Edgar Navarro |
Publicado originariamente em Terra Magazine (6 de maio 2012)
A
geografia da ação de O homem que não dormia,
Igatú, cidade interiorana baiana situada na Chapada Diamantina, se reparte em
diversos planos, incursionando mais no tempo psicológico do que propriamente no
tempo geográfico. Edgar Navarro, neste surpreendente segundo longa, faz a opção
pelo realismo fantástico, e o filme é um exorcismo de seus fantasmas
recônditos, seus temores internos, sua vontade de por para fora, pelo conduto
cinematográfico, as aflições do artista. O realismo fantástico foge da lógica
habitual, da organização racional das ideias, e, assim, O homem que não dormia
é um delírio, uma alucinação, que entra pelos labirintos do universo onírico
com acentos surreais. Não se pode exigir de sua estrutura narrativa um comportamento
de acordo com os postulados do cinema realista, pois O homem
que não dormia não o é.
Há,
por assim dizer, um realismo, quando sua câmera capta as conversas na barbearia
e no bar, entre outros poucos locais, que retrata com humor e verdade as falas
e as maneiras do homem interiorano se comunicar. Nestas sequências, engraçadas
pelos ditos, e compostas pelos tipos certos, surge o Edgar anárquico e
desabusado, que analisa a condição humana à flor da pele. Os planos de uma
realidade surreal estão na mansão do barão sobrenatural (interpretado pelo
próprio autor com particular expressão), inclusive com a transformação da
película em preto e branco.
O
discurso cinematográfico navarriano é um discurso, portanto, vinculado ao
fantástico. A projeção neste, no entanto, não deixa de revelar o homem em seu
delírio gótico Cineasta de ex-abruptos, Navarro, depois de sua estreia no longa
em Eu
me lembro, ainda que mude de rumo temático, não desfigura o seu
estilo bombástico. Se a obra de estreia é um filme no qual faz o seu amarcord,
desligando-se de seus impropérios e devaneios superoitistas iniciais, e, mesmo,
da fantasia alucinante de O Superoutro, em O
homem que não dormia vomita seus filmes anteriores numa dimensão
lúdica e, não seria exagero afirmar, purificadora. A exemplo do padre vivido
por Bertrand Duarte que, no final, tira a roupa e, no meio da praça, realiza
uma espécie de purgação. O homem que não dormia é, por
isso mesmo, a purgação navarriana por meio das imagens em movimento.
Filme
surpreendente pelo apuro da produção, pelo desenho de arte excepcional (o
casario onde vive o Barão, cheio de mofo, traças, o bar etc), pela fotografia
funcional de Hamilton Oliveira, e, principalmente, pela maneira de Navarro
organizar a estrutura audiovisual, As dimensão do real se bifurcam num processo
simbiótico onde, às vezes, fica difícil distinguir as fronteiras do onírico com
as da realidade do tempo geográfico já referido para alcançar um tempo, por
vezes, meramente psicológico. Para aqueles que o acusaram de ser redundante na
exploração de certos momentos nos quais há torrentes mijatórias, não se deve
esquecer que se está diante de um filme de Edgar Navarro. Os dois cegos que se
masturbam, por exemplo, é uma homenagem a Luis Buñuel, que declarou certa
ocasião que era o seu desejo filmar uma cena com dois cegos assim procedendo.
Tudo se encaixa perfeitamente em O homem que não dormia e o
relato assombroso tem a haver com a busca do realismo fantástico, como já se
disse, e se o filme pode escandalizar incautos, o escândalo é necessário,
principalmente numa época, como a de hoje, do vale tudo escancarado, como
sempre dizia o surrealista André Breton.
O
homem que não dormia, vale
ressaltar, é o filme baiano mais bem realizado dos anos 2000, superando,
inclusive, Eu me lembro. O filme é visceral, e, nesse particular, preenche-se
como obra de arte, como a expressão de um autor que não pretende dormir na sua
ação executória como realizador de imagens em movimento. A estrutura
narrativa é uma estrutura onírica, inclusive com o acréscimo de poética
animação. O filme caminha para a libertação como pode fazer sugerir o acesso do
padre nos momentos finais e os balões coloridos que sobem lentamente para o
céu. Teria Navarro, com isso, se libertado, pelo cinema, de seus fantasmas,
para um terceiro longa mais suave e mais sereno? Ou o cinema não é o bastante
para sacudir o inconsciente do artista, permanecendo, nele, intactos, seus
delírios?
