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04 agosto 2010

Diverticulite

1) O que massacra a estrutura narrativa de O Bem Amado, de Guel Arraes, são os cortes rápidos, a estética do videoclip que, infelizmente, está a se incorporar ao espetáculo cinematográfico. Com tal procedimento, fica muito difícil se contemplar a tomada, e, em consequência, tudo passa muito velozmente. Assim procedeu A Arraes com a versão para o cinema de O Auto da Compadecida, que, primeiro apresentada em série na televisão, quando reduzida para a tela, ficou com uma montagem muito cheia de cortes. Mas o interessante é que O Auto da Compadecida funcionou bem no aparelho doméstico da TV, porque, justamente, não se acelerou seu ritmo.

2) Sobre fosse O Bem Amado um filme a estimar, caso não houvesse a tesourinha agindo no seu despedaçamento, mesmo assim seria difícil esquecer o grande Paulo Gracindo no personagem principal. Marco Nanini (ator consagrado e convincente em seus trabalhos) tem, aqui, um dos piores desempenhos de sua carreira. O seu Odorico Paraguaçu é apenas um pálido reflexo da encarnação de Paulo Gracindo.

3) Admirador da série televisiva de O Bem Amado, a sua constatação nesta versão cinematográfica vai além da decepção, pois o filme, pleno de defeitos estruturais no concernente ao ritmo, não convence como espetáculo. Em Salvador, nos esfuziantes anos 60, Álvaro Guimarães (Caveira my friend) montou uma peça baseada nesse mesmo texto de Dias Gomes e a intitulou Uma obra de governo. Na época, o teatro queria parecer se reinventar. Como se pôde ver, também, na antológica Stop, stop, de João Augusto.

4) Baseado na obra de Dias Gomes, O Bem Amado conta a história do prefeito Odorico Paraguaçu, que tem como meta prioritária em sua administração, na cidade de Sucupira, a inauguração de um cemitério. De um lado é apoiado pelas irmãs Cajazeiras. Do outro, tem que lutar contra a forte oposição liderada por Vladimir, dono do jornaleco da cidade. Por falta de defunto, o prefeito nunca consegue realizar sua meta. Nem mesmo a chegada de Ernesto - um moribundo que não morre - e a contratação de Zeca Diabo, um cangaceiro matador, lhe proporcionam a realização do sonho. Odorico arma situações para que alguém morra, mas o primeiro corpo a ser sepultado em Sucupira será o do próprio prefeito, que de caçador se torna caça e passa de vilão à mártir.
Produzido por Paula Lavigne e escrito e dirigido por Guel Arres, O Bem Amado tem Marco Nanini no papel de Odorico Paraguaçu, Matheus Nachtergale como Dirceu Borboleta (tudo bem, tá certo, Nachtergale é um ótimo ator, mas fica léguas de distância do inesquecível Dirceu de Emiliano Queiroz), José Wilker como Zeca Diabo (e este vai ser sempre o Lima Duarte da série), Andréa Beltrão, Drica Moraes e Zezé Polessa como as Irmãs Cajazeiras, Maria Flor como Violeta, Tonico Pereira como Vladmir, Caio Blat como Neco e Edmilson Barros como Chico Moleza. Um filme totalmente equivocado.

5) Revendo Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli, 1960), de Luchino Visconti, num DVD da Versátil, que o lançou há algum tempo em cópia luminosa, ainda que possa estar errado, senti que Visconti sofreu influência (mesmo que inconsciente) de Os irmãos Karamázov, o monumento literário de Fiodor Dostoievsky. É a tal da angústia da influência sobre a qual escreveu o crítico americano Harold Bloom, que disse que todos os livros escritos depois de Hamlet, de William Shakespeare, possuem influências deste. Hamlet seria o cânone da literatura ocidental.

6) O personagem de Rocco, interpretado por Alain Delon, assemelha-se muito a Aliocha do livro de Dostoiesky. E Rocco e seus irmãos, na verdade, trata-se da história de uma família (como denominou Dostoievsky à sua obra-prima, uma tragédia familiar, portanto). Simone, na excepcional performance de Renato Salvatori, não seria Dimitri? Influências geram influências, e ousaria dizer mesmo que O poderoso chefão (The godfather, 1972, 1974, 1990), de Francis Ford Coppola, bebeu nas águas de Rocco i suoi fratelli.

7) Entre os meus filmes favoritos, está Rocco i suoi fratelli, que vi na década de 60 e que continuei a vê-lo sempre que era exibido. Creio que o melhor de Luchino Visconti, este esteta, este perfeccionista, nobre, descendente da nobreza, mas que abraçou o marxismo. Uma mãe (e também aqui ressoa a mãe coragem brechtiana) sai de Lucania, região pobre no sul da Itália, e vai tentar a vida em Milão com seus cinco filhos. Não se pode esquecer a cena do assassinado de Nádia por Simone, um dos grandes momentos do cinema em todos os tempos. Por falar em Rocco i suoi fratelli é bom de ver que está a completar, neste 2010, 50 anos. Meio século? Sim, por incrível que pareça. Trata-se de uma obra cinematográfica que me acompanhou a vida inteira como ponto de referência. O DVD está meio esgotado, mas, com paciência, na internet, pode-se achá-lo.

8) O VI Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual teve seu encerramento no fim de semana passada. A Bahia está a comportar quatro eventos, excetuando os mais alternativos, os mais restritos a áreas específicas. O citado Seminário, a Jornada Internacional de Guido Araújo (sempre em setembro), O Panorama Internacional Coisa de Cinema (cujo gestor é Cláudio Marques), o Festival Sala de Arte (Circuito Baianao). O mais movimentado é, sem dúvida, o Seminário, que tem como organizador Walter Lima, que, por sinal, está com um longa saindo do forno: Antonio Conselheiro, o Taumaturgo do Sertão.

9) Conta um ensaísta italiano de cinema (cujo nome neste momento não me vem à memória) que, ao chegar a Paris em novembro de 1960, encontrou três obras-primas simultaneamente em cartaz: A aventura (L’Avventura), de Michelangelo Antonioni, A doce vida (La dolce vita), de Federico Fellini, e Rocco e seus irmãos (Rocco i suoi fratelli), de Luchino Visconti. Que outra época da história do cinema se poderia encontrar assim três filmes fundamentais em lançamentos simultâneos? Não está errado quem diz que da segunda metade dos anos 50 para os inícios dos anos 60 há uma espécie de efervescência criativa sem precedentes no itinerário histórico da arte do filme. Seria, esta época, o Século de Péricles do cinema.

10) Os três filmes citados se encontram disponíveis e já lançados em DVD. Vê-los, é uma obrigação de todo cinéfilo que se preze. Vê-los e revê-los. Sempre.
Publicado no Terra Magazine em 03 de agosto de 2010.

Um comentário:

Luiz Mario disse...

Caro Setaro,
essa estética do videoclip também assassinou a obra-prima de José Cândido de Carvalho, "O Coronel e o Lobisomem" que no cinema virou um amontoadao de cenas e efeitos especiais primários. E se não houver protestos, outros assassinatos serão cometidos pela Globo Filmes.