um mistério chamado A vida íntima de Sherlock Holmes. As pistas deixadas pelo fiel Dr. Watson dentro de uma caixa top secret eram dignas da imaginação, do faro e da irreverência do mais célebre detetive de todas as épocas; além da clássica indumentária sherlockiana (o boné de camurça, o cachimbo, a écharpe, a lente de aumento), já estavam os relatos que Watson não teve coragem de publicar em The Strand Magazine por serem indiscretos demais. Quatro episódios reveladores da personalidade de Sherlock e que, como diz Wilder com seu conhecido cinismo, "também refletem a imagem de certa Inglaterra".

Antes da atual aventura, Sherlock esteve 127 vezes na tela - numa delas (alemã de 1963) interpretado por Christopher Lee, que aqui faz o irmão de Holmes, Mycroft. Mas só agora, sob os traços do shakespeariano Robert Stephens, ele foi examinado por um cineasta à altura de sua sofisticação diabólica. Wilder identifica-se com Holmes e evidentemente o admira: "Ele é um dos maiores personagens da literatura, comparável a Hamlet e Cyrano de Bergerac". Por isso, as inconfidências sobre a intimidade do herói não atingem o plano da sátira devastadora; contém-se respeitosamente na fina ironia, numa reconstituição muito fleumática e astuciosa do mundo em que viveu Holmes, a velha Inglaterra vitoriana com seus personagens nobres, céticos e calculistas. Na carreira de Wilder, dominado por tantas provocações indômitas (A montanha dos sete abutres, Quanto mais quente melhor, Beija-me idiota), este filme ocupa posição mais discreta, porém, em quase tudo refletindo a sofisticação que o diretor guardou de suas antigas ligações com o mestre Lubitsch, como roteirista de A oitava esposa do Barba Azul e Ninotchka.

The private life of Sherlock Holmes é também como uma inesperada homenagem que o cinema presta a Hitchcock. O estilo e o tom da narrativa têm o mesmo sabor de velhos thrillers ingleses de Hitch e muitas imagens - a velha paralítica na loja deserta, os monges misteriosos do trem, os anões do cemitério - chegam a ser acintosamente hitchcockianas. Há, inclusive, na cena das ovelhas, uma citação de Os 39 degraus e, na seqüência do balé russo, a repetição de uma passagem idêntica de Cortina rasgada, com a mesma e sinistra Tâmara Toumanova. Até quando se diverte com a velha Inglaterra (a Rainha Vitória, de metro e meio de altura, protesta contra a falta de cortesia na guerra e manda destruir o submarino porque "não se pode atacar o inimigo sem aviso prévio"). Billy Wilder parece estar querendo fazer de A vida íntima de Sherlock Holmes o filme mais hitchcockiano que o Hitchcock da fase inglesa não dirigiu, conclui o grande Perdigão.

06 outubro 2011

“Let’s Make Money” - análise do Professor Jorge Moreira


O Professor Jorge Moreira, baiano da Ilha da Maré, hoje Ph.d, com tese sobre Antonio Callado, e regente de disciplinas em universidades dos Estados Unidos - já passou pela University of California, Minnesota, Wisconsin, entre outras), é, também, um grande admirador da chamada sétima arte, e, bissextamente, dá-me a honra de enviar análises perfuratrizes sobre filmes. Articulista de Rebellion, destacado diário onde escreve sobre política, Moreira tem um livro que, sobre dar imenso prazer de leitura, é um documento da paz reinante em sua meninice quando Salvador e adjacências era uma ilha de tranquilidade. Trata-se de Memorial da Ilha e outras ficções. Mas vamos parar por aqui para ler logo a sua análise de Let's Make Money, premiado documentário que se encontra despertando curiosidade pelo mundo afora.

“Let’s Make Money” é um filme (2008) do diretor austríaco Erwin Wagenhofer que conquistou em 2009 o premio de melhor documentário do Festival Internacional da Alemanha (German Documentary Film Prize) e que não devemos deixar de assistir.

