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25 agosto 2010

A morte matada da cinefilia



Para os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando rápido - ó tempo suspende o teu vôo!, o advento do VHS foi uma surpresa, e a do DVD, com tantos dreyers e bergmans, minnellis e langs, hawks e fellinis, espalhados por aí, quase um assombro. Alguém já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto, outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em termos de imagem. Assim, havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade. Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico, inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a olho nu.

Se um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando, retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se desenrolava na tela - ou no écran, como se dizia então, e ninguém podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção e, revólver em punho, ameaçasse o operador. Mas a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica. Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se tornaram vulgares no sentido de corriqueiras.

Quando me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar).

E atualmente ir ao cinema é entrar num festim diabólico onde reinam as pipocas, as conversinhas fora de hora, os celulares que, atendidos, infernizam o espectador que queira contemplar o filme. O público de cinema, no Brasil, pelo menos, se tornou uma espécie de patuléia desvairada. Repito sempre que o ir ao cinema hoje é uma das fases do shoppear. Não se vai mais ao cinema, esta a verdade, mas aos shoppings. Até mesmo nas salas ditas alternativas o público se comporta com apatia e as pessoas gostam mais de aparecer, porque, na sua grande maioria, pseudo-cinéfilos, pseudo-intelectuais. Mas vou contar uma história.

Corria o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B. Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde. Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura, alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos, esperando o horário, com certa  expectativa, aliás, que não tenho mais para quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí, um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu, resolvi ir andando do Flamengo, onde fica este, até Laranjeiras, onde estava hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette. Atualmente, tenho-o em VHS e DVD, que fica guardado, parado.

Não seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por exemplo, que ia sempre à Paris para se meter na Cinematheque Française e ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater em sua casa e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.

A cinefilia, como se praticava antigamente, está morta, e bem enterrada

7 comentários:

O Neto do Herculano disse...

E que descanse em paz!

☆.•тнαмму ¢αяσℓιηу.•☆ disse...

tem selinho la no meu blog pra vc passa la para pegalo..

http://florzinha410-apaixonadosporleitura.blogspot.com/

bjs

ARMANDO MAYNARD disse...

Eis um tratado do “Tempo da Cinefilia”. É verdade Setaro, já não se faz mais cinéfilo como antigamente. Há um bom tempo que não freqüento uma sala de cinema, mas tenho saudade do som perfeito e da grande tela cinemascope. Digo aqui em casa que só volto a ir a uma sala de cinema, quando inaugurarem um IMAX e em 3D, aqui em Aracaju. Hoje por comodidade e ainda, cinefilia, assisto alguns filmes, sim, alguns, pois agora estou mais criterioso e exigente, no “Cine Club SKY”, um pacote com todos os canais em Pay Per View abertos, um verdadeiro multiplex na sala de minha casa. São 15 a 18 canais com diversos filmes inéditos na TV de assinatura, em sessões contínuas, cujo tempo de ‘janela de exibição’ das salas, vem diminuindo com o passar do tempo e o avanço tecnológico. Os últimos filmes que assisti, têm uns seis meses que foram exibidos nos cinemas. Ainda defendo que filme deve ser visto no cinema, pois em casa, além da espera até sair em DVD e chegar no Cine Club Sky, não é o mesmo prazer de uma sala, mas o gosto é parecido e sacia o apetite do cinéfilo já alquebrado pelas muitas platéias mal educadas, filas, telas, comédias, dramas, e decepções da vida. Caro Setaro, no meu caso, com classificação etária de sessenta anos, filme bom é saúde, filme ruim é doença. Por enquanto estou me recusando a ficar doente e assim vou ficando neste cinema (terra) até que o filme (vida) chegue ao último fotograma (lápide) com os dizeres “The End”. Um abraço, Armando.

André Setaro disse...

Belo comentário de um grande cinéfilo.

spring disse...

Uma excelente crónica esta, repleta de memórias, que me fizeram recordar os meus tempos de adolescente (anos 70) em que diáriamente viamos um filme, ficando muitas vezes durante largo tempo na bicha para comprar o tão desejado bilhete. Na cinemateca então era uma verdadeira luta, antes da bilheteira abrir uma hora antes do espectáculo, empé na rua à chuva. Cheguei a ver filmes sentado no chão e em pé, graças ao bom ofício de um amigo, porque a sessão se encontrava esgotada. Hoje tudo mudou e a cinéfilia foi-se perdendo, para grande pena minha. A situação em Portugal é muito idêntica à do Brasil. Sendo um dos problemas no nosso país as condições de projecção dos filmes. E quando se protesta todo o mundo faz oelhas moucas, não é nada com eles, se não quiser ver o filme nós devolvemos o dinheiro é a resposta que já conheci por diversas vezes. Mas não deixo de ir ao cinema, porque a magia do filme projectado no écran continua a fascinar-me.
Abraço cinéfilo
Rui Luís Lima

Luiz mario disse...

Caro Setaro,
somos herois da resistência porque está cad dia mais difícil encontrar alguem, vamos dizer, mais jovem com alguma cultura cinematográfica. Como vc disse, eles consomem os filmes, como os lanches dos shoppings.
A contemplacão, a reflexão foram pra lata do lixo.
Mesmo assim , continuo preferindo asssitir aos fimes no cinema, embora, ultimamente só passei filmes voltados para o público infanto-juvenil, como os Avatares da vida e cia.
Um abraco
Luiz mario

pseudo-autor disse...

O maior legado deixado pelos DVDs e downloads foi a capacidade de ter acesso a obras imortais do cinema (coisa que na época do VHS era impossível!), Não fosse o DVD eu jamais teria conseguido ver a filmografia do David Lynch e do Stanley Kubrick completas.

Cultura na web:
http://culturaexmachina.blogspot.com