Comecei
a escrever comentários sobre cinema de maneira mais sistemática em agosto de
1974, quando fui contratado pelo jornal Tribuna da Bahia para uma coluna diária
sobre os lançamentos dos filmes em exibição na cidade. Tinha, nesta ocasião, 24
anos, mas, antes, já escrevia acerca das coisas da sétima arte bissextamente no
suplemento cultural, de papel azul, do Jornal da Bahia, e uma experiência no
Jornal da Cidade, uma publicação que saía aos domingos e que dedicava uma
página inteira ao cinema. De tipo tablóide, o Jornal da Cidade, que não teve
vida longa, significou, na verdade, a minha estréia como comentarista.
Na
Tribuna da Bahia, entre 1974 e 1994, vinte anos, portanto, tive uma coluna
diária, de sol a sol, inclusive quando, nos anos 80, foi implantada uma edição
aos domingos. A partir de meados dos anos 90, por injunções jornalísticas
internas e, também, pela indisposição com o cinema contemporâneo, que já dava
sinais de esgotamento, passei a escrever apenas uma vez por semana.
Assim,
a tomar como ponto de partida o ano de 1974, tenho 34 anos como colunista de
cinema na Tribuna da Bahia. Mas, durante estas décadas, publiquei textos em
revistas e outras jornais. De vez em quando, no suplemento cultural de A Tarde,
na extinta Revista da Bahia, e, entre outros trabalhos, elaborei alguns
verbetes para a Enciclopédia
do Cinema Brasileiro (organizada
por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda para a editora do Senac), entre outras
publicações e participações em eventos e seminários vinculados ao estudo da arte
do filme. Em 1979, ingressei, como professor da área de cinema, na Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal da Bahia, que ainda se chamava Escola de
Biblioteconomia e Comunicação, a reunir, num único prédio, os dois
departamentos.
O
cinema, disse uma vez Orson Welles, morreu em 1962, e seu último filme foi O
homem que matou o facínora (The man who shoot Liberty Valance),
de John Ford. O realizador de Cidadão
Kane falou isso a Peter Bogdanovich,
que o entrevistava para um livro. Espantado com a resposta, Welles disse que o
apogeu do cinema vai de 1912 até 1962, cinqüenta anos. E acrescentou: um apogeu
maior que a Renascença, que teve apenas trinta e oito anos. O cinema, portanto,
para Welles, a partir de 1962, entra numa fase de perigeu. O que concordo
plenamente.
Acontece
que se o cinema teve a sua primeira projeção oficial em 28 de dezembro de 1895,
no Grand Café do Boulevard des Capucines,
em Paris, e os seus inventores proclamados foram os Irmãos Lumière, ainda que
muitos pesquisadores em outros países estivessem prestes a conseguir a projeção
de filmes, o fato é que a linguagem cinematográfica ainda não havia sido
descoberta. Havia o cinema sido inventado, e a possibilidade de se projetar,
numa superfície plana, imagens em movimento. Mas tudo era registrado com a câmera
parada, plano fixo, não se sabia que ela poderia se movimentar. A descoberta
dos elementos determinantes da linguagem cinematográfica foi sendo feita aos
poucos. Assim, o americano David Wark Griffith, em 1914/1915, considerado o pai
da narrativa cinematográfica, é o realizador que soube reunir e sistematizar,
com eficiência dramática, os elementos da linguagem que foram sendo inventados
entre 1895 e 1915, vinte anos, portanto, para a construção de uma linguagem.
Se
Griffith, com O
nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914),
e Intolerância (Intolerance, 1916),
contribui com um impulso importante para o desenvolvimento da narrativa, a
linguagem, no entanto, ainda tinha muito o que conquistar. Pode-se dizer que a
linguagem cinematográfica foi sendo enriquecida e construída durante a primeira
metade do século passado e que adquiriu, por assim dizer, uma cristalização em
meados dos anos 60 ou, como quer Orson Welles, em 1962.
A
era dos grandes inventores de fórmulas, dos grandes inventores do cinema, já
acabou. Atualmente o cineasta se utiliza de uma linguagem já configurada e
resta, a ele, articular os seus elementos com remota possibilidade de
inventá-la. Ou reinventá-la como fez Jean-Luc Godard, na prodigiosa década de
60, em Acossado (A bout de soufflle),
Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), O demonio das onzes horas
(Pierrot, le fou), entre outros, ou Alain
Resnais em Hiroshima, mon amour e
O ano passado em
Marienbad. Alguns ensaístas da arte do filme chegam a dizer que este
último é, a rigor, o derradeiro filme de invenção da história do cinema.
O
cinema perdeu o seu status político.