O documentário, organizado em várias partes, mostra um conjunto de imagens e de entrevistas com os grandes investidores, economistas, professores, dirigentes políticos, com o povo e os representantes de organizações populares do terceiro mundo. As imagens e as entrevistas revelam como funciona o neoliberalismo no atual processo de globalização que nos conduziu a uma das piores crises econômicas da historia mundial, ou seja, revelam como funciona a expansão imperial do capitalismo pelos países do terceiro mundo e como no neoliberalismo os ricos ficam mais ricos e os pobres ficam mais pobres.

As entrevistas foram realizadas na África, na Ásia, na Europa e nos EUA onde os proprietários capitalistas dominam e exploram a população pobre de Gana, de Singapura, da Indonésia, da índia, da Espanha, dos EUA e outros países.

Entre os entrevistados encontram-se, de um lado, os dogmáticos defensores do neo liberalismo e da globalização (os que são favoráveis à expansão imperialista do capitalismo pelo mundo); do outro lado, encontram-se os críticos e os resistentes ao capitalismo.

Entre os defensores do neo liberalismo encontramos, como não poderia deixar de ser, o Sr. Mark Mobius, o presidente da Templat Emerging Markets que é a maior companhia administradora de fundos de investimiento do mundo, cujas operações alcançam um valor de 50 bilhões de dólares.

Também encontramos, entre os defensores, a Mike Kovats (um temível investidor que está colocado entre os 15 homens mais ricos de Áustria) e Terru Le Sueur (o ministro de finanças da ilha de Jérsei, o paraíso fiscal da Europa) que trata de justificar o “progresso da Ilha” afirmando que ela passou de uma economia baseada na agricultura para uma baseada no turismo; e finalmente, se transformou num dos grandes centros de finanças e de especulação internacional.

Entre os resistentes e os críticos do neo liberalismo (os que são representantes anti capitalistas das populações expropriadas pelo capital) estão:

Sujatha Raaju, formada em estudos de comerciais na Universidade de Madras (Índia) que denuncia a injustiça social, a miséria e a poluição causada pelo neo liberalismo na cidade de Chennai;

John Chistensen, economista de desenvolvimento que denuncia como o processo de desregulação do controle dos serviços financeiros e econômicos que foi engendrado pelo consenso de Washington, pelo Banco Mundial e pelo FMI e foram os responsáveis pelo aumento da expropriação das indústrias e empresas públicas e sociais em benefício da apropriação privada pelo grande capital: conforme ele foi este modelo neo liberal que nos conduziu a catástrofe econômico financeira atual;

Francis Kologom um gerente de produção do algodão que denuncia o sistema protecionista do liberalismo dos EUA como o responsável pela miséria dos plantadores africanos de Burkina Faso;

Werner Rugemer da Universidade de Colônia que denuncia o processo de privatização que expropriou os meios de transportes públicos de Viena (que pertenciam ao estado e à população da Áustria) para beneficiar os investidores externos.

Entre os críticos do neoliberalismo também vemos a Hermann Scheer, um destacado membro do parlamento da Alemanha, lúcido crítico da opressão do sistema financeiro internacional, da poluição e da destruição ambiental da natureza. Scheer chega a conclusão de que não pode haver mudança social sem a reorganização política dos prejudicados para lutar contra o capitalismo.

Em uma categoria especial localizamos John Perkins, o ex-assassino econômico (a former economic Hitman-EHM) que descreve (desde dentro das organizações governamentais) o caráter ilegal e criminal da política externa imperialista do governo dos EUA para os países subdesenvolvidos (ou emergentes) da America Latina (Brasil incluído), da Ásia e da África.

Embora todas as entrevistas e as imagens cinematográficas sejam partes importantes do documentário e devem ser vistas e escutadas durante a exibição do filme completo, gostaria de selecionar e destacar uma das entrevistas, a de John Perkins, pois ela me parece imprescindível para caracterizar e entender como funciona a relação entre as partes no documentário e a totalidade política representada pelo imperialismo dos EUA: a que proporciona o sentido essencial do processo de acumulação de capital e de dominação política a partir do neo liberalismo e da globalização.

Não tenho duvida que a entrevista de John Perkins é de vital importância dentro do filme porque mostra (sobretudo) a lógica que as corporações e o governo dos EUA utilizam para submeter os países do terceiro mundo (os emergentes ou subdesenvolvidos) ao processo de recolonização (neo-colonialismo) pelo capital imperialista globalizador.

