Um dos filmes que me
despertaram, no decorrer dos anos 60, para a compreensão do cinema como uma
verdadeira expressão da arte, foi, sem dúvida, “A Noite” (1961), de
Michelangelo Antonioni. Visto pela primeira vez no Clube de Cinema da Bahia, “La Notte ”, com o domínio da
anti-narrativa, promovia o êxtase diante de um cinema que procurava mostrar as
difíceis relações entre as criaturas humanas, principalmente no se refere à
incomunicabilidade que se manifesta na rotina de um casal. “La Notte ” se constituiu, por
assim dizer, numa introdução à cultura superior cinematográfica, formado que
era, então, e apenas, pelo cinema de gênero oriundo de Hollywood. A partir de “La Notte ”, vim a conhecer não
somente os outros filmes de Antonioni, como as obras dos grandes autores no já
citado Clube de Cinema da Bahia (que, neste ano de 2010, cumpre os seus 60 anos
de fundação): Resnais, Godard, Truffaut, Kurosawa, Welles, Kenji Mizoguchi,
Eisenstein, Fellini, Buñuel, entre tantos. Foi a minha iniciação.
Falar de "A
Noite", de Michelangelo Antonioni, é falar de uma obra-prima, de um filme
emblemático da história do cinema. Responsável pela sublimação da linguagem no
ser fílmico, Antonioni praticou um corte longetudinal na evolução da narrativa
cinematográfica, com a desdramatização, ou seja, a recusa do espetáculo, a
desteatralização, que pode também ser vista em Roberto Rossellini
em seu fundamental "Viagem à Itália" ("Viaggio in Itália",
1953), que, a bem da verdade, precedeu o realizador de 'La Notte ". Segundo Marcel
Martin, a partir dos anos 50, assiste-se a um progressivo ultrapassar da
linguagem, àquilo que se poderia chamar de rejeição das regras tradicionais -
da gramática de ferro - para fazer da narrativa fílmica não mais um meio, um
veículo de sentimentos e idéias, mas um fim em si: a própria narrativa
tornando-se o objeto primeiro da criação. Assim, ficou mais difícil aplicar aos
filmes que se colocaram na vanguarda da pesquisa estilística - como a famosa trilogia
de Antonioni constituída de "A Aventura"/"L'Avventura",
1960, "A Noite", e "O Eclipse"/"L'eclisse", 1962
- os velhos esquemas da "explicação de textos" habitual, ou seja, a
distinção escolástica entre a forma e o conteúdo se tornou impossível e absurda.
Antonioni, pode-se dizer, instaurou a estética do filme.
Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), um escritor de sucesso, encontra-se prisioneiro em um universo fictício, incapaz de escrever algo sério, verdadeiro. Sua mulher, Lídia, (Jeanne Moreau) se sente excluída do mundo do marido. A morte de um amigo de ambos (interpretado pelo diretor alemão Bernhard Wicki) faz ainda mais patente o abismo aberto entre eles. Gherardini, o poderoso industrial, tenta comprar o escritor, apesar de seu elevado nível de vida e o orgulho que sente por seu poderio capitalista. Sua filha Valentina (Mônica Vitti), afogada no vazio de seu próprio ambiente burguês, sente uma urgente necessidade de se libertar. Cada um desses personagens de Michelangelo Antonioni permanece preso num beco sem saída. Está exposta a equação existencial tão ao gosto do cineasta de "A Aventura".
Antonioni, que rodou o filme em Milão, fixou sua atenção sobre os meios industriais e intelectuais da populosa cidade italiana. A mesma Milão que serviu de cenário a outra obra-prima do cinema italiano: "Rocco e seus Irmãos"("Rocco i suoi Fratelli", 1960), de Luchino Visconti, tragédia exemplar que estabelece a cinematografia italiana como a mais poderosa do momento cinematográfico nos sessenta, agrupando verdadeiros gênios como Antonioni, Visconti, Fellini, entre tantos outros como Valério Zurlini. Assim, a fixação da inação em Milão não é aleatória, mas tem um objetivo e um propósito. Antonioni quando elege a profissão de seus personagens sabe perfeitamente o que está a fazer: "Exijo sobretudo intelectuais, porque são os que têm a consciência mais exata da realidade, além de uma sensibilidade, uma intuição, mais sutil, através da qual posso filtrar a realidade que desejo expressar." A expressão dessa realidade nos seus filmes se faz pelo exterior ou pelo interior.
Antonioni em "A Noite" aprofunda a linha estabelecida em "A Aventura". O esquema dramático maneja uma série de abstrações até então inéditas no cinema de Antonioni. Que, pela primeira vez, reúne Jeanne Moreau e Mônica Vitti, as duas atrizes que melhor souberam expressar as facetas da mulher moderna - a mulher contemporânea dos anos 60, quando a libertação se fazia urgente e o cinema um ‘conduto’ que muito bem expressava o profundo estado de crise da sociedade burguesa. Um estilo que se caracteriza pelas tomadas longas, estabelecendo, com isso, uma espécie de anti-narrativa cuja exasperação chegou em "O Eclipse".
Em"A Noite", o industrial Gherardi e sua esposa são realmente figuras da alta burguesia milanesa, assim como em sua maioria os convivas são sócios do Barlassina Golf Club (perto do lago Como), transformado em residência daqueles. Antonioni não incide no jogo duplo em relação a esses atores voluntários. Sua serenidade de artista permite-lhe colocar, ao lado da análise implacável nos diálogos e nos planos, o orgulho do capitalismo que escreve ou roteiriza segmentos da História com personagens verdadeiros, casas verdadeiras, cidades verdadeiras.
Walter da Silveira, ensaísta baiano, após a primeira visão de "
A iluminação dessa obra-prima é de um artista: Gianni Di Venanzo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário