Estou lendo, no momento, a extraordinária biografia de François Truffaut escrita a quatro mãos por Antoine de Baecque e Serge Toubiana num livro editado pela Record. Os autores fizeram intensa pesquisa para contar o itinerário do criador de Jules et Jim desde a sua infância sofrida até o seu ultimo suspiro. Cheio de minúcias, também revela o processo de criação de Truffaut, o ambiente jornalístico da imprensa francesa da época, os embates entre cineastas, etc. Quem gosta de cinema não pode deixar de ler este livro. Abaixo, um artigo que escrevi há algum tempo sobre a Nouvelle Vague e, se não há engano memorialístico, já o publiquei neste blog. Mas vai outra vez.
Eclosão de talentos díspares, detonada por cineastas dotados de estilos particulares, a Nouvelle Vague, que surge na França em fins dos anos 50 (1959), e que faz, agora, neste ano de 2005, 46 anos, aproximando-se de meio século, tem, no entanto, um denominador comum: a alteração no sistema de produção, o tratamento de temas considerados tabus, a experimentação na linguagem cinematográfica, o enfoque do homem contemporâneo, etc. Os 46 anos da Nouvelle Vague, neste momento de deslumbramento tecnológico, hegemonia da indústria cultural dos blockbusters e, em conseqüência, da perda da humanidade dos filmes, devem ser registrados como um exemplo único de modernidade, de criatividade, de impacto na sociedade de sua época, de renovação da linguagem fílmica e, principalmente, do império do cinema como um gênero técnico-formal mais virado para a expressão do que para a comunicação.Diante da crise da contemporaneidade na qual o cinema, como expressão da imagem humana, se afunda numa profusão de títeres, marionetes e efeitos especiais, na qual o homem desaparece, vale lembrar que a sobrevivência do cinema como arte está estreitamente ligada à tutela da sua função mitopoética e ao reconhecimento do seu papel de grande matriz moderna da cultura. O recente Seminário de Cinema e Audiovisual, reconhecendo a importância da Nouvelle Vague, a colocou no centro de suas discussões, tal a influência exercida nas gerações que lhe foram posteriores.
Há, na trajetória da história do cinema, momentos culminantes que o transformam e, entre esses momentos, está o do aparecimento da Nouvelle Vague, quando se pode dizer que existe um cinema antes da Nouvelle Vague e um cinema depois de sua eclosão. Assim, como a linguagem é uma antes de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, e outra, após a realização desta obra fundamental, ponto de partida da cinematografia moderna. Os momentos divisores-de-água se espalham pela história: o expressionismo alemão (dos anos 10 e 20), a escola documentarista britânica (quando se consolida o realismo) na década de 20 (John Grierson, Paul Rotha, Alberto Cavalcanti...), a introdução da profundidade de campo (Welles, Renoir, William Wyler...), nos 40, o neo-realismo italiano...
A Nouvelle Vague faz parte de um sopro renovador que atinge o cinema nos anos 50 e que influi em toda uma geração de cineastas da década de 60 (Cinema Novo, no Brasil, Free Cinema, na Inglaterra, o cinema underground nova-iorquino, o novo cinema alemão...). Com seus cineastas oriundos da crítica (da revista Cahiers du Cinema), cinéfilos por vocação, o sopro de modernidade francês determina uma nova maneira de narrar a partir de fragmentos dessemelhantes não mais unidos por um esquema dramático rígido, mas pelo próprio evoluir dos personagens em torno de núcleos de impulsos e de idéias.
Do ponto de vista teórico, é um artigo de François Truffaut, questionando o cinema clássico dos estúdios franceses, que não oferece oportunidade aos iniciantes, o provocador da primeira polêmica em torno da necessidade de mudança no sistema de produção. Assim, a exigência de uma solução econômica surge como a manifestação inicial da Nouvelle Vague. Os produtores, a fim de investir com garantias de reembolso do seu capital, sempre desconfiam daqueles que, sem experiência e sem renome, denotam sintomas de personalidade e de audácia – os filmes são confiados, assim, a cineastas já credenciados, de longo tirocínio. Investindo contra esse sistema, os críticos do Cahiers du Cinema, com parcos recursos (tirados da família, da criação de cooperativas, do próprio bolso...) começam, então, a transferência da teoria à praxis cinematográfica.