Vou
tentar desdobrar, aqui, a exegese interpretativa feita por Adalberto Meirelles
em seu excelente blog do espaço virtual (acessem-no: http://pontocedecinema.blog.br/blog/para-entender-o-homem-que-nao-dormia-de-edgard-navarro-e-sua-aparente-desarticulacao-narrativa/)
O filme, para Meirelles, é desenvolvido em três planos. No primeiro, o da
realidade cabal, estrita, que tem a ver com o sonho e seus sonhadores. Os
personagens sonham, vivem num mundo onírico, e o que sonham interfere com a
realidade circunstancial na qual vivem. Há, portanto, aqui, um postulado
do surrealismo, quando a realidade exterior se bifurca com a realidade
interior. Para os surrealistas, a realidade só merece consideração quando
aglutina a exterioridade dela e a sua interioridade refletida nos transes,
sonhos, alucinações, naquilo que se encontra escondido no inconsciente do homem
ou no inconsciente coletivo. O segundo plano está afeito aos comentários sobre
a realidade feitos pelos homens que frequentam a barbearia e o boteco da
localidade, e, também, pelo contador de histórias que nos envolve em um mundo
de sacis pererês e mulas sem cabeça, erguendo, com isso, a ponte para um
terceiro plano. O plano do não-lugar fantástico, ancestral, dominado pelo
poderoso barão cujo espírito paira entre aqueles sonhadores danados. Para que
os sonhadores se libertem, ressalta Meirelles, eles precisam de uma prova de
fogo. E ela se dará em um ritual de resgate simbólico do tesouro enterrado pelo
barão.
O argumento, tirado do blog do filme, diz o
seguinte: "Cinco
pessoas de uma cidadezinha são acometidas pelo mesmo pesadelo: um homem
sinistro e seu tesouro enterrado. Com a chegada de um peregrino, o vilarejo é
arrebatado da rotina medíocre e os personagens lançados num vórtice de
acontecimentos insólitos. A verdade de cada um será então trazida à luz,
libertando-os do jogo perverso das hipocrisias, medos e doenças, compelindo-os
a assumir as rédeas de seus destinos e reescreverem suas vidas."
A fabulação de Navarro, portanto, é muito rica.
E ele soube transformá-la convincentemente nas imagens em movimento. Se a
fragmentação da narrativa pode confundir e por causa do hábito dos espectadores
atrelados e acostumados ao modelo de narrativa griffithiana, com começo, meio,
fim, estruturado de acordo com a lei de progressão dramático, do in crescendo.
O homem que não dormia, porém, não teria a presença fílmica que tem se não
fosse a direção de arte de Moacyr Gramacho, a fotografia de Oliveira, e a
interpretação excelente dos atores, em especial Bertrand Duarte ,
como o padre recolhido o filme inteiro em suas dúvidas interiores (enquanto não
está a ler Monteiro Lobato) e, que, de repente, explode no final. Além de
Duarte (que já virou ator internacional com Dawson - Ilha 10,
de Miguel Littin), Evelin Buchegguer (a mulher), Mariana Freire (Madalena),
Fernando Neves (Coronel Abílio, um ator de grande presença cênica, que
trabalhou em Eu me lembro como o pai intransigente), Ramon Vane (Pra Frente
Brasil), Fábio Vidal (Vado), Harildo Dêda (talvez o maior ator baiano vivo numa
ponta no final, quando se aproxima do padre - aqui, uma piada típica de
Navarro), Nélia Carvalho (Dona Cora, uma senhora atriz, que faz a empregada
dedicada no filme anterior), Fernando Fulco (o cego velho em impressionante
caracterização - usando lentes de contatos azuis, está assombroso), Bertho
Filho (o cego jovem), Julio Goes, como o sacristão, entre outros, a destacar,
nestes, o peregrino interpretado por Luis Paulino dos Santos, que não é outro
senão o cineasta que deu início às filmagens de Barravento e que,
depois, sofreu um golpe na cintura dado por Rex Schindler e Glauber Rocha,
ficando, este, como o autor do filme. Mas Paulino realizou outros filmes, entre
eles, Mar Corrente, desconhecido e esquecido filme brasileiro
com Paulo Autran. O preparador do elenco foi o talentoso Marcondes Dourado. E a
produção de Sylvia Abreu (Truque).
O homem que não dormia foge dos padrões do
cinema brasileiro atual e se posiciona como uma obra singular.
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