Ainda que não seja um crítico de cinema profissional, Afonso Costa Queiroz Filho é um autêntico cinéfilo numa época em que a cinefilia já está morta e enterrada. A bem da verdade, pertenço também à sua geração, à última geração de cinéfilos. O cinema, hoje, ainda que existam bons realizadores, não tem mais a magia e a importância do pretérito, engolido que foi pela sociedade de consumo, transformando-se, portanto, num parque de diversões ou, para ser mais eufemístico, numa desabonadora extensão dos fast foods dos shoppings. O texto que vai a seguir, e abrindo logo as necessárias aspas, é de Afonso, que faz, aqui, uma exegese expressiva de Meia-Noite em Paris, de Woody Allen.
"Ingênuo, lírico,
Woody Allen provoca em nós a satisfação das nossas reminiscências, em toda a
extensão de sua beleza evocativa, embora carregadas de típica ironia, fruto de
um cultivado ceticismo. Porém, sem receio da contradição (neste embate é que
reside o vigor de sua criação) consegue subverter a racionalidade e compor um
quadro de esperança na brincadeira com as nossas fantasias e recordações,
permitindo-nos enxergar a capacidade do ser humano de se recriar através
referências essencialmente existenciais, num período da cultura ocidental
estabelecido no filme, em que se buscou, radicalmente, novas formas de
expressão que conferissem maior autenticidade e sentido às idéias e sentimentos
humanos.
Como aqueles que cultivam a visão lírica do mundo, filha
dileta do romantismo, Woody Allen concebeu esta obra representando a tentativa
do homem, através do fazer artístico, transcender suas limitações, buscando,
sempre, novas possibilidades. Todos os criadores, exponenciais da arte que se
fizeram presentes no filme, não fizeram por menos: suas próprias vidas
transcorreram como testemunho desse esforço, não hesitando, até, em
sacrificá-las. Mas, por outro lado, como em todo ato de entrega há um fator
regressivo, exigência de absoluto devotamento durante o qual o indivíduo
abdica, até, de si mesmo, é na memória ancestral que se vai buscar o referencial
necessário para configurar suas idéias. No filme, seu personagem - não à toa
vivido por um comediante, tal como Allen, disposto a transgredir, na pele do
próprio autor - representa um escritor de roteiros de filmes para TV. É,
portanto, alguém entregue à própria imaginação e fantasia. Assim, o
protagonista tenta encontrar/resgatar em Paris o sentido maior para a sua
criação/vida, um romance que está a escrever; mas, acompanhado da noiva, mulher
fútil, filha perfeita da tão cara mentalidade utilitarista americana, vê-se
tolhido em suas expectativas, situação ainda mais agravada pelo encontro com um
pedante professor universitário, amigo de sua futura esposa, que não cansa de
exibir seus conhecimentos cultivados, apenas, como um repertório profissional de
informações, não legitimado por qualquer paixão ou verdade pessoal tão cara ao
nosso inquieto personagem.
No roteiro cultural a que se propõem a fazer na Cidade,
vê-se, claramente, que a companhia, apesar de envaidecer sua noiva, nada diz a
ele. Fugindo, então, às contingências das convenções sociais que o
constrangiam, passeia, à noite, pelas ruas de Paris, percebendo-se, de repente,
no centro de um milagre que o transporta para um outro tempo, cujas lembranças
nos são caras (a idéia do carro antigo, lembrando uma carruagem de alguma
princesa de contos de fada, é de uma doçura especial!): década de vinte do
século passado onde o vanguardismo corria livre de quaisquer amarras e as
experiências com novas linguagens dominavam o cenário cultural. Surge, então, o
elemento fundamental para sua narrativa, o reencontro, (re)encarnados (todos,
na realidade, já mortos), após à meia-noite, qual Cinderela às avessas, de
todos os autores que povoam a sua memória e já deslumbraram, também, a todos
nós, por todas as possibilidades que uma vez descortinaram para a condição
humana.
