Rock Hudson e Dorothy Malone em Palavras ao vento, de Douglas Sirk |
Fala-se
muito em intimismo cinematográfico, mas quase nada, pelo menos em língua
portuguesa, existe escrito sobre esta maneira de representação do real nas
imagens em movimento. O lançamento (em DVD) de Imitação da vida (Imitation of
life, 1959), de Douglas Sirk, faz emergir o pensamento sobre o que
significa o intimismo e o modo pelo qual é traduzido, nele, o "real".
O
intimismo representa, por excelência, a escola idealista no cinema. A realidade
é filtrada pelo sentimentalismo e pela subjetividade, o que o identifica com o
romantismo. Segundo Maurício Rittner, em seu exemplar livro introdutório, Compreensão de cinema, editado pela Buriti em 1965, nos filmes
intimistas nem sempre o desfecho da história é feliz, fato característico dos
filmes românticos. Como as normas de conduta, ainda segundo Rittner, próprias
do intimismo são normais ideais, elas acarretam uma técnica de renúncia aos
valores autênticos da vida. Assim, o universo romântico-intimista configura um
sistema de forças em conflito: as forças do sentimento e as forças da razão.
Mas em sua fé nos sentimentos, os personagens se tornam quase místicos.
Segundo
o crítico de arte Herbert Reed, existem três modos básicos de representar o
mundo: o realismo, o idealismo (intimismo), e o expressionismo, havendo um
quarto modo (surrealismo) que tenta substituir o realismo, que é, esta, a escola, por assim dizer, que
registra tão verazmente quanto possível aquilo que nossos sentidos conseguem
perceber no mundo real. Há no realismo cinematográfico várias vertentes
(neo-realismo italiano, realismo poético francês, realismo socialista, realismo
fantástico, realismo crítico...). A maioria dos filmes do Cinema Novo
brasileiro pode se inserir dentro do realismo, assim como a famosa escola de
documentaristas britânicos dos anos 20 (John Grierson, Paul Rotha...).
No
expressionismo (e, principalmente, no expressionismo alemão dos anos 10 e 20) o
que importa não é a tradução do real (como no realismo), mas a expressão de seu
reflexo na sensibilidade e no espírito. O filme ícone do expressionismo é O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919), com seus cenários de
papelão, objetos pintados, gesticulação exagerada. Há uma preocupação maior na
plástica da imagem do que nos recursos da montagem. A cenografia tem uma forte
presença na produção de sentidos. O expressionismo influenciou todo o cinema
(Cidadão Kane, de Orson Welles, com seu jogo de luz e sombras, é
uma obra expressionista.)
O nome
maior do surrealismo no cinema é o de Don Luis Buñuel, autor de duas obras
puramente surrealistas: Un chien andalou (1928) e L'Âge
d'or (1930), ambas em colaboração com Salvador Dali, filmes que chocaram
platéias e provocaram escândalos. O surrealismo tenciona apresentar a realidade
interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação,
Tem grande influência de Freud (A interpretação dos sonhos) e do
materialismo histórico.
O móvel,
entretanto, da coluna, é o intimismo, que tem seu apogeu nas décadas de 30, 40
e 50 no cinema americano. Para uma sociedade extremamente imediatista e
consumista, atualmente filmes intimistas podem provocar risos (vindos,
evidentemente, de débeis incapazes da percepção da obra em seu momento
histórico) e parecer, à primeira vista, anacrônicos. Mas os filmes intimistas,
quando realizados com classe, com talento, com estilo, podem suscitar
uma espécie de estesia pela beleza de sua mise-en-scène. Alguém, de
sã consciência, poderia rir dos filmes de Douglas Sirk (Palavras ao
vento, Almas maculadas, Tudo que o céu permite, Amar e morrer, Desejo atroz, entre outros)?
O
intimismo significa a evolução de uma história cinematográfica em torno das
eternas constantes do amor, com a tônica no estudo exaustivo das relações
afetivas e dos fatores que as precipitam ou as impedem. E criou um universo
dramático especificamente feminino centrado nas reações da mulher diante do
mistério do amor. Por exemplo: ...E o vento levou (Gone with
the wind, 1939), de David Selznick/Victor Fleming/George Cukor/Sam Wood,
embora a sua ação se localize na Guerra de Secessão americana (1861/1864), esta
se torna apenas um pano de fundo, porque o que importa é a análise
da personalidade esfuziante de Scarlett O'Hara (vivida com empenho inexcedível
por Vivien Leigh) e suas oscilações diante do mistério do amor. Todos os
acontecimentos básicos do filmes são explicados em função dos estados
passionais (outro exemplo marcante é O morro dos ventos
uivantes/Wuthering Heights, também de 1939), de William Wyler, com Laurence
Olivier, David Niven, Merle Oberon. A dimensão lírica do intimismo é dada por
um tratamento acentuadamente romântico dos personagens e das situações.
O
intimismo parte de uma visão realista, que é deliberadamente selecionada e
exaltada em alguns de seus aspectos. Para Rittner, o intimismo induz das formas
da realidade uma idéia abstrata, mais perfeita do que a original. A realidade
"deveria ser assim" e não
assim, como seria numa visão realista. A idéia abstrata mais perfeita
do que a realidade não torna o intimismo "menor", mas, muito pelo
contrário, fala-se, muitas vezes, melhor da realidade através da fantasia e da
estilização. Diria mesmo que há uma possibilidade estética maior no intimismo
do que no realismo tout court.
A
própria realidade, no intimismo, é recriada em termos de poesia e de ternura e,
por isso, quase se torna estática, desvitalizada, isolando os personagens de
seu meio. É, no entanto, é pela imobilização da realidade circunstancial que o
intimismo se torna revelador, transformando o vulgar em invulgar, o superficial
em transcendente.
Com a barbárie estabelecida no
consumo do produto cinematográfico, com o cinema transformado em fast
food, o público solicita, hoje, mais a brutalidade e a ação do que a
ternura e a poesia. Ri-se de certos momentos românticos dos filmes intimistas.
Ri-se de forma esquizóide, nos dias que correm, da poesia e da beleza. Há,
patente, uma preferência por um realismo quase naturalista do que pelo
tratamento intimista dos personagens e das situações. Rir de uma obra como Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953),
de Vincente Minnelli, filme intimista, dá àquele que ri um atestado inconteste
de imbecilidade congênita.
São exemplos de filmes intimistas: Grande Hotel (Grand Hotel, 1932), de Edmund Goulding, com Greta Garbo, John
Barrymore, Joan Crawford, que saiu numa coleção de Dvds de um
jornal paulista, Esquina do pecado (Back street, 1932), de John M. Stahl,
que dirigiu a primeira versão, em 1934, de Imitação da vida, Anna Cristie (idem, 1930), de Clarence Brown, com Garbo, A dama das camélias (Camille,
1936), com Garbo e Robert Taylor, Adeus Mr. Chips (Good-bye Mr. Chips,
1939), de Sam Wood, Um lírio na cruz (Till we meet again, 1944), de Frank
Borzage, Carta de uma desconhecida (Letter from a unknow woman, 1948), de
Max Ophul, com Louis Jordan e Joan Fontaine, Por tua causa (Because of you,
1952), de Joseph Pevney, com Loretta Young e Jeff Chandler, Tarde demais para
esquecer (A affair to remember, 1955), de Leo McCarey, com Cary Grant e
Deborah Kerr, Suplício de uma saudade (Love is a many splendored thing,
1955), de Henry King, com William Holden e Jennifer Jones, entre muitos outros.
E os grandes sirks já citados dos anos 50.
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