Athayde e sua filha Mara Athayde |
Poucos
os cineastas idealistas como Carlos Alberto Vaz de Athayde, que, falecido há
vinte e dois anos, em julho de 1990, vitimado por um fulminante enfarte, deixou imensa
lacuna no meio cinematográfico baiano, embora, considerando a falta de memória
típica dos soteropolitanos, a maioria não mais se lembre desse autêntico Don
Quixote. E Quixote em todos os sentidos, pois sua idéia fixa, sua vontade de
fazer cinema, sua abnegação pela causa, faziam com que lutasse contra moinhos de
vento. Vamos recordá-lo, portanto.
Fotógrafo, cineasta, escritor, Carlos Alberto Vaz de Athayde
fora, antes de tudo, um amante do cinema, um idealista, um sonhador que
acreditara nas possibilidades de o baiano poder vir a se expressar através das
imagens em movimento.
Humanista , de natureza tranqüila, lhano trato, caráter de
retidão indiscutível, Athayde, quando comprara, no Rio de Janeiro, em 1965,
durante o Festival Internacional de Cinema que ali se realizara, uma câmara
Paillard Bollex, decidira colocar esta a serviço do cinema baiano. No seu
retorno da temporada carioca, pensara num projeto há muito acalentado: realizar
em Salvador um curso de iniciação cinematográfica. Em 1967, no seu primeiro
semestre, conversando com o sociólogo Yves de Oliveira, sentira neste o
entusiasmo pela idéia e, principal responsável pela Escola de Sociologia e
Política, que ficava situada na Ladeira da Barra (logo no princípio), colocou
esta à disposição de Athayde como um espaço disponível para a realização do
curso desejado. Com sua câmara Bollex de 16mm, Athayde programara suas aulas de
"Fotografia no cinema" e, para ajudá-lo em outras disciplinas, convidara Orlando
Senna, que se encarregara de "História do Cinema", e Carlos Vasconcelos
Domingues, que ficara responsável pela "Sociologia Cinematográfica". Vendo uma
nota no jornal, este comentarista, ainda com seus dezessete anos incompletos,
resolvera se inscrever e, então, na Escola de Sociologia Política, que depois
seria fechada pela ditadura, viera a conhecer o cineasta Carlos Alberto Vaz de
Athayde.
O curso serviria de oportunidade para que várias pessoas
interessadas em cinema se conhecessem e daí partissem para a formação de um
grupo de estudos cinematográficos que, meses depois, estruturado, organizado,
tomara o nome de GIC (Grupo de Iniciação Cinematográfica), núcleo que dera
origem à evolução de alguns dos cineastas que hoje batalham no cinema da Bahia.
Athayde fora um animador, entusiasta do grupo, fazendo extrapolar o curso para
uma amizade com os demais integrantes deste, os quais, neófitos, procuravam dar
seus primeiros passos na arte da contemplação da obra fílmica. Reunindo-se, a
princípio, na Residência do Universitário, R2, na Vitória, o GIC não tardará a
tentar uma empreitada mais arrojada: a realização de um filme em 16mm,
curta-metragem, com roteiro escolhido democraticamente entre os apresentados
pelos membros do grupo. E surgira ”Perambulo”, obra impregnada de realismo
social, de cinema ’enragé’, influência do Cinema Novo, de Glauber e do
neo-realismo. Quem seria o diretor de fotografia? Athayde, evidentemente, que
emprestara sua câmera e seu trabalho, sempre disposto a animar a equipe, a
indicar-lhe os caminhos dos sonhos concretizados. Antes, porém, a mesma Paillard
Bollex servira a O Carroceiro,
de Ney Negrão (de saudosa memória), com Athayde mirabolante, entusiasmado,
fazendo as maiores estripulias para dotar o filme de ângulos inusitados. E para
isso, com suas propostas de enquadramentos ‘sui generis’, Carlos
Alberto Vaz de Athayde, com seu indefectível paletó e gravata, subira até em
árvores na tentativa de captar um ângulo melhor para O
Carroceiro.
.Outra característica de Athayde era a sua impontualidade. Nunca
chegara a um encontro na hora certa. Seu tempo não conseguira se ajustar à
temporalidade da rotina diária, vivendo num tempo à parte, particular. Numa
filmagem de “Perambulo”, marcada para as 9 horas da manhã, Athayde, como
fotógrafo, fizera a equipe lhe esperar até às 14 horas. Lembra-se este
comentarista que todos os componentes da equipe foram à casa de Athayde (que,
nesta época, morava na Princesa Isabel, perto o Clube Bahiano de Tênis) e o
encontrara ainda em pijama mergulhado (literalmente) num prato de feijão.