A Nouvelle Vague faz uma apologia da liberdade existencial do homem contemporâneo (aquele de 1959) e, nos seus filmes, o tratamento temático se desvincula dos padrões gramaticais estabelecidos. Consolida-se o não-herói em oposição ao herói clássico ou, mesmo, o anti-herói. O retrato de uma situação, a descrição e análise de um momento da vida, e o estudo de comportamentos ambíguos triunfam sobre o argumento tradicional. A fórmula griffithiana (de David Wark Griffith, americano, pai da linguagem cinematográfica com O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916) da lei de progressão dramática (exposição, intriga, clímax e desenlace) é posta de lado, com os personagens das fitas da Nouvelle Vague não mais com uma unidade psicológica e emocional precisa, mas como um feixe de sentimentos explicitados, contraditórios, ambíguos.
Rompe-se a relação dramática entre personagem e herói e a visão dos seres e objetos se purifica, é desdramatizada – o que determina uma apresentação de fatos e personagens sem enfeites adjetivos. Não mais existe, por conseguinte, o herói em oposição ao vilão, encaixando-se o homem num quadro existencial em que o bem e o mal são ficções puramente lógicas.
Os precursores da Nouvelle Vague já podem ser encontrados em fins dos anos 40,
...E Deus criou a mulher lança o mito de Brigitte Bardot e um plano de sua imagem nua, secando ao sol, causa escândalo e proibições. Alain Resnais, Georges Franju, entre outros, experimentam novas modalidades de produção, usando a bitola de 16mm. E, finalmente, o grupo da revista Cahiers du Cinema, os, por assim dizer, detonadores da Nouvelle Vague: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Doniol-Valcroze, Pierre Kast. O crítico André Bazin, fundador da revista, que falece em 1958 prematuramente aos 40 anos, é considerado o pai espiritual do grupo.
A Nouvelle Vague aparece oficialmente no Festival de Cannes, em 1959, com a Palma de Ouro conferida a Os incompreendidos (Le quatre-cents coups), de François Truffaut, na categoria de 'melhor direção' (o de 'melhor filme' é conquistada por Marcel Camus por Orfeu Negro, a versão da peça de Vinicius de Moraes que Cacá Diegues adapta com profunda falta de inspiração). Com a premiação de Truffaut, as portas dos estúdios, antes tão fechadas aos iniciantes, começam a se abrir para alguns realizadores novos. Ainda que se denomine a efervescência criadora francesa de movimento, a rigor, a Nouvelle Vague foge às características deste, pois seus membros não se atêm a regras ou postulados de criação comuns, nem se guiam pelas mesmas tendências estéticas. E, por isso mesmo, também não pode ser chamada de uma escola.
É, na verdade, uma camada de renovação que se sobrepõe à tradição dos filmes franceses, que, com a elipse de suas vigas mestras, o naturalismo e o realismo poético, já não se sustentam. A Nouvelle Vague opera uma ruptura violenta, sinônimo de rebeldia nas feições dos velhos sistemas de produção. A nova geração não se comunica com a anterior, mas, ao contrário, a substitui. É a Nouvelle Vague, quando aparece em 59, um estado de espírito, um conjunto de afirmações inconformistas partidas de cineastas como Melville, Astruc, Godard, Truffaut, Chabrol, Rohmer...
O fascínio que os realizadores dessa vaga consagram ao cinema é um fascínio desconhecido das gerações precedentes, pois esta geração se forma com o cinema num ambiente de cinematecas e cineclubes, no exercício da crítica e na permanente reflexão sobre a arte do filme – o que nunca ocorrera. A Nouvelle Vague também tem a vantagem de se principiar numa arte já instituída e organizada, o que permite, como conseqüência, ao cinema moderno, aproximar-se sensivelmente da plena realidade humana.
