Antonio Conselheiro, taumaturgo do sertão, de José Walter Lima, já é uma realidade. Exibido para uma seleta platéia de poucas almas, o longa já está pronto para exibição. Publico aqui a leitura que fez o cineasta e pesquisador José Umberto. O título do artigo é o que encima este post.
"O sertão vira cinema: quando bate na tela Antônio Conselheiro, taumaturgo do sertão de José Walter Lima. Um filme que invade a veia de sangue e faz sua âncora na praia do coração. O cineasta opta pelo ensaio. A ficcionalização da circunstância histórica é o emblema cuja linguagem se inclina ao plano mítico. E aí a perspectiva do real ganha contornos elípticos de montagem de atração e seus específicos sob a força telúrica da magia que nasce da cultura popular sertaneja. É o barroquismo baiano na expressão de bárbaro em sintonia pictórica com a retórica pastoril. E em sendo, também, o paroxismo da guerra patética com a couraça do misticismo: política e fé.
O cinema de José Walter Lima rompe com o glamour da sociedade de espetáculo. Para mergulhar à fundo numa anti-narrativa que desmistifica a epopéia. Nada de grandiloqüência. Importa tecer o fio das contradições históricas sem recorrer à retórica vazia. Mas sim percorrer o épico-didático similar à espontaneidade da poética de cordel. O mito popular originando-se de um imaginário com o corolário direto da geografia da fome. Num ritmo cinematográfico de abundância metafórica gerada no grito da terra. Uma sinfonia de imagens dodecafônicas brotada na autenticidade do conflito coletivo: a origem do regime republicano sob a sombra em negativo de genocídio.
Um cinema de sensibilidade, à flor da pele. Uma linguagem que não racionaliza o caos social. Nem silencia diante da injustiça. Antônio Conselheiro, taumaturgo do sertão decide-se pela denúncia sem a deselegância do panfleto. Por que acredita no cinema de poesia. José Walter Lima se inquieta com a câmera em espasmo, com uma arquitetura de palavras, com os cortes melódicos, com a sonoridade plástica dum sertão que rompe a moldura da tela cinematográfica. Há qualquer explosão inconformista/instintivo-criadora que aponta para além do horizonte em brasa. Uma forma artística gestada no desejo de expandir o real. E alcançar a fantasmagoria hiperbólica de uma civilização incompleta. De uma comunidade sertaneja incompreendida. De uma vergonha nacional que não se apaga nem com fogo e ferro tampouco com água.
A carpintaria do movimento
Um cinema que só se apreende pela insuperável roda da paixão. Numa sede de comunicar/dialogar sob o signo da iluminação. Onde cada fotograma obedece à alquimia da imaginação como propulsora construtivista. A elaboração da matriz vai à fonte histórico-literária, sobretudo alicerçada no verbo numinoso de Euclides da Cunha e na arqueológica verve ibérica/armorial dos versos cordelescos, para em seguida estruturar-se na carpintaria rítmica da montagem vibratória. E é a partir desse princípio estético de associações, superposições, sinestesias e embates de signos que o filme baiano de José Walter Lima se afirma na muralística dos 24 quadros por segundo. Enquanto o espectador vai sendo tomado pela personalidade mítica do Conselheiro de Canudos (admiravelmente encarnado pelo saudoso ator Carlos Petrovich, numa interpretação que eu diria científico-sentimental insuperável do taumaturgo cearense que sintetiza as perplexidades do oprimido). Esse itinerário cinematográfico exprime a dimensão do sofrimento pautada no êxtase da catarse. Quando então a dor humana recebe a clarividência da purificação: aquela senda incomensurável do “forte” de espírito. O risco fosforescente da História como memória física e como presença da fé. São camadas heróicas, traumáticas e sublimes transubstanciadas na velocidade tempo-espacial do cinema. O lirismo das individualidades e o trágico do coletivo elaborados na alquimia artística primada na fidelidade ao passado com vistas à consciência do presente. Embora se destaque a energia telúrica de um povo que vibra na nervura da caatinga.
