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23 outubro 2012

"Saló" - "Os 120 Dias de Sodoma", de Pasolini


É um filme forte, Saló, o derradeiro e agônico Pasolini, chocante para alguns, mas já sacralizado como uma obra de arte. A ação se localiza nos estertores do fascismo, precisamente em 1944, quando quatro oficiais libertinos e luxuriantes sequestram dezesseis pessoas para fazê-las passar, num castelo imenso e sombrio, as piores humilhações e torturas, além de abusos sexuais, perversões da pior espécie. Pasolini, inspirando-se num livro do Marquês de Sade, tenta, aqui, um retrato metafórico do fascismo e, por extensão, do poder que anula o homem, coisificando-o. Realizado em 1975, pouco antes da morte do cineasta, Saló se constituiu num grande escândalo e foi proibido em várias capitais do mundo, porque considerado obsceno, revoltante, um atentado à moral e aos bons costumes. Na verdade, é uma obra que dilacera, uma verdadeira descida ao inferno de um homem atormentado com os descaminhos do mundo e, principalmente, de sua Itália. A virulência é tão grande que prenuncia o desaparecimento de Píer Paolo Pasolini, um dos mais originais cineastas da história do cinema.

Idealizador do cinema-poesia em oposição ao cinema-prosa, Pasolini, assim como Glauber Rocha, mutatis mutandis, evidentemente, extrapolou o cinema. Foi um agitador cultural, com seus artigos inflamados, polêmicos, arrasadores, suas poesias, seu comportamento híbrido, seu homossexualismo declarado, um homem "a latere" do sistema, que gostava de conviver com a sordidez, com marginais nos becos mais nojentos de Roma. Morreu procurando saciar o seu apetite carnal. Mas um homem que tem tal comportamento é um artista? poderia perguntar alguém estranhado com tanta sordidez. Sim, um grande cineasta, um grande poeta, um intelectual de escola.
Por outro lado, foi capaz de se elevar na melhor versão para o cinema de um evangelho: O Evangelho segundo São Matheus (1967) é um filme extremamente poético, dotado de uma sensibilidade à flor do celuloide. Dedicado à generosa e doce figura do papa João XXIII, conta com atores não profissionais (à maneira do neo-realismo italiano mas não seguindo seus postulados). Na época de seu lançamento, causou admiração geral. A Igreja ficou sensibilizada e lhe deu o prêmio OCIC. Como um marxista pôde filmar com tanta beleza um evangelho? Perguntas que pipocaram na ocasião, mas visto o filme estas se desfizeram em profunda admiração pelo homem e pelo artista.

Lembro-me de Teorema, que vi pela primeira vez no antigo Liceu, numa pré-estréia num domingo de manhã. Fiquei estupefato nos meus 18 anos em 1968. Que filme admirável! Um anjo vindo não se sabe de onde (dos céus!) é o elemento deflagrador de um processo de transformação de uma família burguesa, cujo chefe é um rico industrial. O anjo é Terence Stamp no auge de sua carreira, que, irrompendo na celula mater, conquista e conhece (no sentido bíblico) a todos. Após o contato, as pessoas se transformam, tomando rumo diverso. A esposa do industrial, começa a andar de carro pelas ruas de Roma à procura de homens para saciá-la de maneira sádica. O filho começa a pintar quadros abstratos num acesso de loucura. A filha entra em processo catatônico. A empregada despede-se da mansão e retorna a sua pobre região, ascendendo, levitando, e no ar, é admirada pela população como uma santa. E o chefe dá a fábrica aos operários e sai nu, correndo e gritando pelo deserto. Do ponto de vista da fábula, Pasolini se utiliza do lugar fabulístico do elemento deflagrador, assim como William Holden que chega à cidadezinha de "Férias de Amor" (o deslumbrante Picnic, de Joshua Logan) e provoca celeuma, assim como Shane que, no filme do mesmo nome, aparece num lugarejo para transformá-lo. Mas a essência pasoliniana é outra.

Édipo Rei, Medeia, a trilogia iniciada com Decameron, continuada com Os Cantos de Canterburry e As mil e uma noites (esta, mais fraca) são exemplos de um universo pessoal lúcido e corajoso. Inconformista in extremis, Pasolini não aceitava o establishment, lutando para quebrá-lo, modificá-lo. Quando se vê hoje um filme como "Beleza americana" e, a respeito dele, fala-se atabalhoadamente em 'virulência crítica' do american way of life, a única reação possível é o riso irônico. Um outro cineasta que incomoda, além do grande Buñuel, porque descobre as fraturas expostas de uma sociedade apodrecida, é Marco Ferreri, que, há tempos, não aparece por estas bandas. Veja dele, se o tem em DVD, Crônica de um amor louco. Mas sua obra-prima é A Comilança (La grande buffe, 1973).

Neste filme, vários amigos se reúnem numa casa interiorana para comer até estourar. O programa estabelece que não se pode parar de comer até o advento da morte. Alguns estouram literalmente. Ferreri é um cineasta singular, marginalizado, por esta singularidade, dos circuitos comerciais. Os amigos reunidos não comem, porém, qualquer coisa, mas pratos finos da haute cousine preparados por um deles, Ugo Tognazzi, um mestre-cuca de primeira, dono de restaurante. Philippe Noiret (o velho operador de Cinema Paradiso) é um juiz com problemas edipianos, Marcello Mastroianni, um piloto de avião. E, ainda, entre a turma, o grande ator francês Michel Piccoli. Quando reunidos, uma gorducha professora da vizinhança, Bárbara Ferreol, intromete-se na farra.

Já nos filmes de Pasô, como era chamado, há uma surpreendente naturalidade de registrar e observar as coisas mais escabrosas. O sexo, por exemplo, é visto sem nenhuma ênfase, com a máxima naturalidade. Pasolini é grande porque tem uma forma toda particular de expressar suas idéias, de oferecer à imagem cinematográfica um acréscimo, um acréscimo de sua personalidade esfuziante. Evidente que os moralistas de plantão sempre se chocaram com alguns de seus filmes. Lembro-me que uma vez apresentei Salô a uma turma de estudantes e alguns se retiraram enojados, sendo que duas belas e radiantes garotas simplesmente vomitaram em plena sala de aula. Mas aí é que está: o choque faz parte de sua estética. Seus filmes, não todos, são destinados a mostrar as fraturas expostas de uma sociedade podre e hipócrita.

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