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18 dezembro 2013

Carl Dreyer: sensibilidade e ascese

A palavra (Ordet, 1954), de Carl Theodor Dreyer
Há quarenta e cinco anos morria em Copenhague (Dinamarca) Carl Theodor Dreyer (1889/1968), um dos maiores realizadores cinematográficos de todos os tempos, cujos filmes vieram a influenciar toda uma geração de cineastas, principalmente os nórdicos, a exemplo de Ingmar Bergman, assim como o contemporâneo e polêmico Lars Von Trier (Dançando no escuro, Ondas do destino, Dogville, Os idiotas...). Seus filmes principais já foram lançados em DVD e se constituem em obras fundamentais para o conhecimento não somente de um autor excepcional, mas, também, e principalmente, de um cinema particular, sublime, e extremamente expressivo na sua singularidade. Não se pode entender o cinema contemporâneo sem as bases referenciais do pretérito. E Dreyer, neste sentido, por artista criador, situa-se no Olímpio dos diretores da chamada sétima arte.

O ensaísta baiano Walter da Silveira, quando enviou para a antiga revista Filme/Cultura, em 1968, a relação de seus dez maiores filmes, colocou La passion de Jeanne D’Arc em primeiro lugar. O crítico tinha verdadeira adoração pelo cineasta dinamarquês. Dreyer morreu, no entanto, sem alcançar o seu tão sonhado projeto, o de filmar a vida de Jesus Cristo. Sobre Gertrud, o último filme, escreveu Jean-Luc Godard no Cahiers du Cinema: “Gertrud iguala em loucura e beleza as últimas obras de Beethoven”. É preciso dizer, portanto, que o DVD está a funcionar como um resgate do grande cinema. Mas vamos ver aqui alguma coisa sobre A palavra (Ordet).

Seguindo o estilo de Dies Irae – planos-sequências e recitações, lentos movimentos de câmera e intercalação de breves close ups, A palavra (Ordet) representa a plenitude de Carl Theodor Dreyer no tocante à harmonia da complexidade, a ascese de sua dinâmica espiritual e artística e à sabedoria da realização. Como em La passion de Jeanne D’Arc (1928) e Dies Irae, encontramos temas iniciais que se colocam em prosseguimento, como, por exemplo, em Ordet, uma acusação da intolerância e o orgulho dos exclusivistas da verdade. A morte constitui o vértice dramático, mas, também, aqui, Dreyer adota uma clara postura na ordem do sobrenatural. Com uma sinceridade conseqüente, Dreyer conduz o filme até o milagre, o qual só é possível, em seu caso, como consequência de um ato de fé total, puro, sensível e compartilhado. Desta forma, o realizador dinamarquês se situa acima de seu tempo e do lugar: a morte precede naturalmente o milagre, e este determina a reconciliação consciente e coletiva. Ordet se desenrola como uma sinfonia de sensibilidade e de austeridade, em que o orgulho sectário de Morten e Peter se harmoniza com a despreocupação religiosa de Mikkel, o despertar amoroso de Anders, o sossegado intimismo de Ingers e a loucura de Johannes, cujas récitas proféticas salmodiam o filme, levando-o com grande fluidez até a cena final, a do milagre. Neste momento, Johannes recupera toda a sua lucidez, a plena razão, e, a falar com a menina, sua sobrinha, com o apoio desta, tem força suficiente para conseguir a ressurreição desejada.

Em uma obra de tanta seriedade temática e categoria estética, a indiferença só pode representar sintoma de incultura (como alguns, que se dizem entendidos de cinema, e que assistiram ao DVD de Ordet, e viram nela uma obra acadêmica e ultrapassada, pessoas, aliás, que costumam frequentar com a assiduidade das bestas as salas do circuito Bahiano) e, desde logo, de ausência total de sensibilidade artística. Ordet, monumento agora disponível em disco, se baseia na obra homônima de Kaj Munk, pastor protestante assassinado pelas tropas de Hitler que ocuparam seu país, e que, desafiando-as, ao proclamar certas verdades do púlpito de sua igreja, foi logo morto.

A ação de Ordet se localiza num povoado dinamarquês. O velho Morten Borgen (Henrik Malberg) e seus filhos Mikkel (Emil Haas Christensens) e Andrés (Cay Kristiansen) buscam o terceiro filho de Borgen, Johannes (Preben Rye), que em sua loucura afirma ser Jesus Cristo. Inger (Birgitte Federspiel), esposa de Mikkel e que está grávida, tenta consolá-los. Enquanto Borgen discute com seu vizinho Peter (Ejner Federspiel), pertencente a uma seita religiosa distinta, Inger sofre uma urgente intervenção médica. O caçula dos Borgen quer se casar com a filha de Peter, mas este reage e não aceita, obrigando o velho a ir discutir com ele. Enquanto ele conversa com o outro, o recém-nascido de Inger morre e esta não tarda em seguir-lhe, morte, aliás, que havia sido profetizada por Johannes. Durante os preparativos do funeral, Mikker não pode conter a sua dor, quando aparece Johannes, lúcido, a lhe reprovar sua falta de fé. E, através de sua intervenção, Inger volta à vida.

A temática de Dreyer se centra no ser humano como sujeito de valores absolutos. O homem é observado psicologicamente e a sua dignidade defendida frente a toda intolerância, coação física ou moral. Através da tolerância, da bondade e do sofrimento, chega à ideia abstrata do amor e da pureza espiritual, assim como, no âmbito religioso, à fé, e no metafísico, às relações do homem com Deus. Sua técnica narrativa, influenciada em suas origens pela escola cinematográfica alemã, expressionista, e pelos principais criadores do cinema soviético, adquire caracteres próprios e inconfundíveis a partir de La passion de Jeanne D’Arc. Mediante o uso de diversos elementos, em especial os movimentos lentos de câmera, serenidade expositiva, grande direção dos atores, iluminação difusa umas vezes e contrastada em outras, utilização do silêncio como valor dramático, e progressiva dramatização da ação interna, passa, imperceptivelmente, do físico ao moral, do cotidiano ao existencial ou metafísico. Para Dreyer, o estilo é a incorporação da alma do artista à obra do criador, isto é, sua personalidade. Segundo o criador de Ordet, sem estilo não há obra de arte.

P.S:Carl Theodor Dreyer nasceu em Copenhague (Dinamarca) em 1889 e  veio a falecer nesta mesma cidade em 1968, quando já tinha captado todos os recursos para o sonho de sua vida: filmar a trajetória de Cristo na Terra. Morreu com 79 anos. Gertrud, seu canto de cisne, rodado em 1964, comparado por Godard às últimas obras de Beethoven, despreza qualquer influência do cinema que lhe era contemporâneo: anti esnobe, lento, seco, direto, tendo a palavra como veio condutor.

16 dezembro 2013

O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas

O jornalista e cinéfilo Dimas Oliveira, o cineasta Tuna Espinheira, Juraci Dórea e outro da equipe.
Terça, dia 17, às 21 horas, numa das salas dos confortáveis cinemas recém-inaugurados do Shopping Barra, a avant-première do mais novo filme de Tuna Espinheira: O Imaginário de Juraci Dórea no Sertão/Veredas. O texto abaixo tem como escrevinhador o próprio Tuna, velho de guerra.

"Era uma vez o sertão que virou museu a céu aberto, ao sol, a chuva, ao tempo, ao vento... tudo se fez precisamente assim, quando o artista, Juraci Dórea, teve a ideia do Projeto Terra e  arrumou seu matulão para cair no mundo, fazendo às vezes do pregador bíblico, João Batista, adentrando as veredas do sertão baiano, descortinando suas icônicas esculturas, de madeiras vestidas de couro, com uma linguagem contemporânea, desconhecida naqueles ermos, bradando no deserto.  Logo/logo, viriam as exposições itinerantes, ciganas, de quadros de pintura, de porte razoável de tamanho, com motivos populares, viriam a alegar as retinas cansadas dos viventes da região. Um festão em cada lugar por onde passava. E assim foi que, estas semeaduras de arte, em léguas tiranas , no agreste, através de documentações fotográficas, chegaram à mídia, escrita, falada, televisada, chamou a atenção, de um público vário, por todo canto, principalmente, os críticos das artes plásticas, entre eles Frederico Morais, o que tornou visível aquela épica,  emblemática e indômita forma do fazer arte em dialogo interativo com um mundo invisível. E deu-se que, o trabalho do artista ganhou botas de sete léguas e asas de albatroz, e, invertendo a normalidade do processo, saiu do assombroso museu a Deus dará, para os espaços emblemáticos das Bienais, São Paulo, Veneza, Cuba... e as inúmeras exposições, Brasil afora e além fronteiras... E o Sertão virou mar...

Nosso projeto de um filme/documentário, assim foi em busca de contar esta estória cuja gênese é o distante 1982, tempo abissal, sobretudo para encontrar vestígios das esculturas pioneiras, urdidas como arte efêmera, sobretudo as esculturas, construídas com madeiras e vestidas com o couro, expostas ao tempo, sujeita aos predadores naturais ( o couro é precioso e de grande utilidade naqueles meios), o que justificava a sua morte anunciada. Juraci Dórea embarcou nesta canoa, foi um dos mais indômitos membros da equipe, botou a mão na massa, além de personagem desta estória, em imagem em movimento, agiu, todo o tempo como cúmplice do nosso fazer. Plantamos, de Feira de Santana, passando por Monte Santo e Canudos, quatro novas e enormes esculturas, conversamos com muita gente sertaneja... À mercê do calor da hora, fomos colhendo material... O possível e impossível para contar a saga deste estranhíssimo Projeto Terra, catando, aqui e açula, o combustível necessário para que La Nave Vá... E ela foi..
e-mail: tuna.dandrea@gmail.com 

15 dezembro 2013

Dupla homenagem: Alexandre e Sílvio Robatto

Pioneiro do cinema baiano, Alexandre Robatto, Filho, começa a fazer filmes, nos anos 30, com uma câmera de 8mm, registrando os ainda incipientes sistema de abastecimento d'água da cidade de Salvador.Antes dele, tem-se notícias de alguns nomes como os de Diomedes Gramacho, José Dias da Costa, mas cujos filmes desapareceram - conta-se que Gramacho, desesperado com um incêndio em seu laboratório, jogou todo o seu trabalho nas águas da Bahia de Todos os Santos. Alexandre Robatto, Filho, desenvolveu melhor o seu pendor cinematográfico, quando partiu para a bitola de 16mm nos anos 40, e se dedicou ao registro documentário (A guerra das boiadas talvez seja o exemplo mais acabado desta fase). Vale ressaltar, que o trabalho cinematográfico feito por Robatto é um trabalho de aventura e heroísmo, considerando que na Bahia não existiam laboratórios que pudessem revelar os filmes, nem mesas de montagem, equipamentos para mixagem, enfim, nada: tudo tinha que ser feito, fora as filmagens, no Rio de Janeiro. É na década de 50 que realizou seus filmes esteticamente mais elaborados, a exemplo de Entre o mar e o tendal (1953), Xaréu e Vadiação (1955).

Robatto registrou acontecimentos e eventos marcantes da velha província da Bahia, a exemplo de Quatro séculos em desfile, quando da comemoração gigantesca dos 400 anos da fundação da cidade em 1949, um desfile monumental que se não tivesse sido filmado pelas lentes do cineasta ficaria apenas na memória de alguns sobreviventes ou nos arquivos empoeirados dos jornais. Chianca di Garcia, já uma celebridade, foi o organizador geral da manifestação cívica. Também no mesmo ano, na ocasião em que os restos mortais de Ruy Barbosa vieram do Rio para serem alojados no então recém-inaugurado Fórum, que dá nome ao ilustre jurista, o desfile que acompanhou o carro está retido nas imagens de A volta de Ruy.

Os refrigerantes Fratelli Vitta produziram O regresso de Marta Rocha, em 1955, quando da volta à Bahia da formosa baiana que não conseguiu o pódio de Miss Universo por causa de "uma polegada a mais", como fala célebre música popular. Robatto, neste documentário precioso, mostra desde a chegada de Marta, num acanhado aeroporto provinciano, a sua passagem em carro aberto pelas ruas do centro histórico, uma festa em sua homenagem no Clube Bahiano de Tênis, e uma visita à fábrica de refrigerantes patrocinadora, que, além destes, fabricava também cristais da melhor qualidade e que eram, inclusive, exportados.

Seu filho, Sílvio Robatto sempre o acompanhou no itinerário da captação das imagens em movimento e é autor de alguns curtas, entre os quais, Igreja.

Dentista por profissão, o cinema era um hobby, que se tornou, com o passar do tempo, em importante referência para a história do cinema baiano. Não seria exagero dizer que Barravento (1959/1962), primeiro filme de Glauber Rocha no longa metragem, tem uma certa influência da estética robattiana.

Entre os dias 17 e 21 de dezembro, realiza-se, no Teatro Vila Velha, a Mostra Alexandre e Sílvio Robatto, com uma exposição de fotos e o lançamento de Sílvio Robatto, um homem feliz, escrito por Symona Gropper, além da exibição de dois filmes de Robatto e o documentário Os filmes que eu não fiz, de Petrus Pires. 

14 dezembro 2013

Lançamento de livros no Centro dos Correios

Os escritores Samarone Lima, Wellington de Melo, Plácido Villanova e Bernardo Almeida lançam seus livros, dia 18 de dezembro, quarta, no Centro Cultural Correios. A conferir.

11 dezembro 2013

"O Nono Mandamento", de Richard Quine

Há melodramas e melodramas. Muitos beiram ao dramalhão, ao apelo excessivo aos sentimentos, outros são refinados, sofisticados, chegam a nos causar estesia, como podem servir de exemplos os melodramas de Vincente Minnelli, Douglas Sirk, entre outros. Richard Quine, príncipe da sofisticação e da elegância, é um realizador notável, quer nas comédias, quer nos melodramas - Sortilégio do amor, Como matar sua esposa, Aconteceu num apartamento, Quando Paris alucina... Em O nono mandamento (Strangers when we meet, 1960), vídeo que está aqui na página, um arquiteto casado (Kirk Douglas) apaixona-se pela vizinha também do mesmo estado civil. Além dos dois principais, Barbara Rush e Walter Matthau, Ernie Kovacs. Partitura de excelência de George Dunning.

10 dezembro 2013

"Nasce uma estrela" reinventa o CinemaScope

A Warner lançou, já há alguma tempo (e parece que está esgotado), no mercado um DVD duplo contendo a versão restaurada de Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), de George Cukor, com interpretações inexcedíveis de Judy Garland e James Mason. Quando do lançamento do filme nos anos 50, a Warner, por achar excessivo um musical com três horas de duração, cortou 27 minutos, desfigurando, com isso, esta obra-prima. Há pouco mais de dez anos, um abnegado pesquisador do American Film Institut pediu ajuda à Academia de Artes e Ciências de Hollywood a fim de que esta solicitasse à Warner uma permissão para que o pesquisador desse uma busca nos depósitos da companhia. Atendido ao pedido, este começou a procurar e acabou por encontrar os 27 minutos cortados. Estragados, precisou restaurá-los, ficando três minutos apenas em fotos fixas pela impossibilidade de revivê-los no celulóide. Esse DVD duplo, portanto. é uma preciosidade, pois o resgate de um filme extraordinário, que assinala a maior interpretação de Judy Garland no cinema. Ela, na época, estava profundamente depressiva - sempre dependendo de álcool e barbitúricos e, para conseguir trabalhar no filme, fez um esforço enorme para se livrar das drogas. Tem um desempenho maravilhoso como Vicky Lester, a cantora que, descoberta por Norman Mailer (James Mason, soberbo), ator famoso de Hollywwod, e que se apaixona por ela, ascende ao estrelato enquanto Mailer, derrotado pelo alcoolismo, vê a sua decadência. Enquanto ela sobe, ele cai. É a segunda versão - e a melhor - dessa história - a primeira, dos anos 30, foi feita por William Wellman, com qualidades inegáveis já que este diretor era um especialista, mas a terceira, de Frank Pierson, com Barbra Streisand, de 1975, é um lixo. 

O cinemascope, que a Fox introduzira em 1953 em O Manto Sagrado (The Robe), mas que já havia sido inventado pelo francês Henri Chrétien há algumas décadas, não tinha ainda sido utilizado com um propósito estético e linguístico determinado até que Cukor fizesse Nasce uma Estrela. O cineasta revolucionou o cinemascope e mostrou uma utilização extraordinária de sua amplitude retangular em função do tecido dramatúrgico. O que pode ser verificado no número no qual Garland conta a sua trajetória - um dos maiores e melhores da história do cinema, que dura 18 minutos e foi, na versão anterior, cortado pela Warner, mas que na cópia do DVD está completamente restaurado. É preciso, porém, que a versão do DVD contemple toda a extensão da tela anamórfica, ou, então, seja formatado. Tudo em A Star is Born é uma promoção do encantamento, da beleza, apesar do tom trágico do final. É um filme sobre a mise-en-scène e, também, sobre o drama do alcoolismo, que se estende, aqui, para o drama da própria condição humana. 

Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistos em vídeo. Já obras que exploram grandes espaços, têm muitos planos gerais e de conjunto são prejudicadas na fita magnética. E existe o problema do filme originariamente filmado em cinemascope. Como sentir 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, na pequenez do aparelho doméstico? É simplesmente impossível. Neste caso, tem-se, apenas, uma idéia do filme. 


Se não fosse pelo aparelho de DVD, o cinema do pretérito somente poderia ser visto em cinematecas. E como aqui na Bahia não existem estas, o baiano ficaria a ver navios. Se, por um lado, a visão de um filme em digital não se pode comparar à sua contemplação na sala escura de um cinema, por outro, o cinéfilo tem a oportunidade de ver em  DVD - em alguns casos - quase toda a obra de um realizador importante, de estudá-la, de repetir as cenas, as seqüências, etc. Há, no mercado, quase três dezenas de fitas de Alfred Hitchcock. A nova geração, sem o advento do vídeo, estaria condenada a desconhecer grandes e imprescindíveis clássicos do cinema. Além do DVD, uma perspectiva se abre com as televisões a cabo e por assinatura que possuem canais especializados em filmes bons e importantes, funcionando como verdadeiras cinematecas. Já passou o tempo em que se faziam sacrifícios memoráveis para se ver um filme por acaso perdido no circuito. 

08 dezembro 2013

De John Frankenheimer: estilo e espetáculo


Diretor americano que ainda não recebeu a necessária valorização, a ser confundido (1930/2002), muitas vezes, como um realizador mediano e comercial, John Frankenheimer é um cineasta possuidor de um invejável sentido de composição plástica, dominando formalmente o veículo, com um ritmo, timing, surpreendente. Na engrenagem da indústria cinematográfica, todavia, vê-se obrigado a aceitar encomendas ditas comerciais, o que faz oscilar a sua filmografia entre grandes e menores momentos, nunca, entretanto, mesmo nos filmes mais fracos, sem deixar de apor a sua marca de realizador eficiente e impactual - é verdade que, no fim da vida, comete alguns pecados imperdoáveis, excetuando-se Ronin, como Amazônia em chamas, entre outros. Assim, Frankenheimer, quando um roteiro bom lhe é entregue, desenvolve-o com maestria na exposição de suas imagens em movimento. É um cineasta, portanto, que precisa ser melhor investigado para se poder conhecer as suas constantes temáticas e estilísticas. E isso, por ignorância de uma crítica somente capaz de enxergar os autores consagrados, ainda não aconteceu, excetuando-se alguns exegetas franceses que, diga-se de passagem, souberam captar a sua grandeza. No Brasil, porém, este diretor precisa, e urgentemente, ser redescoberto.

Este desconhecimento de Frankenheimer é bem revelador de uma crítica modista incapaz de investigar os filmes, se estes não chegam já firmados e devidamente cultuados, pois Frankenheimer não é um cineasta modista, não incursiona por termas “pós-modernos” e nem se preocupa com os assuntos que fazem a festa da patuléia (ou de uma certa patuléia) contemplativa. Seus filmes, sobre ser obras de construção dramática de uma funcionalidade extrema, podem ser considerados reflexões sobre a violência do homem contemporâneo. Que se veja aqui, portanto, a sua trajetória.

Este cineasta audacioso e impactuante - talvez, pelo domingo, esteja a exagerar um pouco, que dota a sua mise-en-scène de um fascínio crepuscular, nasce em Nova Iorque em 1930, estuda na Academia Militar de La Salle e faz parte da geração oriunda da tv nos anos 50, tendo sido assistente de Sidney Lumet (Doze homens e uma sentença). Começa a dirigir em 1956, com 26 anos de idade, emv No labirinto do vício (The Young Stranger), com James MacArthur e Kim Hunter. Passa, então, vários anos sem realizar um longa, o que só acontece em 1961 em Juventude selvagem (The Young savages), com Burt Lancaster e Dina Merril. É o mesmo Lancaster que faz, em 62, o papel-título de O Homem de Alcatraz (Birdman of Alcatraz), um filme não sobre a prisão, mas, importante, sobre a idéia da prisão; obra humanista e de fôlego. Nesse mesmo ano, considerado pelos produtores pela sua demonstração de talento, faz outro filme: O anjo violento (All fall down), com Eve Marie Saint e Warren Beatty. Findo este, ainda em 62, realiza um de seus melhores trabalhos, uma audaciosa previsão dos assassinatos Kennedy em Sob o domínio do mal (The mandchurian candidate), que provoca polêmica por causa de seu tom premonitório. Dinâmico, vigoroso, um thriller surpreendente, com Frank Sinatra, Janet Leigh e Laurence Harvey. Em 1963 descansa e não dirige nada para voltar, em 64, com outra análise dos bastidores do poder estadunidense: Sete dias de maio (7 days in may), com, novamente, Burt Lancaster e Kirk Douglas (um par de atores admirável) Substitui Arthur Penn e chega ao final de O trem (The train) e seu ator preferido, Burt Lancaster, ao lado de Jeanne Moreau (então uma musa do cinema europeu), encabeça o elenco.

Talvez a obra-prima de John Frankenheimer seja este filme realizado em 1966: O segundo rosto (Seconds), com um Rock Hudson irreconhecível como um intérprete seguro e eficiente. Estranho,Seconds mergulha no problema da crise do homem e do tempo, com um personagem que realizando uma operação plástica, muda de rosto, “deixando” a velhice para aparentar um quarentão. Obra de impacto quando de seu lançamento e que merece muitos elogios, mas filme completamente esquecido e que serve de demonstração do faro de Frankenheimer.

Ano rico, o de 1966, para Frankenheimer, pois neste período realiza Grand Prix, um filme fascinante sobre corrida de automóveis (quem pode esquecer o plano de detalhe dos olhos de Eve Marie Saint na grandiosidade dos 70mm?). Este filme foi exibido no cine Tupy logo após sua reforma em 1968 quando passou a projetar a bitola de 70mm.

Três anos de inatividade. O projeto de Grand Prix se torna demasiado puxado. Fica fora do ar por um tempo para, em 1969, construir uma comédia non sense bastante inventiva: O extraordinário marinheiro (The extraordinary seaman), com David Niven e Faye Dunaway. Logo em seguida um filme político e de denúncia: O homem de Kiev (The fixer), com Alan Bates e Dirk Bogarde. Ainda em 69, uma gozação e um trunfo como comediógrafo: Os pára-quedistas estão chegando (The gipsy moths), trazendo de volta Burt Lancaster ao lado de Deborah Kerr (uma atriz maravilhosa, aliás, que fez com Lancaster a famosa cena da praia de A um passo da eternidade, pois a mulher contemporânea, aputalhada, não tem mais a classe, a finesse, de uma Deborah Kerr, embora isto seja outra história).

A década de 70 se inicia com um Frankenheimer menor - mas que menor é este se é ainda muito bom?: O pecado de um xerife (I walk the line), com um Gregory Peck maduro e apaixonado pela quase ninfeta Tuesday Weld. Nesse mesmo ano, um épico menor: Os cavalheiros de Buskashi (The horsemen), com Omar Shariff e Leigh Taylon Young. Um inédito no circuito comercial, mas que aparece exibido na TV. História de uma história de amor (Impossible object, 72), com Alan Bates e Dominique Sanda, que são dois atores estupendos e ao que se pode perceber algo muito interessante para ver, embora se ficou proibido de ver pelas injunções do mercado exibidor. Em 1973, outro inédito: The iceman cometh, com Lee Marvin e Fredric March. Até o ultimo disparo (99 and 44%dead), exibido no antigo Bristol, é divertido e simpático, com produção datada de 74.

Frankenheimer aceita dirigir a sequência de Operação França e surge The french connetion II (75) mas, ao invés de um filme de ação (como fizera William Friendkin no primeiro), Frankenheimer mistura esta com devaneios à la Antonioni, principalmente no enfoque da angústia de Gene Hackman, o detetive Popeye. Domingo Negro (Black sunday), 77, filme que segue a crise existencial de Popeye, trata do terrorismo internacional e é de um impacto absoluto.

Reconheço que já no ocaso de sua vida, John Frankenheimer, sem o apoio de um sistema de estúdio eficiente, perde, também, força de metteur-en-scène, embora o esforço, a perspectiva de um novo filme que viesse a superar o outro, a tenacidade, e a coragem. Mas outros tempos. O melhor de Frankenheimer está, realmente, na década de 60, e não seria exagero dizer que O segundo rosto é uma obra-prima.


04 dezembro 2013

Crítica de cinema? O que é isso?

A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte.”
 ANDRÉ BAZIN

Creio que a tarefa dos críticos especializados em cinema – não considerando, aqui, os comentaristas meros aficionados – é a de atuar como mediadores entre a obra cinematográfica e o espectador comum, oferecendo um modelo de leitura da primeira e sublinhando os eventuais valores poéticos nela presentes. Refiro-me aos críticos que atuam em jornais e revistas ou que escrevem em suplementos culturais cujo público alvo não se restringe ao meio acadêmico. A função daqueles que escrevem sobre cinema é ajudar – e não complicar – ao leitor a percorrer o itinerário do filme com um mínimo de conhecimento lingüístico – de modo a permitir que se reconheça, durante o trajeto, aquilo que é importante e o que não o é. Uma função, portanto, que, mesmo antes de se reportar à apreciação estética da obra considerada no seu conjunto, incide sobre a sua sucessiva racionalização, quer dizer, a tradução em termos lógico-discursivos do sentido poético que ela exprime através dos procedimentos de significação que lhe são próprios.

(Percorro um itinerário de colunista no jornal Tribuna da Bahia desde agosto de 1974. Três décadas, que se completam no ano em curso. Neste período, tenho tentado escrever para o leitor, mas sempre procurando salientar que o filme somente pode se consolidar como obra expressiva, se houver, por parte do realizador, um ato criador na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica. De boas intenções, de boas idéias, o inferno está cheio. Um bom roteiro somente pode ser transformado em filme dotado de qualidades específicas quando existe o talento natural do cineasta na manipulação do processo sintático da lingüística fílmica. Se a crítica do passado – incluindo, aí, nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Alex Viany, entre outros, exceção se faça a Moniz Vianna, Almeida Salles e José Lino Grunewald – sempre estava a procurar o  elo semântico da obra cinematográfica, a crítica a partir dos anos 60, compreendendo, afinal, que o cinema é uma linguagem, concentrou-se na procura do elo sintático.)

Sempre que não se queira ficar pelo desempenho de uma mera atividade de informação cronística – como sói acontecer no fracassado e desesperado jornalismo cultural baiano, o crítico de cinema deve valorizar a obra examinada, fazendo emergir, dela, as suas valências ocultas e interpretando-as em ligação com o macrocontexto cultural em que a primeira vê a luz. Na condição, naturalmente, de que tal ação seja desempenhada com uma certa discrição a fim de garantir o respeito pelo texto fílmico contra o perigo de leituras forçadas e de distorções generalizadas – muito comum, aliás, nos neófitos que se arvoram em críticos nesta província da Bahia. De resto, a própria polivalência que caracteriza o filme, como sistema orgânico de sinais susceptível de múltiplas leituras, favorece a pluralidade interpretativa. Portanto, se o espectador normal se limita geralmente a ver um filme, o crítico lê-opor ofício e ajuda o primeiro a fazer outro tanto.

Porém, nesta sua função de intérprete e guia, o crítico de cinema deve contar com uma dificuldade resultante da natureza não-homogênea da linguagem escrita por ele utilizada relativamente à linguagem visual empregada pelo filme. Dificuldade esta que o intérprete dos textos literários não conhece, podendo entremear tranqüilamente o seu discurso crítico com o do texto analisado em virtude da identidade lingüística que preside a ambas as manifestações expressivas. Isto se mostra tanto mais intrigante quanto mais presente se tiver o caráter narrativo do filme, caráter assente nas outras artes visuais que também têm as suas práticas críticas correspondentes, não obstante serem igualmente irredutíveis às formas da linguagem verbal. A complicar ainda mais o caso está a natureza de linguagem sem língua – como gostam de dizer os semiólogos – que é típica do filme. De fato, a partir do momento em que não existe um sistema abstrato preeexistente ao filme, mas, apenas, obras fílmicas isoladas, não parece possível – como acontece, pelo contrário, na análise dos textos literários – estimar o eventual afastamento,  entre a parole-film e a langue-cinema, afastamento do qual derivaria a poeticidade do texto fílmico. Trocando em miúdos: é impossível distinguir entre um uso banal ou cotidiano da linguagem cinematográfica e uma sua utilização que obedeça a propósitos artísticos, e isto pela simples razão de que no filme o plano de  denotação coexiste sempre com o da conotação e que, por conseguinte, não existe um grau zero da escrita fílmica  a partir do qual se possam avaliar os eventuais afastamentos efetuados em sentido expressivo pela linguagem examinada.