O filme apalpa a ferida. Estabelece-se o grau do trauma. O escritor amadurece no front. A política se alimenta da demência ideológica. O militar burocrático-técnico admite a derrota diante da guerrilha ecológica. O sertanejo revela a sua face oculta por trás de uma pirâmide de cactos. O regionalismo desvela o sincretismo pancontinental. E o Brasil se defronta com o abismo. Pois a morte não salva. E então os fantasmas desfilam na tela com a granulação pictórica da fotografia de Vito Diniz que é subliminar da contextualização do conflito civilizatório. Nada de espetacularização. José Walter Lima assume o despojamento da deslinearidade crítica como suporte do autêntico. Rasga-se desse modo o véu do pastiche grotesco em favor da expressão da paisagem autóctone que se elastece brandamente entre a foto de grão e a foto dourada de Pedro Semanovschi. Com o reforço de uma postura de humildade. Num gestual de solidariedade que transcende ao patamar ético.
Um cinema, portanto, comprometido com a alteridade. Já que o Cinema é o Outro.
Vê-se na diferença o respeito ao princípio de igualdade. Sendo Canudos a cidadela de um aceno à integridade: o símbolo da resistência até a última gota de sangue no solo seco e lascado pela ausência da chuva. Antônio Conselheiro, taumaturgo do sertão de José Walter Lima resgata o código de honra de uma comunidade camponesa que soube defender sua fronteira com o pathos do destemor. E o seu discurso evangélico de couro cru, incrustado em hierática autodeterminação e vertical autodisciplina moral, ainda se constitui num desafio à nossa compreensão plena. Persiste um quê de vácuo no significante de sua gestalt analfabeta. Pois o seu estilo de “luta” deixa várias lacunas de dúvida e interrogação. E o filme enfatiza esse mistério, embora sinalize para a nossa cumplicidade diante dos erros acumulados. Canudos insiste com a mácula ou nódoa de caju na alma. Com o desencanto. E a vergonha pelo massacre com degola: o cinema é testemunha.
A fábula do vulcão
A práxis da profecia justaposta à montagem de fotogramas exacerbados. O milenarismo onírico equilibrado na câmera de raiz. Fato dialético paralelo à fenomenologia social. Daí que a linguagem do filme de José Walter Lima embala-se pelo prisma da expansão, na amplidão do universo. Flagrando o ritmo cósmico na latitude do nacional-popular. Numa reflexão, numa respiração, numa transpiração e numa intuição fílmicas aonde se possibilite atingir o núcleo da conflagração do arcaísmo redentor de um cristianismo catecúmeno áspero. Jogo de pontos de vista: o taumaturgo e o cineasta se defrontam em ações simultâneas. Superando-se a subjetividade para o ingresso no macrocosmo do arquétipo. Um vôo rasante na intemporalidade que pinta as rebarbas do alvorecer transcendental da fábula tosca. Com uma energia entrópica que brota do vulcão da coletividade desejante. Esse fogo fátuo incondicional na iminência do êxtase místico. Ou a crescente ânsia da independência em correspondência ao ímpeto sagrado da salvação. São circunstâncias em ebulição contínua: o samsara em transe.
E o cinema, que também é movimento permanente, registra com acuidade o lance meteórico desse peregrino solitário que arrebata a multidão assombrada. Num magnetismo de massa que oscila da exaltação irracional à depressão neurastênica. Num crescendo de confronto entre o sertão e a praia. Ao passo que a visão afasta-se do litoral de coqueiros e se embrenha no interior inóspito de vegetação rala. Desloca-se o eixo em panorâmica cinematográfica que busca frisar o campo inusitado. Enquadra-se então a antiga luminosidade abrupta deixada no céu pelo impacto tenebroso do meteorito de Bendengó na caatinga. Somos envolvidos nessa dinâmica que exige a construção de uma nova linguagem inspirada nos eventos inesperados e insuspeitos. Uma câmera no sertão e todo o sentimento do mundo. Para uma tela que se vislumbra.
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