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30 março 2008

O professor aloprado

A versão de O Professor Aloprado (The Nutty Professor), com o histriônico Eddie Murphy, revela a distância quilométrica existente entre a comediografia americana contemporânea e a do pretérito. Enquanto nos dias atuais inexiste uma, por assim dizer, poética do gag, a haver, isto sim, uma exacerbação das situações num speed escatológico ou na procura nerd do ridículo, mas, sempre, sem nenhuma inventividade cinematográfica – Vovó zona, entre outras, as comédias de tempos idos evocam o riso pela imaginação criadora, quer do ponto de vista do Ser, quer do ponto de vista da narrativa fílmica (o elo fundamental sintático). Assim, faz-se necessário, aqui, relembrar, com urgência urgentíssima, a genialidade de Jerry Lewis (e a aproveitar o gancho de pesquisa recente feita neste blog), um dos maiores comediantes do cinema de todos os tempos, e de seu singular O Professor Aloprado (1963), obra-prima, sem dúvida, não só da comédia mas do cinema. Artista criador, revolucionário mesmo na concepção de uma mise-en-scène originalíssima, Jerry Lewis é um poeta ou, como disse Jean-Luc Godard, "o mais progressista cineasta do cinema americano dos anos 60".
Versão (ou inversão?) de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, O Professor Aloprado conta como um pacato e modesto professor de química, feio, dentuço, desengonçado e mal ajambrado, consegue criar uma fórmula capaz de lhe impor a beleza e o charme. Apaixonado por uma de suas alunas (Stella Stevens), ele tenta conquistá-la quando toma a poção mágica e vira o charmoso Buddy Love. A fórmula, no entanto, tem duração limitada e, de repente, a criatura se transforma, aos poucos, no criador, principalmente nos momentos idílicos entre Buddy e Stella, mas ele, sabidamente, desaparece. Buddy Love provoca celeuma na escola, deixando, estupefatos e apaixonados, desde a secretária (a lewsiana Kathleen Freeman), às alunas e, até, o grave e circunspeto diretor (Del Moore). O clímax se dá no baile de formatura no momento em que Buddy, o convidado de honra, se metamorfoseia no desengonçado professor.
A inventividade de Jerry Lewis no plano da linguagem cinematográfica é imensa. Cenas brilhantes que se encontram em qualquer antologia que se preze da comediografia cinematográfica: (1) o processo de transformação do professor Kelp em Buddy Love com um extraordinário uso da cor poucas vezes observado na história da arte do filme; (2) a câmera subjetiva em lugar de Buddy, finda a metamorfose(e ainda quando o espectador não sabe do resultado), e o espanto dos transeuntes que circulam na porta da buate; (3) a seqüência do ginásio traduz com absoluta perfeição a frustração essencial do personagem lewisiano diante da mitificação esportiva norteamericana; (4) a ambigüidade estampada no close up de Stella Stevens, quando Buddy inicia os tiques diccionais de seu criador; (5) o professor a olhar e imaginar Stella na porta da sala em várias mudanças de sua indumentária; (6) depois da noite perdida, e de ressaca, o professor, pálido, na aula, ouvindo, desesperado, o ruído exagerado do giz riscando o quadro, da aluna que assoa o nariz, etc, numa conjugação funcional da imagem e do som; (7) toda a seqüência do baile de formatura, em especial a cena da transformação da criatura no criador; entre muitas outras.
Lewis desmistifica o espetáculo, revelando seus códigos com uma coragem inusitada para a linguagem da época. O final é de uma terrível elegância, quando os principais atores, um a um, como se estivessem num palco de teatro, agradecem enquanto seus nomes são creditados na tela. O último é Jerry Lewis que, literalmente, quebra a lente da câmera.
Este artista mal compreendido, que somente vem a receber o respeito crítico a partir do número especial que lhe dedica o sisudo Cahiers du Cinema, é o máximo representante da comicidade non sense do cinema americano posterior a 1945. Lewis parodia, com seus filmes dirigidos nos anos 60, e com singular acerto, as frustrações psicológicas do american way of life. Os seus instrumentos de análise (ou, se se quiser, o seu método) estão na utilização imaginativa da técnica do gag.
Cantor das orquestras de Jimmy Dorsey e Ted Florita, Jerry Lewis (Joseph Levitch, New Jersey, 1926) forma dupla com Dean Martin em 1946, atua em televisão e rádio, e, em pouquíssimo tempo, torna-se popular coast to coast em toda a América. A dupla mais burlesca do mundo do espetáculo logo é convidada para ingressar no cinema - e isto se faz através da Paramount. Entre 1949 e 1955, quando Lewis, neste último ano, começa uma extraordinária carreira solo sob as ordens de um mestre da comédia: Frank Tashlin, que lhe inspira o timing cinematográfico e o sentido non sense das situações. Aliás, a sua separação de Dean Martin revela que o êxito da dupla radica fundamentalmente no talento cômico de Lewis. Artistas e modelos (1955), filme que assinala a sua estréia sob a direção de Tashlin, dá início a uma série de títulos que se constituem em agudas sátiras da sociedade norteamericana expostas com um estilo refinado que se aproxima algumas vezes do cartoon e das histórias em quadrinhos.É, porém, quando Jerry Lewis decide montar uma companhia independente (a Jerry Lewis Productions Inc.) que emerge o seu gênio. Desde O Mensageiro Trapalhão (The Bellboy,1960), obra de estréia, o indicativo da originalidade na arte de conceber a mise-en-scène está presente. Neste filme, não há progressão dramática mas uma sucessão de sketchs, assim como Mocinho encrenqueiro (The errand boy, 1961).
O Terror das mulheres (The ladie´s man, 1961) deslancha a sua fase de obras-primas absolutas (se é possível a um artista ter mais de uma obra-prima!). Filme que representa na obra de seu autor um inequívoco manifesto sobre a concepção da mulher e uma irrefutável fulminação do matriarcado, O Terror das mulheres é delirantemente desmistificador (a partir mesmo do cenário, uma grande mansão na qual os segredos do décor são revelados ao público).Vem O professor Aloprado em 1963 e, em seguida, O Otário (The Patsy, 1964), outra obra magistral, onde aperfeiçoa, amadurece e enriquece definitivamente o seu estilo: a crueldade que consiste em fazer rir de si próprio; a magistral utilização do showburn; o gosto do espetáculo e a vontade em revelar ao espectador o décor, o desdobramento de sua personalidade autor-ator, a explosão em personagens múltiplas,etc. Lewis continua a filmar, tem uma crise nos anos 70, mas seus maiores filmes, os geniais, estão na década de 60. Como este O Professor Aloprado. Mas não se pode esquecer, nunca, de The big mother (O fofoqueiro, 1967), entre outros.