Ao mencionar John Perkins, vejo-me na necessidade de informar quem é ele e que papel jogou na configuração do sistema imperialista:

Perkins fez carreira e foi sócio da MAIN, a agencia de consultoria internacional ligada à Agência de Segurança Nacional (National Security Agency – NSA), a maior instituição de inteligência do mundo. Ali, ele era encarregado de missões na Indonésia, no Panamá, no Equador e na Arábia Saudita onde ele elaborava estudos econômicos fraudulentos, para obrigar estes países a tomarem empréstimos que se revelaram impagáveis no futuro e, assim, se tornaram economicamente dependentes dos países imperialistas e suas corporações credoras.

Com a morte, em condições suspeitas, dos presidentes Jaime Roldos, do Equador, e Omar Torrillos, do Panamá, ele decidiu em 1981 deixar a agencia MAIN e denunciar em livro as atividades ilegais e criminais da empresa e do governo de EUA.

Em 2005, ele publicou seu famoso livro Confessions of an Economic Hit Man sobre o tema que foi traduzido para muitas e diferentes línguas incluindo a portuguesa (Confissões de um assassino econômico).

Para incentivar o leitor a assistir a este importante documentário darei em seguida uma livre tradução de uma parte da entrevista de Perkins para o filme Let’s make Money.

“Sou John Perkins, um cidadão americano, nascido e criado nos Estados Unidos. Sou um antigo e ex “assassino econômico” do meu pais, dos EUA.

O nosso modo de operação era muito semelhante ao assassinato da máfia. Por que? Porque estamos a procura de um favor que virá mais tarde. Os mafiosos e os “gangsteres” já fazem isto a muito tempo. Nos apenas o fazemos a uma imensa escala com governos, com países, e somos muito mais profissionais que os mafiosos.”

“Fazemos isto de muitas diferentes formas, mas talvez a mais comum seja a seguinte: o “assassino econômico” dos EUA identifica um país que tenha recursos que as nossas corporações desejam como o petróleo. Logo, conseguimos um enorme empréstimo para aquele pais a partir do Banco Mundial ou de uma das suas organizações.”

“Mas o dinheiro emprestado nunca vai realmente para o país, em vez disso, vai para as nossas corporações para construírem grandes projetos de infra estruturas naquele país. Projetos que só beneficiam uma minoria muito rica do país. E logicamente beneficiam as nossas próprias corporações. Mas o empréstimo não ajuda a maioria das pessoas que são pobres.

Aos pobres, é deixada uma poderosa divida que é tão grande que eles nunca vão poder reembolsar. Mas no processo de tentar reembolsar a dívida, os países ficam numa situação onde não podem ter bons programas de saúde ou programas de educação. Então, nós, os “assassinos econômicos” de EUA, voltamos lá e dizemos-lhes:

- Escutem, vocês nos devem muito dinheiro e não conseguem pagar as suas dívidas. Assim, vocês têm que dar-nos um pedaço da carne: vendam-nos o seu petróleo muito barato às nossas companhias petrolíferas; ou votem conosco na próxima situação critica nas Nações Unidas; ou enviem tropas para no apoiarem em alguma parte do mundo, tal como no Iraque.”

“E foi desta forma que conseguimos criar este Império porque, de fato, somos nós que escrevemos as leis; nós controlamos o Banco Mundial; nós controlamos o FMI (Fundo Monetário Internacional); e de uma certa maneira, nós também controlamos as Nações Unidas. Como? Somos nós que escrevemos as leis e portanto as coisas que o “assassino econômico dos EUA faz não são ilegais.”

Endividar enormemente os países e depois exigir uma troca de favores, isso não é ilegal; deveria de ser ilegal, mas não é.

Uma das principais características de um império é que impõe a sua moeda ao resto do mundo e foi isso que fizemos com o dólar. Um exemplo? Em 1971, os EUA tinham uma enorme dívida e grande parte da dívida era resultado da Guerra do Vietnam. Neste período, nós estávamos dentro do “padrão do ouro”.

