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22 outubro 2007

Gosto não se discute



GOSTO de tudo que faz mal à saúde, de excentricidades, de cinema (claro!), de louras, morenas e ruivas, de andar pela praia até o Leblon, da Bahia quando era uma província e tudo se concentrava no centro histórico, do cinemascope do antigo Guarany que virou Glauber Rocha e já desapareceu, dos espelhos da sala de espera do extinto cinema Liceu, de Machado de Assis de quem sou leitor voraz, lendo e relendo sempre a sua obra completa da Aguillar, da Pousada de Cachoeira quando era administrada pelo estado, da rua Chile, de tomar cerveja a las cinco de la tarde no Restaurante e Bar Cacique, olhando a estátua do poeta na Praça Castro Alves, de tomar um cafezinho para fumar (antes do maldito enfarte ocorrido há quase um ano, mas nunca a ficar em atitude antitabagista politicamente correta), de barzinhos, de Robert Altman, de rever sempre Cidadão Kane, de Orson Welles, de todos os filmes de Alfred Hitchcock, de toda a grande literatura do século XIX, de paz e sossego, de ouvir trilhas dos mestres Miklos Rosza, Bernard Herrmann, Ennio Morricone, Max Steiner, Victor Young, David Rastkin, Georges Delerue, Michel Legrand, etc, da Bossa Nova, dos anos dourados com fixação em 1958, ano marcante que escolheria para permanecer, do sex-appeal de Melanie Griffith, da doçura de Catherine Spassk, de BB, da sensação inusitada de esperar uma namorada que se atrasa e que, com isso, exerce o seu poder sobre o outro, da atmosfera romântica, da matéria de memória - recordar é viver, dos bondes de antigamente que percorriam a velha cidade de Salvador, de andar a pé, da noite e seus mistérios, de pessoas que vivem nela, de comprar jornais e cheirá-los, de bancas de revistas, de livrarias empoeiradas, de sebos, da abertura mágica de La Dolce Vita com aquele helicóptero sobrevoando a Cidade Eterna levando consigo uma estátua de Cristo, dos pretéritos bate-papos no Café das Meninas da Rua da Ajuda, das Lojas Duas Américas e do Magazine Florenzilva, da Praça da Piedade, quando se podia ficar sentado horas e horas absorto, da imagem de Brigitte Bardot secando ao sol em ...E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, da maneira de ser de Cary Grant, de churrascarias e carnes mal passadas e sanguinolentas, da insustentável leveza do ser (mas do estado de espírito e não do livro nem do filme), de sentir medo, do teatro de Nelson Rodrigues, de Tartufo e de tudo que Molière escreveu, de Tom Jobim que é, para mim, o maior compositor brasileiro de todos os tempos, dos comentários críticos de Inácio Araújo da Folha de S. Paulo sobre cinema, dos artigos do psicanalista riograndense Rubem Alves, dos arcanos da memória que permitem buscar o tempo perdido, do talento de Merryl Streep, das comédias de Frank Tashlin, da Comédia Humana, de Honoré de Balzac, de beber no Bar Espanha em Itaparica, de viajar ao redor de minha cama e em torno de mim mesmo, de casas coloniais e suas alcovas, de túneis subterrâneos, de mistérios indecifráveis, de frio intenso de rachar os ossos se bem agasalhado e com aquecimento, do non sense, de Bergman e sua profunda compreensão da tragicidade da existência, da cidade (Rio de Janeiro) onde nasci e que a deixei, para vir morar em Salvador, em tenra idade, do prazer proporcionado por um belo filme como Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minnelli, da atmosfera desenvolvimentista e otimista dos anos JK, quando na Bahia emergiu uma efervescência pujante em todas as artes e, principalmente, no cinema, com o Ciclo Bahiano e filmes como A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, ambos de Roberto Pires, e Barravento, de Glauber Rocha, entre outros, dos grandes concertos em tempos idos na Reitoria da UFBA, do Teatro Vila Velha e do Passeio Público na década de 60, do bar Avalanche, que formou, no Canela, à rua João das Botas, uma geração de biriteiros do primeiro time - no qual me incluo, de praticar o saudável exercício de levantar copos, do cinema americano dos anos 40 e 50, a época dos grandes mestres - Hawks, Aldrich, Nicholas Ray, Frank Tashlin, Vincent Minnelli, Stanley Donen, Alfred Hitchcock, George Cukor..., da inesquecível cinematografia italiana desse mesmo período - Visconti, Fellini, Antonioni, Rossellini..., cuja produção atual é um reflexo pálido e anêmico daquela época, da maestria de Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi - seu Contos da Lua Vaga/Ugetsu Monogatari é um dos maiores filmes que já vi, Kaneto Shindo, Masaky Kobayashi, Ozu..., de Ingmar Bergman, um pensador que se utiliza do cinema como veículo de reflexão, de todo o espírito da Nouvelle Vague, do saudoso SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), de ficar olhando para os bicos dos meus sapatos, de contemplar a vida, do ócio...