Com a crise dos anos 70, a
perda de público para as outras opções de lazer, e a descoberta do filão
infanto-juvenil por Hollywood, o cinema se infantilizou tematicamente. Os
filmes atuais oriundos da indústria cultural são obras quase matemáticas na
construção de seus sentidos e de seus efeitos. Os personagens, destituídos, de alma,
são como títeres ou marionetes movidos pelo ritmo da ação.
Se,
antigamente, ia ao cinema todos os dias, hoje sou muito seletivo. Vou de vez em
quando para ver obras de algum realizador que venha a me interessar. Mas nunca
com a constância do passado. A crise, patente, se reflete, creio, em todas as
artes.
Se
encontrasse, jovem, quando iniciei a minha carreira de comentarista, o cinema
que se vê atualmente, não teria sido um escrevinhador das coisas da sétima
arte. O cinema contemporâneo é medíocre demais para atrair pessoas e as tornar
fiéis, criar a habitualidade, a cinefilia. Até o jornalismo cultural, que tinha
alguma substância, vive atualmente muito restrito (quando existe) sem a
disponibilidade para acolher textos copiosos. Tudo é feito através de colunas
curtas, que sejam rapidamente absorvidas. Há quem disse que a nova geração não
lê, mas escaneia com
os olhos.
A
decadência dos grandes suplementos culturais, e a emergência do império do
audiovisual, determinaram a falência da crítica de cinema impressa. Com as
exceções de alguns (raros e poucos) críticos (e que podem assim ser chamados)
do sul do país, a crítica cinematográfica praticamente desapareceu dos jornais
diários. Mas, por outro lado, ela está a se frutificar na internet, com a
explosão dos blogs, dos sites, que acolhem verdadeiras revistas eletrônicas de
cinema.
Mas
o que se pode observar, sempre se tendo em vista as exceções de praxe, é que o
chamado crítico de cinema que atua no espaço virtual se caracteriza por um
fervor excessivo pelo cinema, uma espécie assim de cedeefismo pelo
objeto. Se, por um lado, demonstra conhecimento do assunto que aborda, por
outro lhe falta uma cultura humanística, uma visão crítica do mundo, um background. O
sujeito deixou de ser importante nas últimas décadas para dar lugar ao estudo
das estruturas.
Existem,
grosso modo, quatro tipos de críticos de cinema: o ensaísta, que se caracteriza
pela erudição e desenvolve sua análise do filme com os recursos de sua memória,
a realizar um discurso sobre um objeto determinado, mas livre para o exercício
de seu pensamento sem a camisa-de-força da metodologia acadêmica; o ensaísta
deve ter sempre uma visão de mundo e uma visão de cinema; já o crítico
propriamente dito possui uma maneira própria de fazer a sua exegese, a
apresentar, sempre, um conhecimento da arte do filme em sua linguagem e em sua
estética; o comentarista é aquele que discorre sobre a obra cinematográfica
segundo as suas impressões; o resenhista, por sua vez, é apenas um orientador
como guia de consumo.
Sobre
poderem contribuir para o enriquecimento do pensamento cinematográfico, as
dissertações e teses acadêmicas estão presas à já citada camisa-de-força
metodológica. Se o analista tem bagagem, o estudo tem valor, mas, caso
contrário, amarga ao leitor o desprazer do acompanhamento de suas linhas. As
dissertações e teses, contudo, não se configuram como críticas de filmes, e se
apresentam mais como estudos analíticos de determinados aspectos do filme ou
deste em relação a alguma abordagem sociológica, semiótica, antropológica,
histórica, etc.
Ensaístas
de cinema foram Paulo Emílio Salles Gomes, Walter da Silveira, Francisco Luiz
de Almeida Salles, Davi Arriguci Jr (embora este último seja mais ligado à
literatura), entre muitos outros. Críticos, e com C maiúsculo, Antonio Moniz
Vianna, Rubem Biáfora, José Lino Grunewald, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Ely
Azeredo, entre tantos!
Na
minha trajetória de colunista sempre me considerei um comentarista, ainda que,
vez por outra, tenha assumido a crítica. Fazer uma coluna diária de jornal é
uma tarefa que não dá margem a um pensamento mais cristalizado e maduro acerca
do que se viu, pois há a pressa de se ver o filme e bater o texto para a
entrega imediata. O fator psicológico também influi e já aconteceu de ter
incorrido em erro de apreciação por não estar bem quando da visão de um filme
(uma dor de cabeça, uma gripe, uma indisposição qualquer, uma consumição,
etc) e, pelos ossos do ofício, ter de elaborar um comentário para a
coluna do dia seguinte.
Um comentário:
André Setaro,
Ler o que escreve é revigorante para a alma e refrescante para os olhos!
Abraço,
Márcia Nunes.
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