Aquele que se dedica à crítica de cinema não pode ter papas na língua, mas, infelizmente, não é isso que acontece com a maioria dos críticos, os quais ficam receosos de se manifestar em relação a determinados filmes que não receberam o carimbo da autoridade crítica modista e circunstancial. Há, na verdade, uma espécie de patrulha dos críticos exercida por seus próprios colegas. Antes, porém, muito mais intensa do que hoje, quando se percebe uma diluição do patrulhamento, talvez por causa da apatia reinante, talvez por causa do fim das ideologias, talvez por causa da idiotia que, como metástase, é tônica na sociedade contemporânea. Lembro-me que, nos anos 60, conversando com amigos ligados ao pensamento cinematográfico, elogiei Noite vazia, de Walter Hugo Khoury, e, incontinenti, fui logo taxado de reacionário por estar me referindo a um filme burguês, que focaliza problemas internos de pessoas na selva de pedra paulistana, além do fato de, para eles, Khoury ser um mero imitador de Bergman e Antonioni - desconhecendo os tais amigos enragés que Walter Hugho Khoury é um dos poucos cineastas brasileiros a ter um domínio formal do veículo e um discurso cinematográfico de coerência exemplar, havendo, nele, uma visão de cinema e uma visão de mundo, como queria François Truffaut, um universo ficcional próprio e um estilo particular, o que define um autor de filmes.
Mas não estou a fim de falar, aqui, em Khoury. Mas da necessidade de o crítico se assumir nos seus gostos específicos, sem ter medo de Virginia Wolff, sem ficar atrelado ao que os outros vão dizer. Muitos críticos que gostavam -e muito - da série James Bond, nos anos 60, não reconheciam isso em seus escritos e assistiam às películas do agente secreto muitas vezes às escondidas de seus colegas. Neste mundo pós-moderno, as coisas realmente mudaram e, neste aspecto, para melhor, com o fim das patrulhas ideológicas (expressão cunhada pelo cineasta Cacá Diegues num momento de rara inspiração já que, esta, falta bastante em seus filmes). Mas o que gostaria de dizer aqui, em alto e bom som, é que gosto muito de Tarde demais para esquecer (Un affair to remember, 1957), de Leo McCarey, com Cary Grant e Deborah Kerr. A chamada crítica, quando do seu lançamento, torceu-lhe o nariz, aplicou-lhe um sombrolho, mas, desde jovem, sempre admirei este melodrama (aliás sou fã de melodramas, não confundindo, este, com o dramalhão - o que é Marnie, de Hitch, senão um sofisticadíssimo melodrama?) refinadíssimo, que me emociona pela capacidade de McCarey em lhe aplicar finesse e sofisticação à sua narrativa. McCarey, que tem obras surpreedentes e primas como A cruz dos anos (Make way for tomorrow, 1936), talvez o melhor enfoque da solidão da velhice feito pelo cinema, e comédias impecáveis como A delícia de um dilema (Rally round the flag boys, 1958), com Paul Newman e Joanne Woodward, revirou de cabeça para baixo, em An affair to remember, todos os clichês das revistas femininas e aplicou chave irônica nos seus diálogos impecáveis. A revisão de Tarde demais para esquecer faz com que este filme cresça ainda mais, fugindo à tendência geral, quando os filmes revistos parecem algo déja vu e respiram pretérito. An affair to remember é uma obra sempre presente, que emociona, que faz bem, que é bela e sublime.
E, devo dizer, também em alto e bom som: gosto muito de A noviça rebelde (The sound of music, 1965), de Robert Wise.
6 comentários:
Tudo fruto de um stalinismo atroz. Na verdade foi um tempo cheio de estereótipos e fórmulas. Eu me lembro que sobre Khouri, eu tinha o mesmo posicionamento na década de 60. Não sabia exatamente por que, mas o fato é que era cunhado de burguês e ponto final. Repetia-se isso.
Quanto a James Bond, que o diga Cassino Royale, a essência da aventura em extremo. Hoje, sou fã.
Acho que nos dias que passamos muita coisa foi reformulada nesse sentido. O que não quer dizer nem que a ideologia tenha acabado. Ela existe, mas o stelinismo, este sim deve e tem que ser soterrado de vez.
Setaro, voce ja assistiu Babel? Seu gosto pelo cinema saira renovado, garanto.
Tinha um conhecido, que se dizia marxista, que adorava os filmes de James Bond, mas não dizia a ninguém. Um belo dia, entrando no cinema Liceu (de saudosa memória), deparei-me com ele na sala de espera. Estava sendo exibido '007 contra Goldfinger'. Assustado, correu pelas escadas abaixo, quase caindo por causa da corrente que isolava a sala do andar de baixo. Teve vergonha de ser flagrado a esperar para ver um filme de Bond. Dias depois, espalhei que fulano de tal (omito o seu nome) estava no Liceu vendo '007 contra Goldfinger'. Quase me mata.
E digo mais... dramalhão ou melodrama. Tudo é melhor do que o cinema estadunidense de hoje.
Uma mesmice, uma barulhada, um vazio. E o pior é que não existem mais filmes europeus aqui por essas terras d'além mar.
Colônia é colônia, afinal...
Setaro, não é só você, não. Eu também adoro A Noviça Rebelde. E O Mágico de Oz, O Picolino, e tantos outros filmes que são anteriores a época que eu nasci. Podem me chamar de nostálgico se quiserem, eu não me incomodo.
P.S: Crítica da semana em Claquete (http://claque-te.blogspot.com): Pequena Miss Sunshine, de Jonathan Dayton e Valerie Faris.
Abraços do crítico da caverna.
Não sabia que havia, ou ainda há, um patrulhamento exercida por seus próprios colegas. Tolo é aquele que se submete a isso.
Acho legítimo você externar sua admiração por Walter Hugo Khouri e pelo filme Tarde Demais para Esquecer. De Khouri só vi O Palácio dos Anjos (1970) e Eu. (1987). Gosto do trabalho dele, apesar do pouco que vi.
Sobre Tarde Demais... escrevi o seguinte na época em que vi: Música bonita (indicada ao Oscar, junto com a fotografia), mas prejudicado pelo excesso de sentimentalismo e números musicais. A dupla principal é o chamariz do filme.
Também gosto muito de A Noviça Rebelde. Para quem não gosta de musicais, como é o meu caso, isso é surpreendente.
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