Alguns dos países credores decidiram executar as suas dívidas e queriam receber o pagamento em ouro porque eles não confiavam no dólar. O presidente Nixon recusou-se a pagar em ouro, de fato, retirou-nos do padrão do ouro porque ele sabia que nós não conseguiríamos pagar em ouro, pois não tínhamos o valor (a quantia) para pagar nossas dívidas.

Pouco tempo depois, nós fomos para o “padrão do petróleo” e eu mesmo fiz parte daquele acordo que fizemos com a Arábia Saudita forçando que a OPEP (Organização dos Países exportadores de Petróleo) vendesse o petróleo apenas por dólar. Então, de repente o dólar move-se do “padrão do ouro” para o “padrão do petróleo”. De repente, o mundo só podia comprar petróleo com o dólar e assim o dólar virou a moeda mais importante do planeta.

Atualmente, os EUA mais uma vez, é um pais falido. Hoje temos enormes dívidas, maiores que qualquer país, alguma vez na historia do mundo. E se algum desses países pedir o reembolso dessa dívida, em outra moeda que não seja o dólar estaremos num gravíssimo problema.

No momento, ainda pedem o reembolso em dólares porque atualmente o petróleo é a mais importante mercadoria e os países só podem comprar o petróleo com dólares.

Por isso quando Saddam Hussein ameaçou vender petróleo com outras moedas que não fossem o dólar, nós decidimos ficar livre de Saddam Hussein.”

Vou parar a entrevista fílmica de Perkins no parágrafo anterior, porém não sem antes observar que o parágrafo apenas inicia uma explicação contundente da razão fundamental que levou os EUA a invadir o Iraque.

Na minha opinião, essa explicação também permite ao leitor deduzir consistentemente qual foi a principal razão para que os EUA, a França e a OTAN declarassem a guerra contra Omar Kadhafi sob a máscara da “ajuda humanitária” para o povo da Líbia.

Para os leitores que desejem ver e ouvir a entrevista colocarei o enlace (link) apropriado abaixo:


Voltando ao lado formal do filme, devo insistir que a entrevista de Perkins corresponde apenas a uma parte importante do documentário Let’s Make Money porém as outras partes também são imprescindíveis para o espectador porque contem (com as outras entrevistas) um conjunto de desconcertantes imagens que mostram a exploração, a pobreza, a miséria e a desgraça que foram causadas pelo expansão do neo liberalismo e da globalização.

Para todos aqueles que querem compreender a abominável situação em que atualmente nos encontramos (nosso planeta e suas populações) como resultado da lógica destrutiva da globalização capitalista não deverão perder este novo filme, o documentário “Let’s Make Money

05 outubro 2011

"...E o sangue semeou a terra", de Anthony Mann

O western, o cinema americano por excelência, na definição do crítico francês André Bazin, tem em Anthony Mann (1906-1967) um de seus expoentes (ao lado de Ford, o maior de todos, Raoul Walsh, Howard Hawks, Budd Boetticher, entre muitos outros), como comprova a visão de E o Sangue Semeou a Terra (Bend of the River, 1951), um dos muitos filmes do gênero que realizou com James Stewart (a parceria entre os dois ainda se dá em Winchester 73, 1950, O preço de um Homem/The Naked Spur, 1952, Região do Ódio/The Far Country, 1954), etc, westerns exemplares e que configuram o sentido de espetáculo do cineasta.

Em ...E o Sangue Semeou a Terra, trata-se da marcha de uma caravana de lavradores do Missouri até o Oregon, através de índios, caçadores de ouro, linchamentos e ladrões. No itinerário, Stewart, o herói de Mann, se depara com, e tem de enfrentar, vencendo-os, vários obstáculos, mas encontra a ajuda de um amigo (Arthur Kennedy) e de um jogador de San Francisco (interpretado pelo futuro galã das comédias sofisticadas e dos filmes de Douglas Sirk, Rock Hudson). Os westerns de Mann com James Stewart possuem uma homogeneidade no trato narrativo e na estruturação os personagens, conjugando, como se pode observar em ...E o Sangue Semeou a Terra, o homem e a paisagem.

