Seguidores

30 novembro 2008

Cinema Baiano (7): "Barravento" por Ely Azeredo

Grande crítico brasileiro, que pontificou por muitos anos no Jornal do Brasil, Ely Azeredo acaba de completar 50 anos de colunismo cinematográfico. No mesmo jornal, escrevia José Carlos Avellar e era interessante comparar as duas opiniões sempre divergentes a respeito da arte do filme. Ely era um autêntico antípoda de Avellar. O fato é que tinha um estilo muito apurado, escrevia muito bem (poucos os críticos no Brasil que têm uma escrita tão perfeita). Bem, mas no capítulo de hoje sobre o cinema baiano, resolvi transcrever um artigo de Ely Azeredo sobre Barravento, que foi publicado originariamente na Revista do Cinema. Ele chama Oscar Santana de Osmar. E vamos logo abrindo as devidas aspas:

"Os artífices do Cinema Novo gozaram de uma dádiva divina: a liberdade de criação. Entre a tiragem da primeira cópia e o lançamento, a Censura podia fazer estragos, mas o mesmo fenômeno atormentou cineastas em todos os centros produtores. Já no longa-metragem inaugural do movimento, "Barravento", Glauber Rocha fez o que bem entendeu, apesar do desafio de recriar uma obra concebida e iniciada por outro – Luiz Paulino dos Santos, defenestrado no meio de uma novela de conflitos que teve diversas versões.
A personalidade e a febre criadora de Glauber ainda são esboços na tessitura de "Barravento". Mas é possível entrever no filme a trajetória ao mesmo tempo agressiva e terna, engajada e anárquica, anti-religiosa e mística do visionário de Vitória da Conquista. Ele viveu na contradição – e fez dela uma de suas marcas pessoais.

Para a Bahia, tão ciosa de sua cultura, a questão do cinema chegava a ser embaraçosa. Sempre se entregando como uma starlet aos cinematografistas estrangeiros, não produziu um longa até a segunda metade da década de 1950. Os curtas eram geralmente de encomenda e os cinejornais não podiam ir longe sem verbas de autoridades ou comerciantes.
O pioneiro mais expressivo da Bahia, o documentarista Alexandre Robatto Filho, atuante desde os anos 30, deu o melhor de si em filmes sobre a comunidade de pescadores da Praia de Buraquinho, perto de Itapoã. Os curtas, vistos no Cine Guarani (depois Cine Glauber Rocha), certamente levaram alguma inspiração aos dois "Barraventos" – o de Luiz Paulino (abortado) e o de Glauber – que vamos chamar de "Barravento 1" e "Barravento 2". Não era coisa de louco imaginar uma produção regular de longas com sede em Salvador. Já no período silencioso, houve ciclos cinematográficos notáveis na Amazônia, no Recife, na mineira Cataguases, no interior de São Paulo, no Rio Grande do Sul; fazia-se cinema de ficção em uma dezena de cidades fora do eixo Rio-São Paulo. Glauber chiava. Aparecendo como crítico de cinema aos 13 anos de idade, depois fazendo um pouco de tudo no jornalismo, cobrador de uma renascença cultural que seu estado estaria devendo ao país, intrometia-se nas rodas literárias, no teatro, nas discussões políticas. Sem procuração passada, era um vigilante-vinte-quatro-horas dos brios baianos.

"Atenção, Bahia! Cuidado com os aventureiros que vêm fazer cinema!" Assim clamou no rádio ao saber que o então desconhecido Roberto Pires, sem um mísero press-release, estava "fazendo um filme baiano" ("Redenção"). A fúria só durou até o contato entre os dois, quando Glauber se prontificou a batalhar pela divulgação da obra.

Pires (1934-2001), nascido ali mesmo em Salvador, trabalhava de dia numa ótica e filmava nas horas vagas. Geralmente perdia dinheiro realizando curtas e ganhava com matérias patrocinadas para cinejornais. "Redenção", policial com toques de melodrama, era uma tentativa de profissionalismo. Para filmá-lo, Pires acoplou à câmera um invento seu, o Igluscope, processo anamórfico da família do Cinemascope. A produção, batalhada de 1955 a 1959, naufragou nas bilheterias. Mas o quixotismo de Roberto Pires deflagrou o ciclo baiano de longa-metragem, vigoroso entre 1960 e 1963.

