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30 março 2009

Une femme est une femme

Segundo longa metragem de Jean-Luc Godard, que se sucede a Acossado (A bout de souffle, 1959), que detonou a Nouvelle Vague e traumatizou duramente o cinema francês contemporâneo, Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 1961), é um filme menos conhecido do realizador, mas uma de suas películas mais engraçadas, espirituosas, cuja feitura denota o frescor da época, de um existencialismo que se vivia nas ruas de Paris cheias de idealismo e romantismo. Não é um musical, como se anunciou, e como muita gente pensou: é, simplesmente, uma comédia romântica ao avesso, que subverte os clichês do gênero inteligentemente – não como agora em que a subversão do clichê já virou gasto lugar-comum. E tem Anna Karina, que, na época, companheira de Godard, revelava-se uma atriz encantadora.

Une femme est une femme foi exibido em cópia na bitola 16mm pela primeira vez em Salvador quando da mostra Godard, que ocorreu em julho de 2003 na Sala Walter da Silveira. Os filmes do cineasta foram aqui lançados na década de 60, a maioria no cine Capri – que se incendiou em 1980 e ficava no Largo 2 de Julho – e distribuídos pela Franco-Brasileira, mas, não se sabe a razão, Uma mulher é uma mulher permaneceu inédito.

Há uma clara referência ao cinema clássico americano e, numa determinada cena, Anna Karina diz a Jean-Paul Belmondo que gostaria de estar num musical de Vincente Minnelli, ao lado de Gene Kelly e Bob Fosse. O personagem de Belmondo se chama Alfred Lubitsch – referência explícita ao mestre da comédia sofisticada Ernst Lubitsch. E num determinado momento, há uma citação de Tirez sur le pianiste, filme de François Truffaut, colega de Godard na Nouvelle Vague e na revista Cahiers du cinema. O próprio Belmondo, principal intérprete de Acossado, de repente, diz que não tem tempo porque não pode perder Acossado. E Jeanne Moreau, musa da Nouvelle Vague, faz uma pequena ponta em pé num bar onde Belmondo toma um drink.

A comédia romântica clássica é subvertida, porém em termos de poesia e metalinguagem. A montagem sincopada, de tomadas rápidas, é repetida aqui. Logo no início, quando Anna Karina se dirige ao cabaré onde é estrela de strip-tease, ela passeia pelas ruas de Paris e a partitura de Michel Legrand – de grande beleza – é retirada e depois recolocada. Godard, também em outros momentos, retira o áudio e faz com que os personagens se dirijam aos espectadores. Quando Belmondo vê-se rejeitado por Karina, ele fala ao público: “Ela não me quer!” Claro que o filme deve ser situado dentro de um contexto histórico-cinematográfico, quando a desmistificação do espetáculo era uma novidade. O cinema perdeu, definitivamente, um certo encanto, uma certa ingenuidade. Wim Wenders, num depoimento para Janela da alma, de João Jardim e Walter Carvalho, afirma que o cinema contemporâneo não oferece margem para a imaginação, porque tudo vem muito pronto, com tudo já dito.

Em cinemascope, colorido, a iluminação de Roul Coutard – diretor de fotografia preferencial de Godard – contribui para criar o clima, acentuando tonalidades, ressaltando matizes que se introduzem no tecido dramatúrgico. As sequências seguem um ritmo sincopado, com repetições de gestos, de movimentos, que seriam uma das marcas registradas do autor. E o que se poderia chamar de história se dilui na mise-en-scène a demonstrar que um filme verdadeiro é a expressão de um estilo, estabelecendo-se pela maneira de o cineasta articular os elementos da linguagem cinematográfica.

Karina é uma strip que mora com Jean-Claude Brialy enquanto Jean-Paul Belmondo lhe faz a corte diária. Ela tem uma idéia fixa: ter um filho, mas seu companheiro parece desinteressado em lhe oferecer o presente. Chateada, vai procurar Belmondo, e, no apartamento deste, dorme com ele. Mas volta à sua morada com Brialy e lhe conta o acontecido. Brialy, então, tem, com ela, uma relação carnal. E o filho de quem será? No final, ele lhe chama de infame, mas ela responde: “Je ne suis pas infame, je suis seulement une femme”. Simples e grandioso.

Revi Une femme est une femme há alguns anos no Telecine Classic, quando este não era Cult e respeitava sempre o formato original das películas exibidas.

O cinema, aqui, é a expressão da mise-en-scène.

4 comentários:

Andreia Santana disse...

Revi "Je vous salue marie" este fim de semana. Lembrei muito das suas aulas...

André Setaro disse...

Cara Andreia,
Lembro-me muito de você, ainda que não lhe veja há anos, principalmente de seu belo trabalho sobre o mestre Alfred Hitchcock e de uma fita em VHS na qual estão editados alguns dos melhores momentos dessa sumidade cinematográfica.

Marcelo Miranda disse...

Setaro, este Godard saiu em DVD no Brasil pela famigerada Continental (ou Silver Screen, dá no mesmo). Grande oportunidade de tê-lo em casa! Abraços.

André Setaro disse...

Grato. Vou procurá-lo com a pressa que corresponde à importância do filme.