Há, por exemplo,
Questiona-se o caráter de movimento da Nouvelle Vague por se levar em conta mais a exigência de uma solução econômica para o cinema francês do que mesmo estética. É verdade que o aspecto econômico tem fundamental importância na eclosão dessa nova vaga, pois aqui se institui uma estética da necessidade (não se pode deixar de levar em conta a sua influência no Cinema Novo brasileiro e a estética da fome glauberiana, ainda que com acentos diferenciadores marcantes, é uma decorrência da alteração proporcionada pelos cineastas franceses no sistema de produção). Por outro lado, existe um despojamento dos processos de filmagem que funda uma nova estética – despojamento pela carência de grandes equipamentos e pela exigüidade orçamentária, limitada a equipe de trabalho a prazo e acessórios restritos.
A política da câmera na mão (que os cineastas dinamarqueses pregam no manifesto Dogma 95 como novidade é, como se vê, antiga e também praticada pelos cinemanovistas), da iluminação natural, da concisão dos efeitos estéticos pretendidos até o máximo de concentração, num mínimo de takes, uma vez colocada em desdobramento, não apenas subverte os métodos 'profissionais' mas, e principalmente, determina o vocabulário e a síntese da Nouvelle Vague, fazendo-a particular.
Assim, a tão utilizada montagem fracionada, ou seja, a montagem de instantes (vide a seqüência longa de Belmondo e Seberg no hotel em Acossado), purificando a ação aos seus movimentos essenciais, bem como a extrema mobilidade da câmera e a duração prolongada das tomadas (takes), acham-se condicionadas ao método mais livre e improvisado da filmagem. A estética da Nouvelle Vague em seus predicados evidentes e, como se disse, é uma estética da necessidade. François Truffaut sempre diz:”todo bom filme deve saber exprimir ao mesmo tempo uma visão do mundo e uma visão do cinema.” E Godard, no início dos anos 60: 'nós somos os primeiros cineastas a saber que Griffith existe.' Uma nova consciência da linguagem cinematográfica acompanha e alimenta boa parte da produção de diretores da nova onda.
Se Os incompreendidos, de François Truffaut, ao ganhar a Palma de Ouro, deflagra a Nouvelle Vague, é, no entanto, Acossado, de Godard, que se apresenta como o filme mais significativo da rebeldia dos jovens críticos franceses – para os quais cada obra cinematográfica é, também, um ensaio sobre imagens e sobre o cinema, sobre a relação entre o diretor e as histórias narradas, entre o autor e a personagem interpretada, entre a relação das palavras e das imagens... Acossado (que, visto recentemente, conserva todo o seu impacto e já se encontra incluso em todas as antologias e enciclopédias sobre a sétima arte), filmado em quatro semanas entre Paris e Marselha, quase todo rodado com a câmera na mão, pode ser definido como um thriller que se concentra apenas na trama e no princípio da ação física, denunciando, com isso, uma irresistível tentação da mise-en-scène.
Michel Poiccard (vivido por Jean Paul Belmondo), imagem do homem contemporâneo com suas dúvidas, ambigüidades, contradições, é um ladrão de carros anarquista que mata um policial motorizado que o persegue. Encontra, em Paris, a amiga americana Patricia (Jean Seberg) e consegue voltar a ser seu amante. Convence-a ir para a Itália com ele, mas a polícia, por delação dela, descobre Michel e o abate numa rua parisiense. A forma de Acossado condiz com a imagem do comportamento de Michel. A desordem do tempo, os desenvolvimentos e as mudanças impostas pela modernidade excedem Michel e, mais particularmente, Patricia, vítimas da desordem.
O filme, nesse particular, é um ponto de vista sobre a desordem, tanto interior como exterior, identificando-se, dessa maneira, com Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais e, mesmo, com Os incompreendidos, filmes que, na verdade, são esforços imaginativos e cinematográficos em busca do domínio dessa desordem.
A herança da nouvelle vague é imensa, pois influencia todo o cinema que lhe vem depois. O manifesto dos jovens cineastas alemães que despreza o filme estereotipado, e que procura, com Alexandre Kluge, Volker Schloendorff, Werner Herzog e, mais tarde, Wim Wenders, Rainer Fassbinder, apreender, em suas obras, a angústia da sociedade contemporânea, não se pode negar, é uma decorrência da Nouvelle Vague. Também a renovação da cinematografia britânica, com Karel Reisz, John Schlesinger, Tony Richardson, entre outros, no Free Cinema, recebe os ventos libertadores de uma estética estruturada em velhos hábitos.