Para produzir "Barravento", um grupo híbrido se reuniu sob o selo da Iglu Filmes: Glauber, Roberto Pires, o fotógrafo Osmar Santana, os fazendeiros Braga Neto e Élio Lima, e o cinéfilo Rex Schindler, fundador do Teatro do Estudante e empresário do ramo imobiliário. Certamente com o dedo de Schindler, fizeram circular um folheto sobre a abordagem das desigualdades sociais no filme em projeto, afirmando que "a nossa obrigação é lugar para que tudo seja tão firme e tão altaneiro como o Elevador Lacerda"

Rex foi o principal viabilizador da produção. Para virar sócio, Glauber deu sua primeira demonstração de habilidade política, obtendo do governador Juracy Magalhães fatias de uma verba destinada a obras de assistência social. A informação é do amigo e biógrafo do cineasta, João Carlos Teixeira Gomes. "Esse dinheiro provinha de uma contribuição mensal que os bicheiros da Bahia eram obrigados a fazer com parte dos lucros do jogo do bicho, numa decisão que custou severas críticas ao governador, mas que ele, irredutível, manteve".
Em setembro de 1960, um Glauber eufórico (em carta a Paulo César Saraceni, cinemanovista então festejado pelo curta "Arraial do Cabo", também de Mário Carneiro) proclamava "tudo bem em matéria de "Barravento", que já está sendo rodado com Paulino na direção. Paulino vai bem e animado (...)". No mês seguinte não era mais segredo o surto de conflitos internos que culminou com a demissão da atriz principal, Sônia Pereira dos Santos e, três dias depois, com a saída de seu apaixonado diretor. Glauber, que fora o cupido no romance de Luiz Paulino e Sônia, gerenciou o inexorável corte da atriz, atribuído aos produtores.

Os depoimentos colhidos por José Gatti para sua tese de mestrado "Barravento: a Estréia de Glauber", são indispensáveis para a interpretação da história. Antonio Pitanga, convidado por Luiz Paulino dos Santos para viver o malandro Firmino, o protagonista, aponta dois estopins na explosão: um conflito de idéias (o produtor Schindler não se conformava com a linha mística do roteiro original de Paulino); e um conflito pessoal/profissional (diretor e atriz versus exigências da produção e do mentor intelectual, Glauber Rocha). Embora torcedor de Glauber, Pitanga destaca a importância do roteiro original, que mostra "a cultura afro através do candomblé, da religião".

No enfoque de Luiz Paulino, o pivô do drama é a jovem branca que, por promessa feita a Iemanjá pelo pai pescador, não poderia casar. A moça não resiste a uma paixão. E acontece o barravento ("profunda mudança no mar e na terra"), com seu cortejo de tragédias. Paulino defende o "sentido revolucionário" de seu título

"Barravento", mas diz que "não queria jamais um trabalho panfletário". Ao contrário de Rex Schindler, que o pressionava para obscurecer o enfoque místico e exibir a religião como fator de "alienação" e "passividade". Ao assumir o roteiro (que alterou) e a direção, Glauber fez declaradamente "um filme contra os candomblés, contra os mitos tradicionais, contra o homem que busca na religião o apoio e a esperança".

Mais de 40 anos depois, indagações sobre a troca de comando podem parecer irrelevantes, mas têm um papel irrecusável na compreensão do fenômeno "Barravento 2"

Quando o filme "parou", Glauber teria sugerido para a direção, entre outros, três Robertos: Santos, Farias e Pires. Roberto Pires recusou de imediato.

Associado ao projeto, Pires dera as primeiras lições de câmera a Glauber, quando lhe emprestara uma Arriflex para o curta "O Pátio". "Inclusive isso é bom que eu diga: fui eu que obriguei Glauber a dirigir o filme. Eu o responsabilizei, porque estava me sentindo inseguro. Na época, o cinejornal mal dava para manter a firma funcionando".

Nos anos 70, Glauber usou a expressão "golpe de Estado" ao falar da demissão de Luiz Paulino dos Santos, dramatizando sua atuação no que seria (digamos) o "Estado da Cultura na Bahia"... "Eu coloquei as razões do Estado acima das razões do coração. Paulino não quis assumir esse papel político e eu assumi a posição de eliminá-lo do filme. Foi uma espécie de golpe de Estado, porque se aquela produção fracassasse por inércia ou por excesso de histeria intelectual, o projeto de cinema na Bahia não ia andar. Assumi a responsabilidade de fazer o filme e me vi diante de roteiro absurdo com o qual não concordava. Refiz o roteiro e tive que enfrentar a equipe que me olhava como um usurpador do filme (...)".

