Do Professor Jorge Vital Moreira (Professor Universitário -Ph.d- em Wisconsin) especialmente para o Setaro's Blog:
Tenho um amigo
mexicano, que é artista plástico mas decidiu estudar Psicanálise. Recentemente
me escreveu umas linhas para dialogar sobre o pintor espanhol surrealista
Salvador Dali e a Psicanálise. Vou dar a este caro amigo um nome fictício, vou
chamar-lhe de Orozco, para preservar-lhe a privacidade.
Quando estudei no
México, Orozco era um jovem pintor que vivia impressionado com o comportamento
e as pinturas de Salvador Dalí. Orozco também admirava os filmes do cineasta
surrealista espanhol, Luis Buñuel, que vivia exilado no México, onde faleceu em
29 de julho de 1983.
Uma semana depois
da morte de Buñuel, a Universidad
Nacional Autónoma de México (UNAM),
onde eu estudava, decidiu homenagear, nesse momento, o cineasta,
realizando uma amostra dos seus filmes. No final de cada exibição, um destacado
crítico de cinema, fazia uma conferência aula sobre o filme da noite. Meu amigo
e eu decidimos ver todos os filmes e assistir às aulas sobre os filmes da
mostra. Durante este período, assistimos, pela primeira vez, os filmes Un
Perro Andaluz e La Edad de Oro, os dois primeiros que Luis Buñuel
realizou. Neles contou com a ajuda do amigo Salvador Dalí.
Enquanto isso,
Orozco e eu decidimos ler e discutir qualquer material que conseguíssemos sobre
Buñuel, Dalí e a amizade entre os dois . Naquele tempo remoto, também desejávamos
saber o que fosse possível sobre o movimento artístico espanhol de vanguarda e líamos
os livros do poeta e dramaturgo, Federico García Lorca (grande amigo dos dois
artistas) que foi assassinado pelas forças militares de Francisco Franco que
tornou-se o ditador da Espanha. Como era de se esperar, estávamos deslumbrados
por conhecer as pinturas de Dalí, os filmes de Luís Buñuel, a poesia de Garcia Lorca e a arte de Pablo Picasso. Durante esse período, íamos ao Museu de
Antropologia para ver, ao lado dos quadros de Diego Rivera e Frida Kahlo, os
quadros de Dalí e a exposição dos trabalhos da coleção particular de Pablo
Picasso, intitulada “Os Picassos de Picasso”.
Dos filmes de Buñuel, o que mais nos impressionou, foi o que se
intitulava El (O Alucinado).
El é o
filme de Luis Buñuel que, de acordo ao conferencista da noite, melhor refletia o domínio do diretor de todos
os registros do melodrama. O roteiro, baseado no romance com o mesmo título da
escritora espanhola exilada, Mercedes Pinto, se enfocava na história de
Francisco Galván (Arturo de Córdoba) um jovem solteiro, devoto do catolicismo,
de alto nível social e ainda virgem. Na Semana Santa, durante a cerimônia do
lava-pés na igreja, o olhar de Francisco passeia pelos devotos até parar
subitamente nos pés de Glória (Delia Garcés). A partir desse momento ele começa
a se apaixonar por ela, procurando conquistá-la por todos os meios, mesmo que ela já seja namorada de seu amigo,
o engenheiro, Raul (Luis Beristáin). A paixão de Francisco que parece nascer
dos ciúmes, não para de crescer e a crescente loucura paranoica de Francisco
condicionará todo o seu comportamento subsequente.
Buñuel disse sobre o filme El: "quizá
es la película dónde más he puesto yo, hay algo de mí en el protagonista",
e expressou que era seu filme favorito. No México, se comentava que Buñuel era um homem muito ciumento. A mesma
coisa disse a sua esposa, Jeanne Rucar, na sua biografia
Memorias de una mujer sin piano.
O filme El continua sendo uma das primeiras
obras primas da filmografia de Buñuel. O filme, pouco conhecido no Brasil, é muito
conhecido e falado na França, na Argentina e outros países. O filme ficou ainda
mais conhecido devido a que o famoso e celebrado Jacques Lacan, o psicanalista
francês, amigo de Buñuel, exibia o filme para seus alunos como um exemplo claro
de paranoia.