O realizador fez renascer o gênero, que parecia esgotado nos anos 50 (e que se perderia definitivamente nas décadas seguintes). Mann dá vida ao western, oferecendo-lhe um alento épico dentro do cotidiano. Mas a concepção do herói para o cineasta contraria o lugar comum ao gênero, pois seus personagens têm muito pouco do herói clássico, sempre a emergir, deles, as fragilidades humanas. Os personagens de Mann são, simplesmente, homens consagrados a uma tarefa, a uma missão, que tentam levar ao fim, apesar das dificuldades e dos desalentos.

O western, no entanto, que define melhor o realizador é O Homem do Oeste (Man of the West, 1958), com a presença de Gary Cooper. Neste, o tema do aventureiro envelhecido, a amargar o passar do tempo, possui alentos trágicos se comparado com a trajetória dos outros personagens dos filmes feitos com Stewart, por exemplo, homens de pradaria e dos espaços abertos. Em O Homem do Oeste, há uma concentração mais interiorizada do personagem e Cooper vive uma, por assim dizer, crise existencial. Um western, portanto, com tintas psicológicas.

A partir de Cimarron, em 1960, com Glenn Ford, o legendário ator hollywoodiano que morreu em 2006 aos 90 anos, Anthony Mann, sem mais arranjar produção para continuar fazendo westerns (também já incursionou por outros gêneros, a exemplo de Música e Lágrimas, sobre a vida de Glenn Miller), foi contratado por Samuel Bronston, famoso produtor, na época, de superproduções colossais. Mas se saiu bem nas duas que fez, ambas épicas: El Cid, com Charlton Heston e Sophia Loren e A Queda do Império Romano.

02 outubro 2011

Era uma vez no Oeste: western sinfônico

Já publiquei, há tempos, este post aqui, no Setaro's Blog, mas o republico, porque, ontem, sábado, dei-me ao prazer de rever o filme. Não sei quantas vezes já o vi. Perdi a conta. Pode-se, inclusive, vê-lo de olhos fechados para ficar ouvindo, somente, a partitura de Ennio Morricone. E será possível, agora fazendo a conta, que Era uma vez no Oeste já tem 43 anos? Vi-o no lançamento em 1970, aqui em Salvador, onde me escondo dos credores, ainda que o filme seja de 1968. Acontece que, naquela época, os filmes demoravam um ou dois anos para serem lançados no Brasil. Primeiro eram colocados no eixo Rio-São Paulo e, muitas vezes, acontecia de somente virem à Bahia um ano depois. Mas assisti a C'era una volta in west na vastidão do 70mm no antigo cinema Tupy. Foi um impacto. Lembro-me que Glauber Rocha escreveu um longo artigo impressionado com o filme de Leone. Alguém disse, não sei se o próprio Glauber, que a indumentária dos pistoleiros foi influenciada pela de Antonio das Mortes em Deus e o diabo na terra do sol (filme, aliás, que está na frente na pesquisa que faço ao lado sobre filmes brasileiros), O DVD pode ser encontrado, se não estiver esgotado, a preço de banana prata nas Americanas.

 O DVD de Era uma vez no Oeste, de Sergio Leone, lançamento em edição especial, cheia de extras, que estava, há pouco tempo, no saldão de conhecida loja de departamentos, é, simplesmente, uma beleza. O filme, com o passar do tempo - é de 1968, ficou ainda melhor, não perdendo em nada do seu impacto inicial, quando o vi pela primeira vez na gigantesca tela do cinema Tupy em cópia de 70mm. Ainda que a dimensão da tela doméstica não possua o mesmo poder de envolvimento e êxtase - sim, é a palavra correta em se tratando de uma obra-prima como essa, momento, sem exagero, de rara inspiração em toda a história da arte do filme, vejo Era uma vez no Oeste como se fosse uma sinfonia, como se uma música de imagens.

A partitura do maestro Ennio Morricone está tão entrosada no filme que faz parte dele, e, neste caso, poderia dizer que Morricone é uma espécie assim de co-autor da obra da mesma maneira como Michel Legrand o é de Os guarda-chuvas do amor, de Jacques Demy. Morricone, com sua extraordinária musicalidade, exerce, aqui, em Era uma vez no Oeste, não apenas uma complementação da narrativa, mas uma mise-en-musique.

E Leone é um esteta, um mestre absoluto, que sintetiza, neste "western sui generis", toda a sua primeira fase constituída de obras que "rascunham" esta belíssima reflexão sobre a estética westerniana num prisma novo e insinuante, apátrida, singular e original. Quem viu Por uns dólares a mais, Por um punhado de dólares e O bom, o mau e o feio - também conhecido por Três homens em conflito - pode testemunhar que estes filmes são uma "anunciação" de Era uma vez no Oeste.

A sua revisão comprova a magnificência de Sergio Leone que, nos anos 80, com seu canto de cisne, Era uma vez na América, traumatizou toda uma década, realizando uma das maiores obras de toda a história do cinema. Pena que a morte prematura - ia fazer 60 anos - o tenha levado embora.

Morricone compôs quatro temas fundamentais destinados a cada um dos personagens principais: Claudia Cardinale, Jason Robards, Charles Bronson e Henry Fonda - magnífico no papel de vilão, cínico, cruel, frio, super-maquiado, super-estilizado, capaz de matar até criancinhas com irrepreensível sangue frio. Quando os personagens se cruzam, as partituras também entram em rodízio com um resultado impressionante em se tratando da relação música e imagem.

A seqüência inicial, de abertura, é uma obra-prima à parte, que mostra a espera, por três pistoleiros, em uma velha e encardida estação, da chegada do trem. Morricone chegou a compor um tema, mas desistiu e, influenciado por John Cage - para quem todo ruído num concerto é música, fez dos ruídos uma espécie de "sinfonia". Assim, o estalar dos dedos de um dos pistoleiros, a gota d'água que cai modorrenta no chapéu de Woody Strode, a mosca que fica zoando no rosto de Jack Élan, o ranger do moinho, a chegada estrepitosa do trem, etc, formam uma tensão inusitada.

Claudia Cardinale agita a paixão dos homens e, neste filme, encontra-se no auge da beleza. A mulher é aqui objeto do desejo de três homens rudes e sedentos: Henry Fonda, Jason Robards Jr, Charles Bronson. Com a perda do marido, um fazendeiro, em dia de festa, que é assassinato cruelmente pelo bando de Henry Fonda, resta a ela, sozinha, enfrentar uma vida nova, recomeçar de novo.

A tomada que apresenta a sua entrada na cidade e que mostra, em grua, a sair da estação, o movimento da cidade, é imensamente bela e impactante. Dá-se no momento em que Claudia sai do trem e entra na cidade, que, movimentada, encontra-se, somente na aparência, indiferente à sua beleza.

Leone tem um sentido de duração que difere da maioria dos cineastas, aproximando-se mais, na utilização do tempo cinematográfico, dos realizadores japoneses. Gosta de alternar extremos close ups com planos gerais de grande amplitude, provocando, com isso, um contraste nos códigos perceptivos. Mas, para Leone, o rosto humano não é uma face oculta, mas, e principalmente, também uma paisagem. Seus closes demoram na tela, enchendo-a, para perscrutar a alma humana, para adentrar na interioridade dos seres. Tudo é muito estilizado e rigoroso sem perder, contudo, o caráter de introspecção.

Não resta dúvida que o melhor filme dos anos 80 foi um Leone, e, aliás, o seu derradeiro, que lembra a segunda parte do monumental O poderoso chefão (The godfather, 1974), de Francis Ford Coppola. Mas o que assombra em Era uma vez na América, assim como em Era uma vez no Oeste, é a fascinante, envolvente, mise-en-scène leonina.

O argumento de C'era una volta in West/Once upon a time in West foi escrito a seis mãos: as de Bernardo Bertolucci, o consagrado cineasta de O último tango em Paris, as de Dario Argento, diretor cult de terroríficos e crítico afamado, e as de Sergio Donati, que ficou responsável pela decupagem, além, é claro, da participação de Leone em todas as fases do processo de criação cinematográfica.

O DVD é especial mesmo e tem muitos extras, inclusive um documentário precioso com depoimentos de Tonino Delli Colli, o fotógrafo, Alex Cox, Gabrielle Ferzetti, Bertolucci, Claudia Cardinale, Henry Fonda, entre outros.

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