Na versão glauberiana, o jovem negro Aruã, pescador "de corpo fechado", deve permanecer virgem a fim de garantir a continuidade da proteção das divindades à comunidade explorada pelo proprietário da rede. Quando este, insatisfeito, confisca a rede, Aruã enfrenta o mar violento em jangada, propiciando pesca frutífera e fé aos adoradores de Iemanjá. Firmino (Antonio Pitanga), nascido ali, mas formado na marginalidade de Salvador, volta a Buraquinho disposto a livrar sua gente das malhas do sacrifício cotidiano. Convence sua amante, Cota (Luiza Maranhão), a seduzir o "predestinado". Assim "humanizado", Aruã deixa de ser um Ulisses no ciclo dos barraventos. Cota morre. Firmino sai de cena. "Firmino é ruim, mas ele está certo" – diz Aruã. E parte para a capital, prometendo voltar para lutar pela transformação da gente negra, "ainda escrava, sem princesas isabéis".

Segundo Glauber, seu "Barravento" partia, "embora primariamente (sic) de que a religião é o ópio do povo", conforme carta do cineasta ao crítico Paulo Emílio Salles Gomes, em 1960. Nem aquele que Paulo Emílio chamou de Profeta Alado podia supor que o cinemanovismo chegaria a realizar obras como "O Amuleto de Ogum" (Nelson Pereira dos Santos) e "Anchieta, José do Brasil" (Paulo César Saraceni).

O discurso político de "Barravento 2" foi esmaecido pela impregnação mística das imagens e da própria trama. Um exemplo: Cota morre (de forma nunca esclarecida na tela) depois de induzida a profanar (seduzir) o "predestinado" Aruã. Outro: o fracasso místico de Aruã, no final, é inevitavelmente relacionado com o rompimento de seu voto de castidade.

Materialista verbalmente, Glauber evidenciou fervor místico em sua obra-prima, "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964) e não demonstrou estar livre dele no longa do adeus, o caótico "A Idade da Terra" (1980). Também cinemanovista, o cineasta Gustavo Dahl, "lendo" as imagens de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", escreveu (em carta a Glauber): "No filme, você não está suficientemente afastado nem suficientemente perto da religião. "Em "Barravento"" você acreditava, tendo vontade de não acreditar. Em "Deus-Diabo", porque você acredita menos, tua vontade de não acreditar, de te afastar é menor".

Alguns pontos recorrentes do primeiro Cinema Novo estão bem nítidos no "Barravento" definitivo: a exaltação do transgressor/marginal como fator de mudança social; o olho crítico sobre as relações de trabalho/produção; a busca de intérpretes fora dos quadros estabelecidos (há atores iniciantes no elenco-base, constituído por pescadores de Buraquinho); a hipervalorização dos cenários reais (apenas o terreiro de candomblé foi especialmente construído para o filme); a precariedade de recursos técnicos assumida, sem evasivas, pelo diretor; além do discurso anti-religioso.

"O filme foi praticamente reconstruído na montagem", disse Glauber em 1965, reconhecendo a contribuição de Nelson Pereira dos Santos, que se ofereceu para editá-lo. Nelson deu ao filme um andamento que, certamente, na época, não estava entre os dons de Glauber

Apesar de insucesso de público, "Barravento" foi importante ponta-de-lança para a política externa do Cinema Novo. O prêmio Opera Prima, conquistado no Festival de Karlovy-Vary, na então Tchecoslováquia – sob as bênçãos decisivas do escritor Alberto Moravia – seria um hors-d"oeuvres para o apetite de estima internacional do cinemanovismo.

Nota — No estudo "A Ideologia de Barravento", Maria do Socorro Silva Carvalho considera, em sintonia com a pesquisa-tese de Gatti, que o filme "propõe uma visão redutora do Candomblé" ao considerá-lo instrumento de alienação, preferindo ignorar seu papel na identidade cultural dos afro-brasileiros."

Nenhum comentário: