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10 novembro 2013

"La dolce vita", de Federico Fellini

Completa, no ano em curso, 53 anos, desde a sua realização, La dolce vita (1960), de Federico Fellini, filme que causou imenso impacto na época de seu lançamento. Esta obra de Fellini assinala uma ruptura na sua filmografia, além de se constituir, também, um impacto na linguagem cinematográfica daquela época, ainda permeável a inovações e invenções.

Discurso sobre o processo decadentista da civilização ocidental em meados do século XX – e é impressionante a visão premonitória do autor, La Dolce Vita -  aborda, com grande criatividade, alguns problemas existenciais do homem moderno, assumindo proporções de um vasto documentário de um tempo contraditório e conflituoso.

Fellini celebra e critica o hedonismo moderno nas andanças do jornalista Marcello (Marcello Mastroianni) por uma Roma devassa onde circulam, principalmente na famosa Via Veneto, intelectuais, celebridades, astros e estrelas do cinema. La Dolce Vita pode ser considerado o filme-síntese da primeira fase do cineasta, que abandona a decupagem clássica em função de um ritmo no qual as sequências se sucedem sem a tradicional progressão dramática. Cada sequência do filme tem, por assim dizer, uma propulsão restrita a ela mesma sem a necessidade dos liames narrativos à Griffith.

O impacto de A Doce Vida foi enorme em sua época e a sua visão, hoje, ainda consegue atingir o deslumbramento de cinquenta e tantos anos atrás – assim como ocorreu com Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti. Há momentos antológicos, se o filme não fosse, ele mesmo, uma antologia: na abertura, o Cristo de gesso que passa de helicóptero sobre a Cidade Eterna serve como prenúncio da obra-prima que virá a seguir.

Outro momento fulgurante é o aparecimento de uma estrela de cinema (Anita Ekberg) e sua visita, fantasiada de padre, à Catedral de São Pedro ou quando ela e Marcello se beijam na Fontana Di Treve (revivido com singular poesia em Nós que nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola, 1974). Ou a desmistificação do marketing organizado em torno de um "milagre" religioso.

Fellini, com seu especial sentido de cinema, adentra no dolce far niente dos parasitas sociais que vivem à custa dos outros. A soirée na casa do filósofo Steiner (Alain Cuny) e seu apavorante suicídio são dois pontos dramáticos que causaram polêmicas quando do lançamento de La Dolce Vita há cinco décadas. De personalidade enigmática, mas sinalizadora de uma esperança para a humanidade em crise, Steiner, com sua morte imposta, com a destruição de seu ser – e pelo fato de, talvez, ser o único personagem positivo e consciente do filme, configurava uma esperança que se viu despedaçada no momento em que o cineasta "mata" a personagem.

Assim como, na derradeira seqüência de La Dolce Vita, aparece, enquadrado em toda a extensão da tela como um quadro de Hyeronimus Bosh, um peixe enorme que crava seu olho único sobre os "sobreviventes" da longa noite de loucuras, da notte brava.

La Dolce Vita, o sétimo de Fellini, engloba todos os anteriores – é, mais ainda, a soma de todos. Na sua filmografia se podem distinguir três fases: a primeira dos boas-vidas, das cabírias, da estrada e dos trapaceiros, onde o cineasta ainda se atém a um discurso moldado aos cânones da narrativa mais acadêmica, ainda que, se bem observados, estes filmes da primeira fase já rompem com o academicismo; e La Dolce Vita, em 1960, inaugura a segunda fase e registra um desprendimento visível com a etapa anterior.

Existe um Fellini antes de La Dolce Vita e um Fellini depois de La Dolce Vita. O corte longitudinal viria, no entanto, em 8 ½ (1964), onde a narrativa, de estrutura complexa, de inserção, mistura tempo e espaço; a terceira fase pode ser considerada aquela que se inaugura com Roma (1971), quando o cineasta, a partir daí, começa a estilizar seus temas anteriores até chegar ao preciosismo de Amarcord (1974) – e neste há uma das sequências mais bonitas de toda a história do cinema: a chegada triunfante do transatlântico Rex.

Se atualmente a exibição de La Dolce Vita não é capaz de despertar mais arruídos nem a ira dos moralistas e conservadores, na época, porém, este extraordinário filme chegou, inclusive, a ser condenado pela Igreja. Walter da Silveira (o grande ensaísta baiano hoje esquecido) publicou um longo ensaio no Diário de Notícias (depois reunido no livro "Fronteiras do Cinema"), no qual esclarece as intenções do artista sufocado, naquele tempo, pelas diatribes conservadoras: "Nada traduziu melhor o caráter ecumênico de La Dolce Vita do que a repulsa ostensiva ou disfarçada da maior parte do público, em todo mundo.”

E disse mais: “Dizem que a audácia de Fellini consistiu unicamente em documentar as faces negativas do ser humano e do social, sendo a sua moral uma ética da impiedade, sem um clarão breve e tênue a iluminar as sombras densas. Mas, além de inverdade, por que recusar ao artista o direito ao realismo crítico do que vê de hediondo diante dele, sem poder enxergar, nas trevas, qualquer efêmera e insignificante luz? Fellini não mostrou que toda a humanidade está perdida: viu e expôs uma fração humana que já não ouve os frescos chamados da inocência, porque sobre as praias da vida o único rumor vem do mar de todas as angústias e a única imagem insistente deriva de um podre peixe simbólico, de olhos abertos três dias depois de morto.”

Completa o ensaísta: “E tanto Fellini não quis exprimir a perda de toda a humanidade, porém somente de uma parcela, que, do ponto de vista do estilo, da linguagem, La Dolce Vita não constitui uma unidade narrativa, mas várias que se interrompem e alternam, com o nexo ontológico permitido pela presença contínua de Marcello, o jornalista que vê o mal e de tanto vê-lo acaba por participar de sua crueldade e de seu egoísmo".

La Dolce Vita já se tornou há muito tempo um clássico da sétima arte. Realizado em plena efervescência da renovação da linguagem cinematográfica, em fins dos esfuziantes anos 50, quando explodia por todas as partes uma neo-avant-garde – Nouvelle Vague, Cinema Novo, Free Cinema, underground novaiorquino, Resnais, Antonioni, Godard..., o filme de Fellini, além de documento de uma época, possui uma beleza extraordinária. E entrou direto para o folclore internacional de nossa época; o próprio título foi imediatamente incorporado ao jargão jornalístico universal; os paparazzi da Via Veneto revelaram-se parentes próximos de certa fauna de fotógrafos furões do mundo inteiro.

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