A ponte que se poderia fazer em relação a Domingos Oliveira é com o cineasta francês François Truffaut, porque ambos têm como obsessão temática o amor como mola propulsora da vida, como uma condição sem a qual o homem não conseguiria se situar no mundo. É o amor que determina as situações de seus filmes, como elemento deflagrador do desenvolvimento temático.
Preterido das discussões do cinema brasileiro, visto com reservas por alguns mais enragées, Domingos é, necessário dizer, um dos mais envolventes diretores da cinematografia nacional. Dramaturgo de mão cheia, homem de mil instrumentos, inovou tanto no cinema quanto no teatro e na televisão. Vários programas da Rede Globo, quando ainda existia o padrão de qualidade, têm a sua assinatura: Aplauso, transposição para o veículo televisivo de textos clássicos, Ciranda, Cirandinha, que marcou época pela agilidade pela qual se expressou na linguagem televisiva e no achado temático, entre muitos casos especiais que ficaram na história da tv. Talvez por ser um cineasta bissexto, que reserva seu tempo muito mais para o teatro, não é tão citado nem considerado. Boa parte da crítica, porém, aquela que se esconde no silêncio da emoção, tem-no como um grande, um mestre, um realizador original.
Amores, de Domingos, feito em 1998, pode ser considerado como um dos melhores filmes dos anos 90 do cinema brasileiro, da chamada retomada. Realizado com poucos recursos, filmado quase todo em interiores – boa parte no apartamento do diretor, Amores possui uma dramaturgia que tem pleno poder de convencimento. Os personagens de Domingos Oliveira transmitem aquele poder de verdade que somente raros cineastas sabem impor nas suas obras. Poucos, como ele, têm a poética instauradora do amor como necessidade da vida, como urgência do existir. Neste ponto, é válida a comparação com François Truffaut, um apaixonado pelas mulheres e que gostava de dizer que fazia cinema por causa de seu amor por elas – e que prova mais cabal do que O homem que amava as mulheres?
Amores é uma obra que reflete as relações afetivas no conturbado mundo atual cheio de encontros e desencontros - antípoda de fitinhas como Amores Possíveis ou Pequeno dicionário amoroso, de Sandra Werneck, por exemplo, que, se comparados à fita de Domingos, têm uma dramaturgia anêmica, um modo de olhar a possibilidade do amor restrito às circunstâncias do modismo ululante. Domingos coloca muito de sua vida no filme, romanceando aqui e ali. Ele é um escritor, que vive sozinho e tem uma filha - que é a sua própria na vida real, Maria Mariana, que saiu de casa para ter vida independente. Tem uma amiga casada com um procurador com a qual troca confidências. De repente, Mariana vai entrevistar o procurador e se apaixona perdidamente por ele. Fica grávida. A confidente de Domingos se separa. Ela tem uma irmã - a excelente Clarisse Niskier - atriz de shows musicais, que vive se queixando de solidão e que, por acaso, encontra, pensa ela, o homem de sua vida. Que descobre ser bissexual e estar com AIDS. Amores se estrutura, assim, com as surpresas ocasionadas pela vida a provocar o desenvolvimento da trama. Há, ainda, algumas reviravoltas até o término. É nesta capacidade de surpreender a vida como ela é que o cineasta mostra o seu talento, a sua imensa capacidade de dramaturgo. Obra aparentemente simples, revela, no entanto, um enfoque de inusitada importância sobre as afinidades eletivas na sociedade contemporânea. Para este cineasta, quando se ama, os códigos éticos e sociais ficam arquivados, desviando-se de qualquer vinculação simplista no enfoque e estabelecendo, isto sim, uma espécie de arte poética do amar.
Domingos José Soares de Oliveira é carioca, tem 68 anos -embora não aparente a idade que tem. Iniciou-se no cinema em 1967 com uma comédia deliciosa chamada Todas as Mulheres do Mundo, consagrando Leila Diniz como símbolo da nova mulher brasileira - também ajudou a célebre entrevista que Leila concedeu a "O Pasquim", com palavrões trocados por asteriscos. É muito difícil se achar, na extensa filmografia do cinema nacional, uma comédia com a graça, o charme e o fascínio de Todas as Mulheres do Mundo. Feita com poucos recursos, reflete o humor carioca e o estado de espírito da juventude nos anos 60, que funciona como um retrato de um Rio que não mais existe, onde o que ditava o comportamento dos cariocas era uma procura intensa pela alegria de viver.
Dois amigos (Paulo José e Flávio Migliaccio) se encontram. Um é celibatário e não acredita no amor. Então, o outro (P.J.) conta a história de como conheceu uma mulher (Leila Diniz) pela qual se apaixonou. Conhecendo-a numa festa, começam um relacionamento cheio de peripécias com idas e vindas, mas, sempre, com a possibilidade da reconciliação. Para ela, ele desistiu, para amá-la, de todas as mulheres do mundo. Domingos viveu com Leila e, quando se separou, foi ao fundo do poço sem fundo e fez o filme como uma espécie de sublimação. O ritmo é frenético, o humor se instala e a beleza de se estar apaixonado recrudesce a cada cena. Domingos, em pleno Cinema Novo, que se pautava em filmes para decifrar a problemática social, seguiu outro rumo: o da análise dos sentimentos. E fez um filme admirável.
Edu, Coração de Ouro, do ano seguinte, 1967, também com Paulo José e Leila Diniz - mais Norma Bengell, Joanna Fomm, segue o mesmo estilo do anterior. Um filme sobre um homem que se recusa a aderir ao sistema, que insiste em se manter distante do establishment, um outsider, portanto, um hippie avant la lettre, pois a explosão Woodstock aconteceria somente depois (1968) e, nesse sentido, Domingos fez uma fita premonitória. Se Todas as Mulheres do Mundo rendeu 11 vezes o que custou - um fenômeno para quem entende de mercadologia cinematográfica, Edu, Coração de Ouro apenas se pagou. Assim, para realizar As Duas Faces da Moeda, com Fregolente, Oduvaldo Vianna Filho e Adriana Prieto, reflexão sobre o amor e a morte, espraiadas com rara sensibilidade, já não contou com muitos recursos e a bilheteria foi um fracasso. Na entrada dos 70, É Simonal, tentativa de dissecar o fenômeno, que, naquela época, era um estrondoso sucesso popular, incursiona pelo documentário com swing. Este filme tem influências de Richard Lester (Os reis do yê, yê, yê, Help, A bossa da conquista...) na busca de um estabelecimento do timing de acordo com a bossa do cantor, advindo, disso, uma narrativa rápida, plena de observações irônicas no estilo que consagrou Lester.
Procurou se renovar em A Culpa, 1971, fazendo um filme difícil, com tomadas demoradas, planos-seqüências, recusando o seu estilo, a sua maneira de fazer cinema, na tentativa de querer mostrar saber ser, também, um cineasta profundo, a confundir profundidade com tomadas longas, descaracterizando-se ritmicamente. E naufragou. Paulo José, Dina Sfat e Nelson Xavier são personagens que se perdem num emaranhado de circunvoluções. Há, porém, a brilhante fotografia de Rogério Noel, considerado o mais artístico iluminador do cinema brasileiro que, muito precocemente, viera a falecer aos 22 anos.
Atraído pelo teatro e pela televisão, permaneceu, neles, full time, mas ainda filmou Deliciosas Traições do Amor, em três episódios, em 1973 e, quatro anos depois, a convite de Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, Teu, Tua, outro filme em episódios baseado em contos de grandes escritores como Dostoievsky. A partir deste, levou duas décadas sem filmar, mas trabalhando e criando intensamente no proscênio, considerado que é, pelos atores e diretores do Rio, um dos mais consistentes dramaturgos da atualidade. Daí, talvez, o desconhecimento de Domingos Oliveira, sua não inclusão nos debates sobre o cinema brasileiro. Amores e Separações surgem para reabilitá-lo e consagrá-lo perante um público - e uma crítica - que o subestima.
Domingos é possuidor de um universo ficcional próprio e um estilo particular de fazer cinema, de manipular os elementos de sua linguagem. Domingos, sob este prisma, é um autor, um artista, que se utiliza da expressão cinematográfica para pensar acercas das mazelas do maladie d’amour – dos males do amor, além de, com isso, expandir a sua reflexão num painel que retrata o drama do homem contemporâneo frente às vicissitudes do ato de amar. Acompanhando, no entanto, sua filmografia, desde a explosão inicial de Todas as mulheres do mundo, obra renovadora em espírito e linguagem, verifica-se um cineasta que retratou a sua época e as angústias de sua geração com um senso de humor poucas vezes observado no cinema brasileiro.
Preterido das discussões do cinema brasileiro, visto com reservas por alguns mais enragées, Domingos é, necessário dizer, um dos mais envolventes diretores da cinematografia nacional. Dramaturgo de mão cheia, homem de mil instrumentos, inovou tanto no cinema quanto no teatro e na televisão. Vários programas da Rede Globo, quando ainda existia o padrão de qualidade, têm a sua assinatura: Aplauso, transposição para o veículo televisivo de textos clássicos, Ciranda, Cirandinha, que marcou época pela agilidade pela qual se expressou na linguagem televisiva e no achado temático, entre muitos casos especiais que ficaram na história da tv. Talvez por ser um cineasta bissexto, que reserva seu tempo muito mais para o teatro, não é tão citado nem considerado. Boa parte da crítica, porém, aquela que se esconde no silêncio da emoção, tem-no como um grande, um mestre, um realizador original.
Amores, de Domingos, feito em 1998, pode ser considerado como um dos melhores filmes dos anos 90 do cinema brasileiro, da chamada retomada. Realizado com poucos recursos, filmado quase todo em interiores – boa parte no apartamento do diretor, Amores possui uma dramaturgia que tem pleno poder de convencimento. Os personagens de Domingos Oliveira transmitem aquele poder de verdade que somente raros cineastas sabem impor nas suas obras. Poucos, como ele, têm a poética instauradora do amor como necessidade da vida, como urgência do existir. Neste ponto, é válida a comparação com François Truffaut, um apaixonado pelas mulheres e que gostava de dizer que fazia cinema por causa de seu amor por elas – e que prova mais cabal do que O homem que amava as mulheres?
Amores é uma obra que reflete as relações afetivas no conturbado mundo atual cheio de encontros e desencontros - antípoda de fitinhas como Amores Possíveis ou Pequeno dicionário amoroso, de Sandra Werneck, por exemplo, que, se comparados à fita de Domingos, têm uma dramaturgia anêmica, um modo de olhar a possibilidade do amor restrito às circunstâncias do modismo ululante. Domingos coloca muito de sua vida no filme, romanceando aqui e ali. Ele é um escritor, que vive sozinho e tem uma filha - que é a sua própria na vida real, Maria Mariana, que saiu de casa para ter vida independente. Tem uma amiga casada com um procurador com a qual troca confidências. De repente, Mariana vai entrevistar o procurador e se apaixona perdidamente por ele. Fica grávida. A confidente de Domingos se separa. Ela tem uma irmã - a excelente Clarisse Niskier - atriz de shows musicais, que vive se queixando de solidão e que, por acaso, encontra, pensa ela, o homem de sua vida. Que descobre ser bissexual e estar com AIDS. Amores se estrutura, assim, com as surpresas ocasionadas pela vida a provocar o desenvolvimento da trama. Há, ainda, algumas reviravoltas até o término. É nesta capacidade de surpreender a vida como ela é que o cineasta mostra o seu talento, a sua imensa capacidade de dramaturgo. Obra aparentemente simples, revela, no entanto, um enfoque de inusitada importância sobre as afinidades eletivas na sociedade contemporânea. Para este cineasta, quando se ama, os códigos éticos e sociais ficam arquivados, desviando-se de qualquer vinculação simplista no enfoque e estabelecendo, isto sim, uma espécie de arte poética do amar.
Domingos José Soares de Oliveira é carioca, tem 68 anos -embora não aparente a idade que tem. Iniciou-se no cinema em 1967 com uma comédia deliciosa chamada Todas as Mulheres do Mundo, consagrando Leila Diniz como símbolo da nova mulher brasileira - também ajudou a célebre entrevista que Leila concedeu a "O Pasquim", com palavrões trocados por asteriscos. É muito difícil se achar, na extensa filmografia do cinema nacional, uma comédia com a graça, o charme e o fascínio de Todas as Mulheres do Mundo. Feita com poucos recursos, reflete o humor carioca e o estado de espírito da juventude nos anos 60, que funciona como um retrato de um Rio que não mais existe, onde o que ditava o comportamento dos cariocas era uma procura intensa pela alegria de viver.
