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25 abril 2006

Beija-me idiota



Comédia sobre a inversão de papéis na representação da hipocrisia social, e a dialética do ser e da aparência, com uma visão ácida do american way of life, Beija-me Idiota (Kiss Me, Stupid, 1964), de Billy Wilder, ainda que tenha na sua fonte primária uma peça de teatro, L’Ora della Fantasia, de Anna Bonacci, possui, no entanto, um ritmo frenético e envolvente por causa da ourivesaria do roteiro do parceiro de Wilder, I. A.L. Diamond, composto a quatro mãos com o realizador, embora este não coloque sua firma no screenplay. Se Wilder, antes, na sua filmografia, já tinha atacado o mal estar do capitalismo (Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment, 1960, entre outros), é, porém, em Kiss Me, Stupid que sua crítica se faz mais visceral. O filme, quando lançado na primeira metade dos anos 60, foi atacado pelos moralistas e proibido em alguns estados da América do Norte. E, apesar de distribuído pela United Artists no mundo inteiro, não contou com verba publicitária, passando em muitos lugares despercebido. A virulência do olhar wilderiano, sobre certas idiossincrasias da sociedade americana, chocou os mais conservadores e arautos do establishment. A observar, entretanto, que se, na época de sua estréia, foi motivo de restrições absolutas pelas ligas de decências, foi servido, em 2003, pelo defundo e saudoso Telecine Classic em plena noite de Natal como presente de fim de ano. E o mundo, indiscutivelmente, mudou. Mas a permanência das observações contidas em Kiss Me, Stupid continuam atuais, considerando-se que a mentalidade dos retratos é a mesma seja em 1963, seja em 2006. O que mudou foi a instauração da apatia na recepção num mundo em desagregação que já não se importa mais pela preservação nem mesmo de sua antiga hipocrisia.

Wilder dá início a esta comédia-demolição com uma panorâmica na qual mostra um plano geral de um teatro, que anuncia o cantor Dino (Dean Martin), no qual os letreiros vão sendo retirados a denotar a despedida do artista. E no plano a seguir, com a música envolvente de Gershwin, Dino está no palco, meio bêbado, intercalando a canção com suas piadas características. Os créditos se anunciam neste frenesi e continuam na viagem que o cantor, saindo furtivamente para fugir das mulheres, inicia em direção a Hollywood onde, diz, vai fazer um filme com Frank Sinatra e sua turma. Mas um incidente, no meio do caminho, determina-lhe um outro itinerário para chegar a seu destino, obrigando a passar por várias cidades interioranas. Numa destas, Clímax, de poucos habitantes e cheia de preconceitos – tão diferente da visão edulcorada de uma cidadezinha americana apresenta em Cine Majestic, de Frank Darabont, Dino pára num posto de gasolina para abastecer seu carro, onde é atendido pela frentista Barry (Cliff Osmond – que sempre trabalha com Wilder e em Irma, la douce faz o guarda que recebe o dinheiro ao colocar o chapéu, logo no princípio, no bar de Moustache). Em Climax, mora um compositor e professor de piano, Orville Jeremiah Spooner (Ray Walston), parceiro de Barney em muitas músicas, casado com Zelda (Felicia Farr, esposa, na época de Jack Lemmon), apaixonada, desde criança, por Dino, e que tem todos os seus discos em casa. Mas Orville e Barney sonham que um dia suas músicas sejam reconhecidas e consigam sair do anonimato. Assim, a presença de Dino no posto de gasolina acende a chama da ambição de Barney, que danifica o motor do carro de Dino a fim de que ele fique retido em Clímax e venha a conhecer as músicas da dupla.

A solução encontrada pela mente fervilhante do gordo Barney é fazer com que Dino passe a noite na casa de Orville, mas este, que morre de ciúmes infundados da mulher, precisa arranjar um jeito de pô-la para fora por uma noite. Dino, insaciável quando se trata do sexo feminino, diz que não pode deixar de ter uma companhia, e, para satisfazê-lo, o plano de Barney inclui a vinda de uma prostituta, Polly, the pistol (Kim Novak, magnífica), que trabalha num bar/prostíbulo O Umbigo, cujo cartaz anuncia desde logo: “Entre e se perca”. Orville consegue brigar com a mulher e ela vai para a casa da mãe. Barney traz Polly, que representa, para Dino, ser a esposa de Orville. A troca de identidade, porém, não funciona, pois Polly, apesar de prostituta, uma profissional paga para um trabalho específico, qual seja o de dormir com Dino como se fosse a mulher de Orville, se enternece por este e não mostra o menor interesse pelo cantor. As coisas se complicam. Polly mostra que seria uma excelente dona de casa. E Zelda, saindo da casa dos pais, acaba indo tomar um porre no Umbigo.

O que interessa na verdade é que Wilder demonstra pela comédia que uma dona de casa típica americana pode ter uma mente prostituída – como, geralmente, muitas das donas de casa do mundo inteiro cujas fantasias são incontáveis, enquanto uma prostituta pode ser uma mulher pura e mais adequada ao lar. A comédia se desenvolve na base de uma ironia constante cujos atributos não se devem apenas a Wilder, mas, também, ao roteiro imaginoso de Diamond, que consegue driblar o peso teatral do argumento em função de uma transmissão deste através dos procedimentos cinematográficos. É neste particular que a direção de Wilder entra em campo ao conferir aos seus enquadramentos um sentido de equilíbrio e ritmo extraordinários. Este realizador sabe construir seu filme de tal maneira que o corte se anuncia como um atendimento à expectativa do espectador.

O imaginário de certas pessoas interioranas dos Estados Unidos, como Zelma, a mulher de Orville, que é a presidente do fã-clube de Dino, é uma representação das idiossincrasias de uma sociedade na qual o que importa mesmo é o sucesso a qualquer custo. Daí certo cinismo no final, a recusa de um happy-end, e a manutenção do status quo anterior, ainda que se possa pensar no desenlace diferente.

Entram na composição da excelência do espetáculo, além da direção de Wilder e do roteiro de Diamond, a funcional iluminação em preto e branco de Joseph La Shelle – fotógrafo preferido, em cinemascope, capaz de dar a Clímax um tom cinzento e a tela larga é sabiamente utilizada no deslocamento dos atores no espaço, facilitando o trabalho da câmera, a partitura musical de André Previn que utiliza clássicos da música como alguns dos compositores George e Ira Gershwin. E o elenco afinado, bem wilderiano, como o citado Cliff Osmand, que faz Barney, Ray Walston, Dean Martin e Felicia Farr. E inexcedível está Kim Novak num papel diferente, perfeitamente à vontade, blasé, principalmente para quem a imagina como a Madeleine de Scott na obra-prima Um Corpo Que Cai (Vertigo), de Alfred Hitchcock.

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