Saber usar a cor no cinema, com valor poético e funcionalidade dramática, é difícil. Usa-se o colorido a torto e a direito à maneira de um cartão postal. O espectador, condicionado ao filme colorido, por ignorância estatal, abomina o branco e preto, mas, infelizmente, não sabe contemplar a cor, ver, nesta, um componente de estesia. A imagem que ilustra este post não é a de um filme, mas tem uma composição cromática que me pareceu atrativa nesta conjugação de copos com líquidos de cores diversas.
Michelangelo Antonioni fez seu primeiro filme a cores na primeira metade dos anos 60, quando já cineasta consagrado. Assim como outros diretores importantes, Bergman inclusive, pensou muito antes de realizar uma obra colorida. E o fez com grande timidez em O deserto vermelho. Mas seu primeiro filme realmente colorido foi Blow up, filmado in loco na Londres dos efervescentes anos 60. Antonioni pediu autorização a prefeitura da capital da Inglaterra para poder pintar alguns quarteirões e toda a grama do parque onde se suspeita ter acontecido um assassinato. Na primeira solicitação, houve recusa, mas o realizador de L'avventura, somente por ser o cineasta da famosa trilogia composta por este, La notte, e L'eclisse, afinal conseguiu o desejado. O perfeccionismo de Antonioni em função da cor, da linguagem da cor, poder-se-ia dizer melhor, em Blow up, fê-lo impaciente e exigente, temperamental e neurótico, pois tinha medo de não se expressar adequadamente em filme colorido. E o fez, como o resultado está a mostrar, admiravelmente.
Hitchcock usa a cor com funcionalidade em Marnie aut(e em tantos outros filmes de sua autoria), quando o vermelho surge a dominar a tela quando das crises da personagem. E, a considerar que o branco também é uma cor (ou seria a anulação da cor?), o copo de leite, com a lâmpada acessa dentro dele, a acentuar a sua brancura luminosa, tem-se um admirável uso do cromático em Suspeita, do mestre, quando Cary Grant sobe uma escada em espiral para levar um copinho de leite para a sua esposa Joan Fontaine. O espectador fica em delirante suspense, a pensar que, naquele copo, há veneno.
Bernardo Bertoucci (por sinal, quando da morte de Bergman e Antonioni, que foram quase de mãos dadas para o túmulo, anunciou-se que o cinema morreu, etc e tal, a recorrer-se a alguns nomes restantes, a exemplo de Resnais, Von Triers, mas Bertololucci foi esquecido, que embora não seja nenhum Bergman ou Antonioni, é cineasta de grande expressividade) é um realizador atento à suan mise-en-sène, e procura, sempre, configurar o colorido de maneira eficiente e adequada. Dispõe de um artista da luz para ajudá-lo nesta tarefa, que é Vittorio Sttoraro. Em O último imperador, por exemplo, toda a parte em que o monarca fica no palácio, a luz é difusa, há pouca claridade, mas quando este resolve sair da prisão, e abraçar o mundo, a luz reina e as cores se avivam.
O Technicolor, por exemplo, era um processo rudimentar de apenas três cores, que apareceu pela primeira vez em 1932. Este processo de coloração fazia com que as imagens ficassem hiperrealistas, isto é, coloridas demais, as pessoas e as coisas eram, em technicolor, excessivamente luminosas e em cores. Faz pensar nas propagandas enganosas exibidas atualmente quando um sanduíche do Mac Donald's, por exemplo, na sua imagem publicitária, dá uma impressão de saber e gigantismo que não corresponde à realidade. Talvez o primeiro filme colorido com boa utilização da cor (leia-se a cor usada em função expressiva) tenha sido em O mágico de Oz, de Victor Fleming, em 1939, com a inesquecível Judy Garland (uma atriz e cantora que se pensa aqui insubstituível e única). Como citou Mariana Paiva, a cor é pensada em sua funcionalidade no desconcertante (e por vezes irritante) O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante.
4 comentários:
Muito bem focada mais essa postagem sobre a cor.
Mas o que mais me incomoda mesmo é o total descrédito que hoje têm pelo preto e branco.
O jogo de sombras, o contraste, a dramaticidade nos cenários e expressões que a película sem cor proporciona é deslumbrante.
Não consigo mesmo imaginar um "Cidadão kane" ou um "Sétimo selo" a cores. Acredito até que os realizadores teriam o cuidado de usá-las de forma adequada e rica, mas... em p&b são marcantes.
O probelma é que nos dias que correm, um filme sem cor vai deixar um cinema vazio.
Pena...
Preconceito absurdo, caro Jonga, estimulado pela indústria cultural que colocou o 'preto-e-branco' como algo destituído de força expressiva no intuito de enganar a plebe ignara já que a indústria parou de fabricar filme virgem em branco e preto (existe uma reserva mínima e o filme sem cor, hoje, custa uma fortuna, cinco vezes mais do que o com cor). Como você mesmo diz, há todo um componente artístico no filme preto-e-branco. Se a ditadura do colorido existisse, não existira o claro/escuro do expressionismo alemão. Já imaginou 'Vidas secas', de Nelson Pereira dos Santos, em cores. É um filme, por excelência, em preto-e-branco, assim como 'Kane', de Welles. Há pouco tempo, o próprio Rei Midas de Hollywood, Steven Spielberg, fez questão de filmar 'A lista de Schindler' em branco e preto.
A mostra Kenji Mizoguchi exibida na Sala Walter da Silveira, em setembro deste ano que se finda, registra a importância das películas em preto e branco. O Japão feudal e o universo feminino de cortesãs e gueixas de Mizoguchi revestem-se de uma dramaticidade em que a cor tem um papel fundamental. Nesta mostra próxima, que anuncia as obras-primas de Yasijiro Ozu, mais uma oportunidade de admirar as películas em preto e branco no écran e redescobrir os fundamentos que substanciaram a história do cinema.
Essa coisa da cor é curiosa, porque alguns atores eu não consig visualizá-los mentalmente em cores. Caso clássico: Humphrey Bogart. É como se o velho Boogie já tivesse nascido em PB...
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