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28 fevereiro 2010

A estética da tesourinha

A estética do videoclipe, que, como metástase, invade a indústria cultural cinematográfica, está a destruir a linguagem fílmica. Os filmes são fragmentados, picotados, como se uma máquina de costura fosse a montadora das películas, a destruir, com isso, o clima, a ambientação, a durée - leia-se conceito de duração. Admite-se tal velocidade para o videoclipe como tal, mas quando a sua estética se expande para a dramaturgia cinematográfica vê-se, neste caso, um perigo real e imediato para o cinema. Os grandes cineastas sempre tiveram em mente o conceito de duração que proporciona o clima, o envolvimento e, neste, a instalação do poder de convencimento capaz de tornar o espectador um cúmplice do espetáculo.

Acontece que a nova geração, a do audiovisual, perdeu, por causa da asfixia proporcionada pela indústria cultural, a capacidade de contemplar e, sem contemplar, não existe possibilidade de se adentrar na coisa para a conhecer. Tudo se passa muito rápido, as tomadas se sucedem em questão de segundos, e a maioria dos filmes contemporâneos redunda na nulidade. A estética do videoclipe incorporada ao espetáculo cinematográfico parece uma peste endêmica a assolar os produtos oriundos da indústria cultural de Hollywood.


É por isso que, quando surge um filme como As ervas daninhas (Les herbes folles) de Alain Resnais, o melhor filme de 2009 e impossível o aparecimento de outro que se lhe possa comparar), a sensação é de algo diferente, de uma obra que passa uma emoção e uma reflexão, com clima e eficiência dramática, que seriam impossíveis dentro da estética da tesourinha ou da máquina de costura.

Sofre, com isso, a linguagem cinematográfica, que, com a incorporação da estética do videoclipe ao espetáculo cinematográfico, se encontra num processo de marcha-a-ré. É impossível se assistir a um filme, atualmente, com o maneirismo demencial de dar ao espectador apenas alguns segundos de uma tomada. Viciada, a nova geração não mais aceita um filme normal, com a durée controlada e, por desvio, tende a considerá-lo um filme lento e chato - e não se está a falar aqui de obras realizadas em planos sequenciais, mas de películas nas quais o realizador concebe a duração dentro dos padrões normais de acompanhamento da atenção. Kubrick, neste particular, é um mestre no saber dimensionar o conceito de duração.


A síndrome matriz, antes de fornecer algo de novo e interessante, estabeleceu um ritmo e um padrão capazes de pôr o prazer de se ir ao cinema por água abaixo. Como se já não bastasse a instauração dos efeitos especiais como conditio sine qua non do sucesso comercial. E, neste particular, existe um culpado: George Lucas, em 1977, com seu Guerra nas estrelas (Star Wars) deu o ponto de partida para o alucinógeno audiovisual. A fórmula se multiplicou, instalando, com isso, um filão.

Se o cinema hollywoodiano atual é um cinema dirigido por executivos estranhos ao assunto (Coca-Cola, Mitsubichi, Sony, etc), no passado, entretanto, as coisas eram diferentes. Existiam os grandes estúdios (que foram fundidos com suas características totalmente desaparecidas), regidos por chefões que, poderosos, apesar da ânsia do lucro, gostavam e entendiam de cinema (Harry Cohn, da Columbia, Jack Warner, da Warner, Louis B. Mayer, da Metro, David Selznick...).


A planilha da produção, hoje, é uma linha de montagem como uma fábrica de salsichas: tantos filmes de ação, tantos filmes de monstros e alienígenas, e por aí vai. Os efeitos especiais se sobrepuseram em detrimento da construção psicológica dos personagens, da estruturação destes como pessoas de carne e osso. Vê-se marionetes e títeres, a correr dos perigos, a se desvencilhar dos obstáculos, mas, nunca, personagens com poder de convencimento e envolvimento. É verdade que há um Clint Eastwood para salvar o pobre cinéfilo, e, para se ser sincero, mais alguns, como Scorsese, os fratelli Coen, William Friedklin, Paul Thomas Anderson, Robert Zemeckis, Lars Von Triers, Wong Kar-wai, Sidney Lumet, Claude Chabrol, Michael Haneke, David Fincher, Tarantino et caterva.


O cinéfilo de antigamente se transformou em mero consumidor. Ver filmes virou sinônimo de comer pipocas e se abastecer, até o afrontamento do estomago, de hambúrgueres, refrigerantes post-mix de 750 ml, guloseimas a perder de vista. Os exibidores revelaram que os complexos Multiplex tiram maior renda com a venda de fast-food do que com os ingressos propriamente ditos. Quem quiser uma prova basta dar uma olhada em sessão noturna de dia de semana, excetuando-se as da quarta cujos ingressos são mais baratos.

