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20 março 2007

Cartas generosas



O que se segue é uma impressão logo que vi Cartas de Iwo Jima, por assim dizer, no calor da hora. Publicado no vibrante site Nacocó (http://www.nacoco.com.br), porque já com um mês de nascido, é difícil sua localização. Trago-o, no entanto, para meu blog. E, depositando-o, de qualquer forma e de qualquer maneira, ainda que perseguido pela Net, que me tirou o acesso a internet, atualizo um pouco este blog já tão perdido e desatualizado. Já telefonei 64 vezes para a Net, e sempre em sinal ocupado. Falta somente ir ao escritório, que fica muito, muito longe, no Caminho dos Infernos, quer dizer, Caminho das Árvores.


Dizer o que de Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, 2007), de Clint Eastwood? Visto no dia anterior à escrita desta, ainda estou – coisa rara de acontecer no cinema contemporâneo! – sob o impacto de sua grandeza como obra cinematográfica, que atinge, a meu ver, acentos shakespearianos em alguns momentos como naquele em que os soldados se suicidam com granadas ou na estruturação psicológica do General Tadamichi Kuribayashi, um personagem bem eastwoodiano, por sinal, com retidão ética e determinação (que tem interpretação inexcedível de Ken Watanabe). Dizer, então, que é o maior lançamento de 2007, uma obra de grande humanidade que foge à raia medíocre na qual estão lotados quase todos os filmes atuais? A indústria cultural hollywoodiana, comandada por executivos que nada têm a ver com o cinema, patrocina espetáculos que se apóiam nos efeitos especiais em detrimentos dos personagens, que ficam relegados à condição de títeres, de marionetes, de homens sem alma.

Assim, nos filmes atuais, poucos os cineastas com a estatura humanitária de Clint Eastwood, que, sobre ser um realizador que domina uma narrativa quase muscular, se destina a explicitar, com os elementos da linguagem, apenas o absolutamente necessário, mas sem, com isso, desprezar a magia do espetáculo cinematográfico. Eastwood é um realizador do essencial, mas, discípulo confesso de Sergio Leone, Don Siegel, e Howard Hawks, vê-se, em seus filmes, que utiliza mais as lições dos dois últimos, evitando o espalhafato estético do primeiro (ainda que de grande impacto e que atinge o que os antigos estetas chamavam de maravilhoso). Em Letters from Iwo Jima, cujas filmagens foram feitas imediatamente depois de A conquista da honra (Flags of our fathers), o que inspirou o cineasta foram as cartas deixadas por Kuribayashi, escritas para seus entes queridos enquanto comandava, da desértica e vulcânica ilha japonesa de Iwo Jima (e a rodagem da fita foi feita nela, in loco), a batalha que marcou a participação de seu país na Segunda Guerra Mundial. A glorificação, e a desmistificação dessa glorificação, já tinha sido objeto de Flags of our fathers, e aqui, em Letters from Iwo Jima, Eastwood pensou nos sentimentos japoneses, pois a guerra, desumana, castradora, é uma só. Os americanos, para enfatizar os esforços de guerra, fizeram alguns filmes heróicos sobre o tema, em particular Iwo Jima, o portal da glória (Sands of Iwo Jima), de Allan Dwan, quatro anos depois de findo o conflito, em 1949, com John Wayne.

A fotografia de Tom Stern procura despir o colorido para fazer emergir um matiz cinza, pois uma guerra, como disse Eastwood, não poderia ser filmada em technicolor. Stern sabe trabalhar com a luz e como se esta fosse um cinzel esculpi as sombras e os contornos dos soldados inundados pelo luar. Em alguns momentos, os enquadramentos, ainda que cinzentos, dão a impressão de quadros expressionistas. Este trabalho da luz está de acordo com as solicitações do drama que está sendo contado. Tudo funciona, em Letters from Iwo Jima, como um conjunto harmônico em função da explicitação temática como de hábito em toda obra fílmica que se queira expressiva. A grande maioria dos filmes, no entanto, privilegia a fábula (entendida esta como a trama, o enredo, a história). Clint Eastwood fala da História sem, contudo, ficar preso aos grilhões da história. Neste particular, além da fotografia, há também o uso do som dolby para acentuar o impacto desumano da guerra como elemento de destruição e perda. De qualquer forma, as cenas de batalha, nas trincheiras ou pelos aviões, são filmadas com um rigor extremado para causar impacto.