NÃO GOSTO de ficar sentado na praia, excetuando-se quando sentado em barraca a tomar a geladinha, de FHC e do tucanato que deixou o Brasil sem patrimônio, do PT atual e do governo Lula, da farsa do Plano Real, dos governistas do PMDB, de telefone celular, de gente conversando na sala de exibição, pior ainda se atendendo chamadas, de pipocas sendo mastigadas por mandíbulas afoitas, de euforias despropositadas na saída de filmes asiáticos, de pseudo-cinéfilos, da mania do novo pelo novo, do desprezo pelo passado, confundindo o pretérito como nostalgia, do Shopping Iguatemi em dia de sábado, de entrar em lojas para comprar roupas ou sapatos, de livrarias que se transformaram em fast-food, que me perguntem quais são os bons filmes da semana, da erotização criminosa da infância nos programas televisivos, da dança da garrafa, de Xuxa, da exaltação futebolística, de rock da pesada, de Georges W. Bush e seu direitismo raivoso, considerando-o o pior presidente dos Estados unidos desde a sua gloriosa Independência, de comer carangueijo com martelo para ficar com as mãos todas meladas e as impressões digitais no copo da cerveja, de casas noturnas com som alto quando é impossível se manter qualquer interlocução, da estética do videoclipe aplicada à narrativa cinematográfica, de micreiros, dos oportunistas de plantão, dos chatos de galocha - mas quem gosta?, de chuva quando estou saindo, mas a adoro quando em casa ou dormindo, de burburinho, das crônicas do Macaco Simão, de pegar em coisas gordurosas, de naturebas xiitas, de fingimentos e hipocrisias, dos festivos, do industrializado Carnaval baiano, da palavra contemporaneidade, da mania de se transformar tudo em discurso, da proximidade da folia momesca, de calor, de filmes chatos metidos a obras de vanguarda, da estética da sujeira como conditio sine qua non da rebeldia com causa, de conversas no msn, salvo para tratar de algum assunto importante...
Sabem o que é a imagem postada? Um quadro de Renoir. E precisaria dizer?

8 comentários:

malemolente disse...

sempre bons seus textos!

Jonga Olivieri disse...

Um hino à vida.
Uma declaração de amor aos bons momentos.
Uma poesia sem preocupação de rimas, mas uma poesia ao que se tem de bom em recordações que o tempo não pode enterrar.
É isso aí, caro André...
Só posso acrescentar que hoje você está inspirado. Tá com a macaca.
E nos postou um texto maravilhoso, tão inesquecível quanto os momentos e lugares pelos quais passou... saudoso... repletos de uma carga humana... grande em seus pequenos momentos... pitadas... flashbacks... brisas... sorrisos... lágrimas.

André Setaro disse...

Obrigado Jonga

Anônimo disse...

Pois gosto de tudo que voce nao gosta, caro professor, e detesto a maioria do que gostas.

André Setaro disse...

É por isso Carla, por ausência absoluta de afinidades eletivas, que não posso gostar de você.

Stela Borges de Almeida disse...

Realmente, tá com a macaca. Gosto de ouvir para relembrar que em fins dos anos 60 o cinema Liceu, com seus espelhos na sala de espera, trazia Felline para suas telas, e que havia uma geração que gostava de ouvir as trilhas sonoras de seus filmes.

Anônimo disse...

Cheguei um pouco tarde neste post mas ainda a tempo de dizer AMÉM.

Christiana Fausto disse...

Conheci seu blog por indicação do Ingresia e tenho me deliciado com seus artigos. Claro q leitura homeopática, porque são todos muito densos e cheios de informação. Mas vou ficar sempre visitando e vou linká-lo (isso é língua de gente?) no meu blog. Abraço, christiana fausto