Neste filme, Buñuel
mostra as gritantes alienações criadas nos indivíduos pela cultura ocidental e
cristã dominante, tais como a religião, o patriarcalismo, o autoritarismo, o
machismo, o feitichismo e o culto à propriedade privada. Cenas das igrejas, dos
campanários, dos confessionários, dos ritos católicos são constantes e
funcionais em todo o desenvolvimento do filme e a crença fascista na
superioridade de Deus se destaca quando Francisco compara os seres humanos com
os vermes e diz: "Eu gostaria de ser Deus para esmagá-los".
Francisco, o personagem de Buñuel, me lembrava o personagem Porfírio Diaz do
filme Terra em Transe de Glauber
Rocha, um grande admirador da obra cinematográfica de Luis Buñuel.
Uma das mais brilhantes sequências de cenas do
filme começa quando Francisco entra no quarto de Gloria com uma corda, uma
agulha, linha e uma lâmina de barbear, com o objetivo de costurar a vagina de
Gloria para verificar se ela lhe é fiel. O filme, como era se esperar, mostra
no delírio de Francisco as marcas do
surrealismo e do inconsciente freudiano que Buñuel expressava com maestria.
Foi nesse clima
que o amigo Orozco e eu decidimos ler as autobiografias de Luis Buñuel e de
Salvador Dalí. Assim, por falta de tempo, dividimos o trabalho entre os dois:
meu amigo, Orozco, leria a autobiografia de Dalí e eu leria a autobiografia de
Luis Buñuel. No final da leitura, eu resumiria a autobiografia de Buñuel para
Orozco, e ele resumiria a autobiografia de Dalí para mim.
Lembro-me que
Orozco gostou da história de Buñuel que lhe resumi. Mas ficou particularmente
impressionado quando sintetizei o relato de Buñuel sobre os acontecimentos
ligados à seca e a procissão para o santo padroeiro da
sua cidade. O principal objetivo da procissão era pedir ao santo para que fizesse
chover sobre as plantações das famílias que foram arrasadas pela falta de água.
Assim, o pai de Buñuel e os vizinhos passaram uma semana caminhando todos os
dias, sob um sol escaldante, pelas ruas da cidade, com o pesado andor sobre os
ombros, rezando e pedindo ao santo padroeiro por dias de chuva, mas a chuva não
chegava.
Depois de uma
semana sem chuva, o pai e os vizinhos,
contrariados, saíram de casa e
caminharam novamente com o santo nos ombros. Quando estavam atravessando a
ponte de um pequeno riacho (um riachinho), eles começaram a cantar em voz alta "Uno, dos, tres y el tiempo se
acabó" ("Um, dois, três, o tempo se acabou"). Em seguida,
jogaram o santo e andor nas águas do
riacho, dando um fim ao sofrimento daquela peregrinação irracional.
Logo depois, meu
amigo Orozco, narrou-me um fato da
história de vida da Dalí que me congelou a voz na garganta. Esta é a narrativa:
o pai de Dalí: se opôs ao romance do jovem artista com Gala e condenou a sua
relação com os artistas surrealistas daquele momento, considerando-os (como
grande parte do público), como personagens que tendiam à degeneração moral. A
tensão entre Dalí e o pai foi escalando, culminando no enfrentamento pessoal.
Depois da publicação, na imprensa, da inscrição que Dalí colocou no desenho
“Sagrado Coração de Jesus”, que estava sendo exibido em Paris, o pai já não
suportou. O desenho exibido, incluía uma
inscrição que dizia:
"Às vezes,
eu cuspo no retrato da minha mãe para me divertir."
Indignado, o pai
exigiu-lhe uma retratação pública. Dalí recusou e foi violentamente jogado para
fora de casa em dezembro de 1929. Na sequencia seu pai o deserdou e proibiu-o
de voltar à Caiaques, na Espanha.
Posteriormente,
Dalí contou como, durante esse episódio, deu para o pai um preservativo (uma
camisa de Venus) contendo o próprio esperma com as seguintes palavras:
"Tome! Agora não te devo nada."
Recentemente,
como já mencionei, Orozco escreveu-me lembrando-me daqueles dias no México e
fez algumas perguntas. Que opinião tem os estadunidenses de Dalí? Jorge, se você fosse o psicanalista de Dalí,
que hipótese teria para analisar o comportamento dele, a sua relação com a
esposa Gala e com Luis Buñuel? Que diagnóstico você faria para começar um processo de tratamento psicanalítico do Dalí?
Ainda que não
seja psicanalista, as interessantes perguntas do meu amigo, motivou-me a
refletir sobre algumas das questões que conectavam o comportamento de Dalí com
a psicanálise.