Poder-se-ia dizer que Athayde fora uma figura folclórica do cinema baiano, mas,
inegável e indiscutível, o seu prestígio como um homem abnegado que amara o
cinema sobre todas as coisas e nunca se recusara a participar e ajudar aqueles
que se iniciavam no ‘métier’ cinematográfico. E fora assim que ajudara
José Umberto no longa que este realizara em 1972 chamado “O Anjo
Negro”, participando, ainda, como ator na figura de um padre, papel,
aliás, que parecia lhe cair como uma luva, pois fora também como padre que
aparecera em “Doce Amargo”, de André Luiz de Oliveira e José Umberto, curta
premiado no Festival do "Jornal do Brasil" e
Mesbla.
Carlos Alberto Vaz de Athayde também filmara projetos
pessoais, como um filme inacabado sobre os monumentos de Salvador: “Ensaio de
Perspectiva”, cujo título já dá para se ter uma idéia da tentativa de
dimensionamento estético na arte de fotografar. Nos últimos anos, vivera
sozinho, num apartamento na Ladeira da Barroquinha, de onde vira o poente pela
última vez, por trás da imagem do poeta Castro Alves. Sozinho, meio desiludido,
o cinema ficara como coisa do
passado.
Carlos Alberto Gaudenzi, Kabá, cineasta baiano, depois de ter lido esta minha pequena homenagem ao grande Athayde, publicada nesta mesmo blog há três anos, enviou-me uma preciosa mensagem que faço questão de aqui registrar:
Carlos Alberto Gaudenzi, Kabá, cineasta baiano, depois de ter lido esta minha pequena homenagem ao grande Athayde, publicada nesta mesmo blog há três anos, enviou-me uma preciosa mensagem que faço questão de aqui registrar:
"Setaro,
Bela
homenagem a Athayde. Por merecimento, o exemplar amigo foi lembrado por você.
Meu quase primeiro curta O CORTIÇO (nada a ver com o livro do Azevedo), foi
rodado com a velha Paillard Bolex de Athayde. Ficamos no cortiço (Pelourinho,
bem perto do Hotel de mesmo nome) uns 3 dias, fazendo a pré-produção, anotando,
fazendo o roteiro, tomando depoimentos etc. Rodamos numa sexta-feira num
verdadeiro passeio de câmera sobre os 4 andares do casarão, cenas que serviriam
de base para o filme. Ali, moravam umas 30 pessoas de 5 ou 6 diferentes
nacionalidades e baianos mesmo em maioria. Lembro que no dia seguinte
encontramos o Cliton Vilella no Pelourinho e conversamos sobre amenidades do
meio no Rio e S.Paulo). No dia seguinte iríamos filmar 3 depoimentos (sem sync,
na base de 5 palavras e corte para off, flash back e outros
recursos improvisados). Athayde chegou a contactar um ex-comandante do Corpo de
Bombeiros, seu conhecido, pois precisava viabilizar umas cenas que eu queria
fazer de fora para dentro dos quartos, numa visão espacial e, certamente,
esteticamente ricas. Para tanto estava tentando conseguir a escada Magirus que
usaríamos como uma formidável grua. No domingo, lá estava a escada
Magirus...tentando apagar o fogo que destruira o casarão, o cortiço e o nosso
filme. Ficamos perplexos, sem acreditar no que víamos. Por muita sorte, ninguém
morreu. Morreram sonhos de muitas pessoas que perderam pequenos bens e muitas
referências. E também morreu ali o nosso sonho do primeiro filme, depois das
aulas de padre barçote, Paulo Emílio Salles Gomes e das palestras de Walter da
Silveira num breve curso, não me lembro promovido por quem, no Palácio
Arquiepiscopal, na Praça da Sé. Roberto Gaguinho à época trabalhando na Tv
Itapuã, resgatou um poucos dessa história, revelando os negativos 16mm P&B
que também se perderam no tempo.