Baseado nos livros epistolares Picture Letters from Commander in Chief, de Kuribayashi (o general, comandante chefe), e de
Tsuyoko Yoshido (o soldado que era padeiro antes de entrar na guerra, e foi o responsável pela permanência das cartas de seu chefe, quando as enterra para ser descobertas na posteridade), o filme de Clint Eastwood tem um claro objetivo ao mostrar a amargura da vitória em A conquista da honra (lembrando, em certos aspectos, Baionetas caladas/Fixed bayonets, de Samuel Fuller, 1951, com Richard Basehart, Gene Evans). E o toque de humanidade se insinua a partir mesmo das primeiras tomadas, com a chegada de Kuribayashi a Iwo Jima, quando, ainda no avião, recorda-se da sua casa, pedindo desculpas por ter saído sem ter limpado o chão da cozinha. O veio condutor do espetáculo que se vai armando, nas frias trincheiras do combate, tem como leitmotiv as cartas do general e do soldado. Elas, em flash-backs, em seqüências cuja fotografia sai de suas cinzas para adquirir um colorido mais intenso embora discreto, conduzem o espectador a certos fatos pretéritos que podem definir melhor as personalidades dos protagonistas. Como o momento no qual o soldado é surpreendido, no aconchego de seu lar, ao lado de sua mulher, grávida, pelos soldados que vêem convoca-lo para a guerra. Ou na seqüência em que um outro salva um cão da morte anunciada e depois, descoberto, vem a perder a sua graduação, seqüência que lembra o Akira Kurosawa de Dodeskaden ou de tantos outros que realizou com sua particular maneira de ver o homem e as coisas. Acredito, mas fica na mera suposição, que Clint Eastwood, nesta seqüência, tenha querido homenagear o mestre japonês.

Errou quem disse que o conceito de honra dos nipônicos não fora bem compreendido e mostrado por Clint Eastwood em Letters from Iwo Jima. Há, sim, no filme, uma certa demonstração de uma cultura feudal de samurai que ainda se impregnava pelos soldados japoneses. Um dos representantes dessa cultura está no personagem que tenta, por duas vezes, matar o soldado-padeiro, a segunda vez tentando cortar-lhe a cabeça, quando é dominado por Koribayashi. Não é certo dizer, como li em uma crítica ao filme, que este se tornara mais brando e consciente por ter passado um período de estudos nos Estados Unidos. O flash-back rememorativo do jantar em sua homenagem, quando recebe de presente um revólver – signo mais que presente em todo o transcorrer da narrativa – é apenas indicativo e não demonstrativo, indicativo do choque entre personalidades de culturas diversas. Eastwood, como disse bem Inácio Araújo em relação a Cartas de Iwo Jima, não é realizador de chutar cachorro morto.

Nenhum outro filme que concorreu ao Oscar se compara a Cartas de Iwo Jima, que é, desde já, um dos grandes momentos do cinema da década que se iniciou no pálido 2001. Para os descrentes nas possibilidades expressivas do cinema contemporâneo, como este que escreve estas mal traçadas, Cartas de Iwo Jima foi um bálsamo, que o deixou, ainda que a crueldade da guerra, mais feliz com as possibilidades criadoras do cinema nesta que se chama de contemporaneidade. Obrigado Clint Eastwood, muito obrigado!

Cartas de Iwo Jima (Letters from Iwo Jima, Estados Unidos, 2006), 2h20. Drama de guerra. Direção de Clint Eastwood. Roteiro de Iris Yamashita e Paul Haggis baseado em obra de Tadamichi Kuribayashi e Tsuyoko Yoshido. Com Ken Watanabe, Tsuyoshi Ihara e Kazunari Ninomiya.

A Conquista da Honra (Flags of Our Fathers, Estados Unidos, 2006), 2h12. Drama de guerra. Roteiro de Paul Haggis e William Broyles Jr. baseado em obra de James Bradley e Ron Powers. Direção de Clint Eastwood. Com Adam Beach, Ryan Phillippe e Jesse Bradford.

Um comentário:

Anônimo disse...

Já havia lido sua crítica no nacoco, mas não posso deixar de comentar aqui que o filme, é, de fato uma obra-prima da cinematografia.
E, confirmando, dizer que tudo isso começou com um Malpaso muito bem dado...