Dois amigos (Paulo José e Flávio Migliaccio) se encontram. Um é celibatário e não acredita no amor. Então, o outro (P.J.) conta a história de como conheceu uma mulher (Leila Diniz) pela qual se apaixonou. Conhecendo-a numa festa, começam um relacionamento cheio de peripécias com idas e vindas, mas, sempre, com a possibilidade da reconciliação. Para ela, ele desistiu, para amá-la, de todas as mulheres do mundo. Domingos viveu com Leila e, quando se separou, foi ao fundo do poço sem fundo e fez o filme como uma espécie de sublimação. O ritmo é frenético, o humor se instala e a beleza de se estar apaixonado recrudesce a cada cena. Domingos, em pleno Cinema Novo, que se pautava em filmes para decifrar a problemática social, seguiu outro rumo: o da análise dos sentimentos. E fez um filme admirável.
Edu, Coração de Ouro, do ano seguinte, 1967, também com Paulo José e Leila Diniz - mais Norma Bengell, Joanna Fomm, segue o mesmo estilo do anterior. Um filme sobre um homem que se recusa a aderir ao sistema, que insiste em se manter distante do establishment, um outsider, portanto, um hippie avant la lettre, pois a explosão Woodstock aconteceria somente depois (1968) e, nesse sentido, Domingos fez uma fita premonitória. Se Todas as Mulheres do Mundo rendeu 11 vezes o que custou - um fenômeno para quem entende de mercadologia cinematográfica, Edu, Coração de Ouro apenas se pagou. Assim, para realizar As Duas Faces da Moeda, com Fregolente, Oduvaldo Vianna Filho e Adriana Prieto, reflexão sobre o amor e a morte, espraiadas com rara sensibilidade, já não contou com muitos recursos e a bilheteria foi um fracasso. Na entrada dos 70, É Simonal, tentativa de dissecar o fenômeno, que, naquela época, era um estrondoso sucesso popular, incursiona pelo documentário com swing. Este filme tem influências de Richard Lester (Os reis do yê, yê, yê, Help, A bossa da conquista...) na busca de um estabelecimento do timing de acordo com a bossa do cantor, advindo, disso, uma narrativa rápida, plena de observações irônicas no estilo que consagrou Lester.
Procurou se renovar em A Culpa, 1971, fazendo um filme difícil, com tomadas demoradas, planos-seqüências, recusando o seu estilo, a sua maneira de fazer cinema, na tentativa de querer mostrar saber ser, também, um cineasta profundo, a confundir profundidade com tomadas longas, descaracterizando-se ritmicamente. E naufragou. Paulo José, Dina Sfat e Nelson Xavier são personagens que se perdem num emaranhado de circunvoluções. Há, porém, a brilhante fotografia de Rogério Noel, considerado o mais artístico iluminador do cinema brasileiro que, muito precocemente, viera a falecer aos 22 anos.
Atraído pelo teatro e pela televisão, permaneceu, neles, full time, mas ainda filmou Deliciosas Traições do Amor, em três episódios, em 1973 e, quatro anos depois, a convite de Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, Teu, Tua, outro filme em episódios baseado em contos de grandes escritores como Dostoievsky. A partir deste, levou duas décadas sem filmar, mas trabalhando e criando intensamente no proscênio, considerado que é, pelos atores e diretores do Rio, um dos mais consistentes dramaturgos da atualidade. Daí, talvez, o desconhecimento de Domingos Oliveira, sua não inclusão nos debates sobre o cinema brasileiro. Amores e Separações surgem para reabilitá-lo e consagrá-lo perante um público - e uma crítica - que o subestima.
Domingos é possuidor de um universo ficcional próprio e um estilo particular de fazer cinema, de manipular os elementos de sua linguagem. Domingos, sob este prisma, é um autor, um artista, que se utiliza da expressão cinematográfica para pensar acercas das mazelas do maladie d’amour – dos males do amor, além de, com isso, expandir a sua reflexão num painel que retrata o drama do homem contemporâneo frente às vicissitudes do ato de amar. Acompanhando, no entanto, sua filmografia, desde a explosão inicial de Todas as mulheres do mundo, obra renovadora em espírito e linguagem, verifica-se um cineasta que retratou a sua época e as angústias de sua geração com um senso de humor poucas vezes observado no cinema brasileiro.
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