Como muitos sabem,
Salvador Dalí foi sempre um personagem escandaloso e polêmico em todos os
lugares por onde andou e trabalhou. Quando morou e trabalhou nos EUA, ele continuou
sendo uma poderosa fonte de escândalos.
No entanto, não parece justo que os estadunidenses
critiquem o comportamento de Dalí "por ter casado com Gala e manter
relações sexuais extra matrimoniais que são conhecidas pelo nome de “ménage à trois". Eu não pratico,
nem desejo praticar "ménage à
trois", mas julgar Salvador Dalí e suas obras, bem como a sua relação
com a Gala, através da lente ideológica e moralista do Puritanismo da mídia
estadunidense, me parece errado e uma posição ilegítima. Por quê?
Porque, entre
outras razões, as histórias sobre o caráter e o comportamento de Dalí foram
transformados em mitos modernos. As diferentes versões dessa história de luta e
separação do pai são exemplos da mitologia do personagem de Dalí. Eu relatei
aqui uma versão da história, mas já
escutei outras versões que também parecem tão plausíveis quanto a que contei.
Eu, acredito que
não é no nível moral, mas sim no nível político ideológico, onde Dalí pode ser
julgado de forma mais objetiva e legitima. Por quê? Porque os fatos são
inconfundíveis: Dalí era simpático ao regime de Hitler e um defensor do ditador
espanhol Francisco Franco cujas forças militares assassinaram seu amigo, o
poeta Federico García Lorca.
Salvador Dalí, em Nova York , em 1942,
denunciou seu ex-amigo, o cineasta surrealista Luis Buñuel como comunista e
ateu, o que levou Buñuel a ser despedido de sua posição no Museu de Arte
Moderna de Nova York e, posteriormente, seu nome foi incluído na lista negra da
indústria cinematográfica americana.
Por causa das
suas declarações e posições políticas a favor dos regimes autoritários fascistas,
Dalí foi expulso do movimento surrealista por André Breton (poeta francês, o
líder do movimento) com o apoio de artistas surrealistas, como o poeta francês
Louis Aragon e muitos outros.
Mas aqui deveria
voltar às questões do amigo Orozco e resumir as minhas considerações: se eu
fosse o psicanalista de Dalí, uma das minhas hipóteses para trabalhar com ele
seria analisar a mente inconsciente do pintor surrealista. Conforme a teoria
psicanalítica freudiana, poderíamos afirmar que Dalí não concluiu “as etapas de
seu desenvolvimento psíquico sexual”, satisfatoriamente.
Dalí parece,
mesmo adulto, estar aprisionado na fase fálica (complexo de Édipo) e precisa
tornar-se consciente desse lado inconsciente, para se libertar. Com o fim de justificar
a minha hipótese, farei uma pequena lista de quatro situações que me parecem
exemplares para sustentá-la, a seguir: Salvador Dalí passou a vida repetindo a
primitiva situação triangular formada pela relação entre sua mãe, seu pai e ele
próprio. Do ponto de vista da teoria psicanalítica, Dalí esteve sempre dividido
entre seu amor pela mãe e o ódio pelo pai. Aqui estão os quatro exemplos que
evidenciariam a neurose de Dalí:
1 A constante luta
de Dalí contra o pai que resultou na expulsão do pintor da casa dos
progenitores. 2) Quando Dalí conheceu e começou a ter um caso com Gala, ela era
a esposa de seu amigo, o poeta francês, Paul Éluard. 3) O cineasta surrealista
e seu amigo, Luis Buñuel, rompeu a amizade com Dalí, devido à presença de Gala
entre eles. 4) Ao longo de sua vida, Dalí nunca se afastou da concorrência
gerada pela rivalidade da relação triangular entre pai, mãe e filho, permitindo
ser parte constante do "ménage à
trois" entre ele, a esposa Gala e a coleção de amantes que Gala teve.
Ainda que a época denominada pós moderna
do capitalismo tardio, seja, de acordo ao crítico marxista Fredric Jameson,
contra a história, contra a memória e contra o inconsciente freudiano, os
humanos, na minha opinião, ainda contaria com a ajuda das pinturas de Dalí, de
Picasso, dos filmes de Buñuel, Hitchcock, dos livros do psicanalista Slajov
Zizek e do educador Paulo Freire para continuar apostando na luta marxista pela
libertação dos oprimidos contra a
exploração e a dominação imposta pelo sistema capitalista.
Um comentário:
Excelente a matéria do professor Jorge Moreira. Bom que sua internet está bem...
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