A partir daí, Woody Allen nos conduz, magistralmente, senhor
absoluto da situação, pois tem a perfeita consciência de ter nos seduzido para
brincar com nossas lembranças e, porque não dizer, com nosso passadismo, por um
percurso inimaginável, se real, mas, ao mesmo tempo, decisivo na sua fabulação
para que pudéssemos reconhecer o estofo de que somos formados nessa
pós-modernidade: chegamos a vivenciar o encontro com todos (quase) que
participaram dessa revolução!
E somos levados de surpresa em surpresa. O nosso candidato a
escritor de romances chega a entregar à Gertrude Stein o seu manuscrito para
que ela o avaliasse, como grande mãe e super-ego de todos que foi. Picasso
mostra o seu narcisismo, Hemingway fala da coragem fundamental para encarar o mundo, Dali demonstra seu
fascínio pelas formas, pelo som e pelo bizarro,
enquanto Buñuel já mostra um olhar estático, como envolvido por uma
visão interior única e soberba. Os recursos narrativos usados por Woody Allen
mexem com o encantamento das fabulações do “era uma vez” que fez as delícias de
nossa infância, mostrando, ousadamente, as mais brilhantes cabeças em
indivíduos capazes da sagrada ingenuidade de acreditarem em seus próprios
delírios, frutos de uma irracionalidade sem limites, cultivada
incondicionalmente. E, brincante, se
apropria do encantamento da fábula, com nossa inteira permissão, cúmplices
deslumbrados desta paródia, assumindo o jogo proposto e a possibilidade de
mergulhar neste universo onírico. E esse não é o verdadeiro papel do cinema e,
mais amplamente, da Arte?
Mas, para conferir
plausibilidade à sua história, posto que seu objetivo é outro, Woody Allen dá
um limite à fantasia em não continuar, indefinidamente, a buscar em tempos mais
remotos a fonte de sua ansiada sabedoria, recusando-se a prosseguir em seu
retorno ao passado, necessitando viver a dimensão do “aqui e agora” quando sua
noiva o chama para a realidade. As suas incursões noturnas estão despertando a
ira e as suspeitas de sua família, cujo pai chega a colocar um detetive
particular no encalço do “fujão” para investigar suas verdadeiras motivações.
A esta altura, revela-se ou, melhor, desvela-se o coração do
personagem. Ao descobrir que a noiva, de fato, o despreza, pretendendo,
exclusivamente, consorciar-se com alguém de “sucesso”, como soe acontecer à
todas feitas à sua imagem e semelhança, pouco se importando com quaisquer
subjetividades românticas, parte para a aventura de construir, com todo direito
que sua imaginação lhe confere (a esta
altura com o aval e a licença poética de pessoas já finadas em “em carne e
osso” - o que seríamos nós sem a imaginação!), sua realidade pessoal em
sintonia com o espaço-tempo de sua existência. Desiste do casamento e volta,
mais uma vez, a perambular pelas ruas de Paris, disponível para o que ocorrer,
entregue na pureza de seus impulsos e de seus ideais, exatamente como nas
Fábulas. E a história se encerra, numa singeleza espetacular, quando ele se
depara, debaixo de chuva, com um rosto familiar, porém, de uma expressão meiga
e inocente da vendedora de um bistrô de antiguidades – memória, de novo - que
lhe sorri, fazendo-o (re)lembrar da gratuidade da graça, da beleza e da
bondade, principalmente para eles que desconhecem seus papeis sociais (não
teria o propósito de contradizer o Mestre Fellini na cena final de Oito e Meio,
do qual o Woody Allen é admirador?). Mas do que tudo, a ternura de um encontro
é um consolo para as almas maltratadas pelas atribulações da vida, sugerindo-nos
que o eterno está no amor,
transcendendo as épocas, aos fatos e à própria arte,
sendo esta, exclusivamente, o meio para arrancar de nosso íntimo a crença de
que somos capazes de passos mais largos, acreditando na extensão de nossos
sentimentos: olhar compreensivelmente e, brincar, divertido, com nossas
angustias e inquietações, feitas tão sérias para um ser tão frágil e efêmero,
é uma necessidade de todos nós... Não
seria um Final Feliz que guardou para nós como no “Era Uma Vez”?..."
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