Conto essa história para reverenciar a memória de Carlos Alberto Vaz de Athayde, ou simplesmente, Athayde, um apaixonado pelo cinema que fazia o que estivesse ao seu alcance sem nenhum interesse comercial, confirmando sempre grande apreço pelos seus amigos e pelo cinema que, para ele, era vida, era tudo".
abraços,
Kabá
* Acho
que a Paillard Bolex de Athayde deveria fazer parte do museu de Roque Araujo na
Dimas. Ele tinha um irmão que foi diretor do serviço de meteorologia do Estado
que ficava no alto de Ondina. Talvez seja uma pista para se contactar a
família.
Velho,
Por que não fez
um texto? (nota de AS: estou fazendo agora, Tuna). Athayde é uma figura do nosso cinema. Uma vez eu o encontrei no Rio,
ele me disse que iria procurar, em Cataguases, o cineasta Humberto Mauro, pois
estava com uma ideia de aplicar LSD numa aranha e filmar a mesma tecendo uma
teia. Queria a opinião dele. Perguntou o que eu achava. retruquei apoiando, mas
sugerindo que procedesse esta façanha, filmando desde a aplicação do alucinogéno
(não perguntei como ele o faria), até a ação do pequeno aracnídeo na urdidura de
sua teia. Tudo isto nasceu de um comentário do iluminado H. Mauro quando disse:
"seria incrível se pudessemos injetar LSD nma camera" (esta fráse é verdadeira,
talvez um pouco diferente, digo, com outras palavras). o saudoso Athayde achou
boa a minha sugestão, assim iria com seu projeto já realizado. Esta estória
acaba aqui, nunca soube do desfecho, nem se ele, de fato, chegou a abordar o
cineasta, com esta ideia, digna de Aldous Huxley, levando em conta As Portas da
Percepção.
Aproveito
para sugerir que você fale sobre o homem que tomava cafezinho de minuto a
minuto. Há toda uma geração que jamais ouviu falar dele...
Abs
Tuna
E um texto especial de José Umberto:
Athayde
recebera uma câmera Paillard Bolex, 16 mm, com o conjunto de três lentes:
grande angular, normal e teleobjetiva. Seu pai trouxera da Suíça. Essa câmera
fora o suporte básico para uma nova geração de cineastas baianos que procede o
Cinema Novo.
Carlos
Vaz de Athayde - símbolo exacerbado e caricatural da paixão pelo cinema
nos trópicos sul-americanos. Estando para Macunaíma assim como
Policarpo Quaresma estará para a Via Láctea. Uma questão de latitude,
senão de grandezas & misérias, por colocar com ufanismo a terra do Pau
Brasil na dimensão justa e precisa ao líquido amniótico da boceta de
Pandora.
Doce morada.
Repouso dos deuses e das deusas pagãs.
Sua figura
exótica marcou a paisagem da velha cidade de Salvador na década de 60. Sempre
portando paletó e gravata debaixo de um sol escaldante, não se separando jamais
de um cafezinho preto, bem quente, ele estimulou muitos jovens com o seu modo
livre, solto e original de experimentar a urbe.
Boêmio das
madrugadas intelectuais, amante da grande literatura universal, sobretudo a
libertária, mas acima de tudo um espectador inveterado que refletia tudo o que
via com o sabor e o entusiasmo da mais bela juventude.
Enfim, um rato
de cinema da boa cepa.
Athayde do
delírio na carne e no espírito. Capaz de filmar uma seqüência inteira com
inspiração... e depois descobrir que esquecera de por o filme no chassis da
câmera. Não importava, para ele, a revelação física, mas sim a inspiração do
instante absoluto. Do prazer em fazer, naquele momento, como numa graça ao tempo
que mística... romântica.
Daí a sua
entrega total. Desprendida. Uma pessoa que dá, que doa, simplesmente em troca da
luz. Da fotografia, sua companheira inseparável. E foi acreditando no brilho da
aurora que ele nos legou esse poema:
Novo
Horizonte
Talvez
carente de clara beleza
Vez que
acerca-sinto/olho/vejo
Quando sôlto
o pensamento
veleja ou
adeja,
muito além
do distante/horizonte
embora nada
se veja,
há um
monte/fonte
crescente/nascente
de outro
novo horizonte
distante
distante distante.
2 comentários:
Grande figura...
Compreendo a sua situação de spams, mas caramba!
Vê se há formulárcos com letras mais compreensíveis!
Olha que eu sou um artista gráfico e fiz cinco tentativas para postar o comentário... Imagino uma pessoa que não tenha famikliaridade com letras e outros bichos!
Olha só, vou para a terceira agora!
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