Desprezado pela crítica e pelo público, Peeping Tom precisou esperar mais de uma década até que foi redivivo nos anos 70 e considerado, por realizadores e críticos como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Claude Beylie, entre tantos, uma obra-prima. Scorsese, inclusive, chegou a comprar o negativo em 35mm para restaurar o filme em suas cores magníficas. Com o advento do DVD, a Criterion (distribuidora que somente lança obras luminosas e bem definidas) distribuiu Peeping Tom no mercado americano. A Silver Screen, embora não mantendo a qualidade das cópias da Criterion, lançou, há dois anos, o filme no Brasil. É um acontecimento importante para o cinema e para quem gosta de cinema já que o circuito comercial, honradas as exceções de sempre, impõe ao mercado o lixo cultural oriundo da indústria americana.
Mark Lewis (interpretado por Karl-Heinz Boehm, conhecido como o imperador, marido de Romy Schneider, na série Sissi) é um jovem cameraman que vive, para cima e para baixo, com sua câmera portátil 16mm debaixo do braço.Tem prazer em filmar, com ela, as prostitutas que o abordam na rua e matá-las com um estilete dissimulado no pé da máquina. Para aumentar seu prazer, ele mostra a suas vítimas, no momento crucial, um espelho parabólico que reflete a imagem de seu pavor na hora exata de morrer. Ele faz confidências à vizinha (interpretada por Anna Massey, que, mais de dez anos depois, em 1972, Hitchcock, quando filmou em Londres seu extraordinário Frenesi/Frenzy, a convidou para o papel da namorada de Jon Finch, vítima de estrangulamento pelo serial Barry Foster - e não a dúvida que o mestre se influenciou muito no filme de Powell em Frenzy) e exibe, no seu quarto, através de um projetor 16mm, para ela, os filmes amadores feitos pelo seu pai, um psiquiatra que utilizava o filho como cobaia para estudar a reação das pessoas diante do medo. Interessante observar que o pai (visto nos filmes projetados em preto e branco) é interpretado pelo próprio Michael Powell. Renomado psiquiatra tem como objetivo a investigação do pavor no ser humano. O filho passa a infância sendo filmado a toda hora e a qualquer momento. O que lhe provoca nada menos que um imenso trauma. Seu gosto perverso pelo voyeurismo vemdaí.Filmes sobre o voyeurismo são presenças marcantes no cinema (Janela indiscreta do mestre, Dublê de corpo, de Brian De Palma, entre tantos), mas nunca o voyeurismo atingiu a dimensão e a sutileza verificadas em Peeping
Powell, cineasta essencialmente inglês, foi produtor dos primeiros filmes de Hitchcock e, antes de Peeping Tom, era muito considerado por causa de filmes como Neste mundo e no outro(A Matter of Life and Death, 1946), Coronel Blimp (The Life and Death of Colonel Blimp" 1943), com Deborah Keer, Narciso negro (Black Narcissus, 1947), também com Deborah Keer e Jean Simmons, e, principalmente pelo fascinante Sapatinhos vermelhos (The Red Shoes, 1948), que tem no seu elenco a mesma Moira Shearer de Peeping Tom. Fala-se que este filme revolucionou o balé. Todos os citados, menos Peeping Tom, foram dirigidos em parceria com Emeric Pressburger.Filme fantástico do segundo ou mesmo do terceiro grau, sentenciou o crítico francês Claude Beylie a respeito de Peeping Tom, esta obra surpreendente apresenta o caso de um Jack, o Estripador, moderno, que teria visto muito Um cão andaluz, de Buñuel, e Janela indiscreta.Beylie, aliás, se impressionou tanto com A tortura do medo que o colocou entre os melhores filmes de todos os tempos em seu imprescindível livro As obras-primas do cinema (editado aqui no Brasil pela Martins Fontes, mas esgotadíssimo). Segundo o ensaísta, "Este filme que seríamos tentados a atribuir a algum epígono de Buñuel ou Hitchcock, é obra de um respeitável cidadão britânico, Michael Powell (nascido em 1905), que, até então, dedicara-se a trabalhos prestigiosos (mas já marcados por um sólido humor) como Coronel Blimp ou Neste mundo e no outro. Retrospectivas recentes permitiram aquilatar a dimensão de um talento que não é indigno dos mestres americanos do cinema de aventuras ou do musical".
Ainda Beylie: "A escolha de uma história - bastante sórdida - que evoca os romances de crime de Edgar Wallace, e apimentada com private jokes, pode surpreender. De fato, não só tudo neste filme gira em torno da escoptofilia, concebida como uma variante inquietante da cinefilia, mas o diretor multiplica-as 'as piscadas de olhos': ele próprio faz o papel de um pai indignado que filma os medos de um garoto (seu próprio filho), enquanto o deux ex machina cabe a uma senhora alcoólatra e cega! Para coroar tudo, Powell afirma tranqüilamente que não há nada de malsão nisso, que se trata, ao contrário, de um filme 'terníssimo, delicadíssimo, quase romântico'. Em todo caso, a obra impressionou várias gerações de espectadores - e de cineastas como Martin Scorsese e Brian De Palma".
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