Em 1959, com a premiação em Cannes de Os incompreendidos (Les quatre-cents coups), de François Truffaut,
e a realização de Acossado (A bout de
souflle), de Jean-Luc Godard, tem início a Nouvelle Vague, que, neste 2009, completa meio século, 50 anos. A Nouvelle Vague representou uma linha
evolutiva para a linguagem, lançando uma nova maneira de olhar o mundo, uma
modernização temática, procedimentos inovadores na maneira de articular a
narrativa cinematográfica, além de uma alteração importante no sistema de
produção. É preciso compreender o seu significado. É o que espero fazer, aqui,
em duas colunas. Se, após lidas, houver uma compreensão, mesmo que generalista,
de seu significado, o trabalho não estará perdido.
Eclosão de talentos díspares, detonada por cineastas dotados
de estilos particulares, a Nouvelle Vague,
que surge na França em fins dos anos 50 (1959), e que faz, agora, neste ano de
2009, 50 anos, tem, no entanto, um denominador comum: a alteração no sistema de
produção, o tratamento de temas considerados tabus, a experimentação na
linguagem cinematográfica, o enfoque do homem contemporâneo, etc. Os 50 anos da
Nouvelle Vague, neste momento de deslumbramento
tecnológico, hegemonia da indústria cultural dos blockbusters e, em conseqüência, da perda da humanidade dos filmes,
devem ser registrados como um exemplo único de modernidade, de criatividade, de
impacto na sociedade de sua época, de renovação da linguagem fílmica e,
principalmente, do império do cinema como um gênero técnico-formal mais virado
para a expressão do que para a comunicação. Diante da crise da
contemporaneidade na qual o cinema, como expressão da imagem humana, se afunda
numa profusão de títeres, marionetes e efeitos especiais (exceção se faça a
poucos, como Sangue negro, de Paul
Thomas Anderson, e A Troca, este
magistral Clint Eastwood ainda em cartaz), na qual o homem desaparece, vale
lembrar que a sobrevivência do cinema como arte está estreitamente ligada à
tutela da sua função mitopoética e ao reconhecimento do seu papel de grande
matriz moderna da cultura.
Há, na trajetória da história do cinema, momentos
culminantes que o transformam e, entre esses momentos, está o do aparecimento
da Nouvelle Vague, quando se pode
dizer que existe um cinema antes da Nouvelle
Vague e um cinema depois de sua eclosão. Assim, como a linguagem é uma
antes de Cidadão Kane (Citizen Kane,
1941), de Orson Welles, e outra, após a realização desta obra fundamental,
ponto de partida da cinematografia moderna. Os momentos divisores-de-água se
espalham pela história: o expressionismo alemão (dos anos 10 e 20), a escola
documentarista britânica (quando se consolida o realismo) na década de 20 (John
Grierson, Paul Rotha, Alberto Cavalcanti...), a introdução da profundidade de
campo (Welles, Renoir, William Wyler...), nos 40, o neo-realismo italiano...
A Nouvelle Vague
faz parte de um sopro renovador que atinge o cinema nos anos 50 e que influi em
toda uma geração de cineastas da década de 60 (Cinema Novo, no Brasil, Free
Cinema, na Inglaterra, o cinema
underground nova-iorquino, o novo cinema alemão...). Com seus cineastas
oriundos da crítica (da revista Cahiers
du Cinema), cinéfilos por vocação, o sopro de modernidade francês determina
uma nova maneira de narrar a partir de fragmentos dessemelhantes não mais
unidos por um esquema dramático rígido, mas pelo próprio evoluir dos
personagens em torno de núcleos de impulsos e de idéias.
Do ponto de vista teórico, é um artigo de François Truffaut,
questionando o cinema clássico dos estúdios franceses, que não oferece
oportunidade aos iniciantes, o provocador da primeira polêmica em torno da
necessidade de mudança no sistema de produção. Assim, a exigência de uma solução
econômica surge como a manifestação inicial da Nouvelle Vague. Os produtores, a fim de investir com garantias de
reembolso do seu capital, sempre desconfiam daqueles que, sem experiência e sem
renome, denotam sintomas de personalidade e de audácia – os filmes são
confiados, assim, a cineastas já credenciados, de longo tirocínio. Investindo
contra esse sistema, os críticos do Cahiers
du Cinema, com parcos recursos (tirados da família, da criação de
cooperativas, do próprio bolso...) começam, então, a transferência da teoria a praxis cinematográfica.
A Nouvelle Vague
faz uma apologia da liberdade existencial do homem contemporâneo (aquele de
1959) e, nos seus filmes, o tratamento temático se desvincula dos padrões
gramaticais estabelecidos. Consolida-se o não-herói em oposição ao herói
clássico ou, mesmo, o anti-herói. O retrato de uma situação, a descrição e
análise de um momento da vida, e o estudo de comportamentos ambíguos triunfam
sobre o argumento tradicional. A fórmula griffithiana (de David Wark Griffith,
americano, pai da linguagem cinematográfica com O nascimento de uma nação, 1914, e Intolerância, 1916) da lei de progressão
dramática (exposição, intriga, clímax e desenlace) é posta de lado, com os
personagens das fitas da Nouvelle Vague
não mais com uma unidade psicológica e emocional precisa, mas como um feixe de
sentimentos explicitados, contraditórios, ambíguos.
Rompe-se a relação dramática entre personagem e herói e a
visão dos seres e objetos se purifica, é desdramatizada – o que determina uma
apresentação de fatos e personagens sem enfeites adjetivos. Não mais existe,
por conseguinte, o herói em oposição ao vilão, encaixando-se o homem num quadro
existencial em que o bem e o mal são ficções puramente lógicas.
Os precursores da Nouvelle
Vague já podem ser encontrados em fins dos anos 40, em Alexandre Astruc,
principalmente, que, em 1948, lança sua teoria da camera-stylo (“o cinema se libertará pouco a pouco da tirania do
visual, da imagem pela imagem, do enredo imediato e concreto, para tornar-se um
meio de escritura tão leve e tão sutil quanto a linguagem escrita.”). E em
Jean-Pierre Melville (que aparece, em Acossado,
de Godard, como o escritor entrevistado por Jean Seberg numa homenagem
significativa) que, em 1946, em 24 heures
de la vie d’un clown emprega métodos modernos assemelhados aos da vaga
francesa. Também em Agnès Varda que, em 1955, realiza La ponte courte, que configura um sentido de um cinema com um
frescor e liberdade nada parecidos com as películas dos realizadores franceses
da velha guarda. E, ainda, em Roger Vadim e Louis Malle, os quais, em 56 e 57,
respectivamente, em ...E Deus criou a
mulher (...Et Dieu créa la femme) e Ascensor
para o cadafalso (Ascenseur pour l’échefaud)
utilizam uma linguagem desamarrada dos cânones narrativos tradicionais.
...E Deus criou a
mulher lança o mito de Brigitte Bardot e um
plano de sua imagem nua, secando ao sol, causa escândalo e proibições. Alain
Resnais, Georges Franju, entre outros, experimentam novas modalidades de
produção, usando a bitola de 16mm. E, finalmente, o grupo da revista Cahiers du
Cinema, os, por assim dizer, detonadores da Nouvelle
Vague: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, Claude Chabrol,
Jacques Rivette, Doniol-Valcroze, Pierre Kast. O crítico André Bazin, fundador
da revista, que falece em 1958, prematuramente aos 40 anos, é considerado o pai
espiritual do grupo.
A Nouvelle Vague
aparece oficialmente no Festival de Cannes, em 1959, com a Palma de Ouro
conferida a Os incompreendidos (Le
quatre-cents coups), de François Truffaut, na categoria de “melhor direção”
(o de “melhor filme” é conquistada por Marcel Camus por Orfeu Negro, a versão da peça de Vinicius de Moraes que Cacá
Diegues adapta com profunda falta de inspiração). Com a premiação de Truffaut,
as portas dos estúdios, antes tão fechadas aos iniciantes, começam a se abrir
para alguns realizadores novos. Ainda que se denomine a efervescência criadora
francesa de movimento, a rigor, a Nouvelle
Vague foge às características deste, pois seus membros não se atêm a regras
ou postulados de criação comuns, nem se guiam pelas mesmas tendências
estéticas. E, por isso mesmo, também não pode ser chamada de uma escola.
É, na verdade, uma camada de renovação que se sobrepõe à
tradição dos filmes franceses, que, com a elipse de suas vigas mestras, o
naturalismo e o realismo poético, já não se sustentam. A Nouvelle Vague opera uma ruptura violenta, a modificar as relações
dos velhos sistemas de produção. A nova geração não se comunica com a anterior,
mas, ao contrário, a substitui. É a Nouvelle
Vague, quando aparece em 59, um estado de espírito, um conjunto de
afirmações inconformistas partidas de cineastas como Melville, Astruc, Godard,
Truffaut, Chabrol, Rohmer...
O fascínio que
os realizadores dessa vaga consagram ao cinema é um fascínio desconhecido das
gerações precedentes, pois esta geração se forma com o cinema num ambiente de
cinematecas e cineclubes, no exercício da crítica e na permanente reflexão
sobre a arte do filme – o que nunca ocorrera. A Nouvelle Vague também tem a vantagem de se principiar numa arte já
instituída e organizada, o que permite, como conseqüência, ao cinema moderno,
aproximar-se sensivelmente da plena realidade humana.
Há, por exemplo,
em Louis Malle e Roger Vadim, um erotismo sadio e libertário (os hipócritas de
todos os tipos e os falsos moralistas viram 'indecência' e pornografia na bela
cena na qual Jeanne Moreau, em Os amantes,
pratica um fellatio em seu amante).
Em Jean-Luc Godard, um cinismo irônico, quase amoral, bem típico da geração da
vaga (quando Jean-Paul Belmondo, no princípio de Acossado [A bout de souffle], atira contra o sol está indicado, aí,
o início). Já em François Truffaut pode ser encontrada uma espécie de lirismo
de impacto, ainda que não leve o tema à conclusão, deixando ao espectador a
tarefa de resolvê-lo, como em Uma mulher
para dois (Jules et Jim, 1961). O novo conceito de personagem
advindo dos filmes de Godard, Truffaut, Chabrol, Malle, entre outros, exige,
por sua vez, um novo estilo de fotografia (Raoul Coutard) e um novo estilo
narrativo.
Questiona-se o
caráter de movimento da Nouvelle Vague
por se levar em conta mais a exigência de uma solução econômica para o cinema
francês do que mesmo estética. É verdade que o aspecto econômico tem
fundamental importância na eclosão dessa nova vaga, pois aqui se institui uma
estética da necessidade (não se pode deixar de levar em conta a sua influência
no Cinema Novo brasileiro e a estética da fome glauberiana, ainda que com
acentos diferenciadores marcantes, é uma decorrência da alteração proporcionada
pelos cineastas franceses no sistema de produção). Por outro lado, existe um
despojamento dos processos de filmagem que funda uma nova estética –
despojamento pela carência de grandes equipamentos e pela exigüidade
orçamentária, limitada a equipe de trabalho a prazo e acessórios restritos.
A política da
câmera na mão (que os cineastas dinamarqueses pregam no manifesto Dogma 95 como
novidade é, como se vê, antiga e também praticada pelos cinemanovistas), da
iluminação natural, da concisão dos efeitos estéticos pretendidos até o máximo
de concentração, num mínimo de takes,
uma vez colocada em desdobramento, não apenas subverte os métodos
'profissionais' mas, e principalmente, determina o vocabulário e a sintaxe da Nouvelle Vague, fazendo-a particular.
Assim, a tão
utilizada montagem fracionada, ou seja, a montagem de instantes (vide a
seqüência longa de Belmondo e Seberg no hotel em Acossado), purificando a ação aos seus movimentos essenciais, bem
como a extrema mobilidade da câmera e a duração prolongada das tomadas (takes), acham-se condicionadas ao método
mais livre e improvisado da filmagem. A estética da Nouvelle Vague em seus
predicados evidentes é, como se disse, é uma estética da necessidade. François
Truffaut sempre disse:”todo bom filme deve saber exprimir ao mesmo tempo uma
visão do mundo e uma visão do cinema.” E Godard, no início dos anos 60: “nós
somos os primeiros cineastas a saber que Griffith existe.” Uma nova consciência
da linguagem cinematográfica acompanha e alimenta boa parte da produção de
diretores da nova onda.
Se Os incompreendidos, de François
Truffaut, ao ganhar a Palma de Ouro, deflagra a Nouvelle Vague, é, no entanto, Acossado,
de Godard, que se apresenta como o filme mais significativo da rebeldia dos
jovens críticos franceses – para os quais cada obra cinematográfica é, também,
um ensaio sobre imagens e sobre o cinema, sobre a relação entre o diretor e as
histórias narradas, entre o autor e a personagem interpretada, entre a relação
das palavras e das imagens... Acossado
(que, visto recentemente, conserva todo o seu impacto e já se encontra incluso
em todas as antologias e enciclopédias sobre a sétima arte), filmado em quatro
semanas entre Paris e Marselha, quase todo rodado com a câmera na mão, pode ser
definido como um thriller que se
concentra apenas na trama e no princípio da ação física, denunciando, com isso,
uma irresistível tentação da mise-en-scène.
Michel Poiccard (vivido por Jean Paul Belmondo), imagem do homem contemporâneo
com suas dúvidas, ambigüidades, contradições, é um ladrão de carros anarquista
que mata um policial motorizado, que o persegue. Encontra, em Paris, a amiga
americana Patricia (Jean Seberg) e consegue voltar a ser seu amante. Convence-a
ir para a Itália com ele, mas a polícia, por delação dela, descobre Michel e o
abate numa rua parisiense. A forma de Acossado
condiz com a imagem do comportamento de Michel. A desordem do tempo, os
desenvolvimentos e as mudanças impostas pela modernidade excedem Michel e, mais
particularmente, Patricia, vítimas da desordem. O filme, nesse particular, é um
ponto de vista sobre a desordem, tanto interior como exterior,
identificando-se, dessa maneira, com Hiroshima,
mon amour, de Alain Resnais e, mesmo, com Os incompreendidos, filmes que, na verdade, são esforços imaginativos
e cinematográficos em busca do domínio dessa desordem.
A herança da Nouvelle Vague é imensa, pois influencia
todo o cinema que lhe vem depois. O manifesto dos jovens cineastas alemães que
despreza o filme estereotipado, e que procura, com Alexandre Kluge, Volker
Schloendorff, Werner Herzog e, mais tarde, Wim Wenders, Rainer Fassbinder,
apreender, em suas obras, a angústia da sociedade contemporânea, não se pode
negar, é uma decorrência da Nouvelle Vague. Também a renovação da
cinematografia britânica, com Karel Reisz, John Schlesinger, Tony Richardson,
entre outros, no Free Cinema, recebe
os ventos libertadores de uma estética estruturada em velhos hábitos.
Se já se
identifica, nos anos 50, um movimento em torno da desdramatização (que tem no
italiano Michelangelo Antonioni o grande mestre com sua trilogia A aventura, A noite e O eclipse), cujo pioneirismo está em
Roberto Rossellini (Romance na Itália,
1953, o famoso Viaggio in Italia), a
desconstrução do esquema griffithiano se dá com mais vigor e uniformidade na
eclosão da Nouvelle Vague. O próprio
Cinema Novo, se é influenciado pelo neo-realismo italiano (principalmente
Rossellini), pela estética revolucionária de Serguei Eisenstein (principalmente
em Glauber Rocha) e no exemplo de Humberto Mauro, não deixa, porém, de sentir
forte a presença da Nouvelle Vague (o que é Os
cafajestes, de Ruy Guerra, senão um filme nouvelle vague feito no Rio?)
Filmografia
essencial
1)
Acossado (A bout de soufle, 1959) de Jean-Luc Godard
2)
Nas garras do vício (Le beau Serge, 1959) de Claude Chabrol
3)
Os Incompreendidos (Les quatre-cents coups, 58) de François Truffaut
4)
Hiroshima, mon amour (idem, 1959) de Alain Resnais
5)
O Pequeno soldado (Le petit soldat, 1960) de Jean-Luc Godard
6)
Amor livre (L’eau à la bouche, 1959) de Jacques Domiol-Valcroze
7)
Paris nous appartient (idem, 1958-1960) de Jacques Rivette
8)
Cleo de 5 às 7 (idem, 1961), de Agnès Varda
9)
Amores fracassados (Le bel âge, 1959) de Pierre Kast
10)
Le signe de lion (idem, 1959-1962) de Erich Rohmer
11)
As quatro estações do amor (La morte saison des amours) de Pierre Kast
12)
Os primos (Les cousins, 1959) de Claude Chabrol
13)
Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme, 61) de Jean-Luc Godard
14)
Zazie dans le metro (idem, 1960) de Louis Malle
15)
Os amantes (Les amants, 1959) de Louis Malle
16)
Atirem no pianista (Tirez sur le pianiste, 1960) de François Truffaut
17)
Uma mulher para dois (Jules et Jim, 1961) de François Truffaut
18)
Lola (idem, 1960) de Jacques Demy
19)
Viver a vida (Vivre la vie, 1962) de Jean-Luc Godard
20)
Leon morin, prête (idem, 1961) de Jean Pierre Melville
21)
O Ano passado em Marienbad (L’année dernière a Marienbad, 1961) de Alain
Resnais
22)
Quem matou Leda? (A double tour, 1959) de Claude Chabrol
23)
Demônio das onze horas (Pierrot le fou, 1965) de Jean-Luc Godard
24)
O Desprezo (Le mépris, 1963), de Jean-Luc Godard
25)
Trinta anos esta noite (Le feu follet), de Louis Malle