E para coroar a decadência do cinema contemporâneo - pelo menos o cinema que se oferece na bandeja do circuito - surgiu a prática odiosa da tesourinha, isto quer dizer: a introdução da estética do videoclipe na narrativa cinematográfica.

As tomadas rápidas, a insistência da ação contínua e a velocidade excessiva imprimida ao ritmo do filme não deixam margem à respiração e à contemplação. E contrariamente aos filmes dos grandes mestres, que sabiam dosar os momentos fortes e os momentos fracos, nas películas atuais praticamente só existem os primeiros. Não há pausas, necessárias, que preparam o espectador para o clímax. Pena que assim seja, pois os amantes do bom cinema estão se afastando das salas de projeção e se recolhendo ao conforto caseiro para ver filmes de sua preferência em DVD. A oferta destes está excelente. Há filmes para todos os gostos. E não se tem que suportar os celulares vazios, as pipocas em mandíbulas alheias, as conversinhas de débeis mentais, a ambiência, enfim, de um inferno.


Os aborrecentes que vão ao cinema, além de aborrecer aqueles que gostam da chamada sétima arte, se tornaram verdadeiros vândalos. Comer em cinema deveria ser proibido. Não se faz isso com o cigarro por causa da paranóia antitabagista que assolou a politiquice correta?


5 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Você bem definiu ao dizer que o videoclipe tem seu valor como tal; Mas aplicado ao cinema virou o que virou: um desastre visual e sensitivo.
Mas o que fazer?
Será que fora os tradicionais realizadores vamos ter um segmento mais de acordo com a proposta cinematográfica.
Eles estão a envelhecer... Vão acabar!
Ou será que nós também não estamos ficando velhos? Claro que sim, mas que a coisa tá feia tá.

CHICO VIVAS disse...

Vi, há alguns dias, na TV, uma cerimônia (muito sem-cerimônia) de casamento, aqui mesmo no Brasil, realizada...num cinema: era o desejo dos noivos - e olhe que, propositadamente, não falei em "fantasia", porque isso talvez até tornasse mais compreensível a "cena".
Os convidados eram recepcionados com refrigerante e pipoca. Isso seria até original, não fosse, provavelmente, haja vista a presença de TV, o simples desejo que aparecer, fazendo do cinema (longe de um lugar santo - ainda bem) mais uma banalidade, como você mesmo diz, um elemento a mais na obrigação de consumir, consumir, seja lá o que for. Cinema, filmes, pipoca, refrigerante, cerimoniais de casamento...

Filipe disse...

Professor, este texto deveria ser transformado em um verdadeiro ensaio. Mesmo sendo um espectador contemporâneo, concordo com suas observações e elas podem ser facilmente constatadas nas produções que mais agradam ao público de hoje em dia. Creio que o especator atual tornou-se um mal educado cimetagráfico devido à oferta de filmes da grande indústria. Cabe a nós, nos aprofundarmos na estética dessa expressão artística para entender melhor a linguagem cinematográfica. Mas nem todos parecem ter essa disposição...
Um abraço,
Filipe Dunham

André Setaro disse...

Jonga, Filipe, Chico,

Se antes meu maior prazer era ir ao cinema, atualmente uma ida a uma sala exibidora se constitui num verdadeiro inferno. Na tela, o filme todo picotado, e na platéia a apatia generalizada, as conversinhas, os celulares a tocar, uma algazarra que impede a contemplação do filme. Noutro dia, um pseudocinéfilo me disse: "Mas sempre foi assim!" Claro que não. Sou de uma época, de um tempo, em que o silêncio era a tônica do comportamento do público. Ria-se nas horas certas, emocionava-se nos momentos exatos, enfim, o cinema irradiava uma emoção que não existe mais nestes dias cambaleantes e ditos pós-modernos.

Demofilo Fidani disse...

Infelizmente o quadro é desanimador mesmo, sr. Setaro. Tão devastador para o cinema contemporâneo quanto a edição e montagem alucinada das imagens é o fato de que hoje em dia poucos cineastas saberem enquadrar e compor quadros equilibrados em cada fotograma. Um genio meio subestimado nesse quesito é o deslocado John Carpenter (basta ver pérolas como The Fog, Fuga de Nova Yorque e Enigma de Outro mundo, para se constatar isso). Mas, enfim. Quanto à selvageria e insensibilidade das novas platéias isso é geral. Quando vi no cinema Guerra ao Terror fiquei pasmo com uns imbecis dando risadas em cenas tensas ou quando o homem-bomba iraquiano explodiu! Incrível. Essas coisas me desanimam cada vez mais sair de casa pra ver um filme...