4 comentários:

Jonga Olivieri disse...

Nem tem como comparar. Quando li o título do filme, antes mesmo de seu lançamento, à época cheguei a pensar que era um remake do filme de Lewis. Tinha tudo para ser... mas fizeram "aquilo".
Aliás, abrindo um parênteses, "A pantera cor de rosa" foi outro cuja nova versão é uma "M" mesmo.
Mas o filme de Jerry Lewis é incrível, é muito bom. A sua primeira transformação é magistral.
Como dizem os portugueses: "um filme a não perder".

Anônimo disse...

Entre as performances de Lewis não esquecer a representação da mãe no filme "O Terror das mulheres", de fazer corar qualquer discípulo de Freud e sua teoria sobre o complexo de Édipo.

Saymon Nascimento disse...

Setaro, conseguiu achar O Professor Aloprado no balaio das Americanas? Não posso nem passar por perto, para não gastar muito. Muita coisa barata.

Jonga Olivieri disse...

Faltou falar de Stella Stevens, a estonteante lourinha, que entre outras 1001 participações na tela (do cinema e da TV), estrelou episódios de "Bonanza", "Police woman", "A ilha da fantasia", as séries televisivas de Hitchcock, a versão cinematográfica do famoso personagem de Al Cap, Ferdinando (Li'l Abner), mas também "Poseidon" de 1972 e "A morte não manda recado" (1970) de Sam Peckinpah.
Uma das grandes "paixões" cinematográficas da minha vida de adolescente, fui muitas vezes para a cama com ela, e a conheço como a palma da minha mão. hehehe!!!