(O que tento explicar acima me embasei em rudimentos de semiótica que são bem racionais no tratamento da crítica, embora reconheça valor naquela impressionista feita por homens cultos e inteligentes. Ainda que sem emitir, mas, nas entrelinhas, já emitindo, juízos valorativos, não acredito numa  cientificização da crítica cinematográfica, quando o analista mais se assemelha a um cientista pacientemente a procurar significados na obra cinematográfica e, com isso, destruindo não apenas a emoção do filme – essencial em toda obra que se queira de arte – como também o prazer de ler o resultado da investigação. Sigo, desde sempre, as palavras do eminente jurista Vicente Rao – sou também formado em Direito e advogado de carteirinha, embora não saiba entrar nos labirintos forenses, quando escreveu no volume 60 de seus comentários ao Código de Processo Civil: “A clareza tem o direito de fazer parecer superficial, mas que não se infira desse aviso a conveniência de ser obscuro para parecer mais profundo.”)

(O grande crítico José Lino Grünewald gostava de dizer: 'Cinema se aprende indo ao cinema'. Há de se adquirir o hábito de ver filmes, assim como se adquire o hábito de ler. É um processo que leva tempo o conhecimento cinematográfico. Existe, no curso universitário, uma disciplina chamada Crítica Cinematográfica, destinada aos alunos de Comunicação Social, que tem como objetivo precípuo a ilustração sobre o que isto significa e, também, para dar a conhecer os textos dos grandes críticos e pensadores da arte do filme. Mas, interessante observar, muitos alunos pensam que, num semestre, podem se tornar, fazendo-a, críticos de cinema. Ledo e ivo engano. Serve, para aqueles que realmente se interessam, como um primeiro passo, um empurrão, no sentido do despertar os vocacionados. A necessidade de se ter a habitualidade da contemplação fílmica é fundamental e para se conhecer cinema é preciso ver filmes e filmes. O que leva tempo. E ver com atenção, procurando estar sempre antenado com leituras paralelas de críticos qualificados - no Brasil, entre outros, e correndo o risco de omissão, considero Inácio Araújo, da Folha de São Paulo, um dos mais lúcidos e conscientes, pois possui, como poucos, sentido aguçado dos procedimentos cinematográficos, do timing e, principalmente, da natureza específica da arte cinematográfica. Poderia dizer que Luiz Carlos Merten, este do Estadão, também é um excelente crítico. E na área propriamente dita da Teoria Cinematográfica o grande mestre é Ismail Xavier, ensaísta de erudição - seu livro O discurso cinematográfico é exemplar raro e quase ninguém no Brasil pensou a natureza do cinema como ele, ainda que se possa discordar de seus pontos de vista.)

Em suma, deve-se deixar à viagem fílmica toda a sua componente de prazer se quisermos que não se transforme num calvário em direção à crucificação final da fábula e do respectivo discurso. O academismo e o preconceito são tão mortais para o cinema como para a vida.

01 dezembro 2013

O Processo de (des)integração social em quatro filmes brasileiros

Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos
Terra em transe, de Glauber Rocha

O Processo de (des)integração social em quatro filmes brasileiros: “Vidas secas”, “Deus e o diabo na terra do sol”, “Terra em transe” e “Cidade de Deus”

Por Jorge Moreira (Professor, Ph.d, em Wisconsin, Estados Unidos)

Este texto foi inicialmente lido pelo autor na conferencia de  NCCLA (North Central Council of Latin Americanists), realizado em Setembro de 2013m  na University of Wisconsin-Stevens Point.

O Brasil (de acordo aos dados de 2011) é o país com a sexta maior economia do mundo capitalista, e, por sua vez, é um país em que o crescimento das favelas e da violência urbana tem sido uma realidade em desenvolvimento nas suas grandes cidades. O discurso oficial nacional, ideologicamente hegemônico (propagado pelo governo, pela grande média, pelas agências e secretarias de turismo, pelos consulados brasileiros no exterior, pela FIFA ), enfatiza a cara rica e bem-sucedida do país do futebol e da Copa do Mundo de 2014, mas esconde e/ou deixa de mencionar a outra cara da realidade brasileira: a cara da pobreza, da fome, da miséria, fenômenos socioeconômicos que são geradores do processo de migração rural-urbana, e da consequente formação de favelas, do desenvolvimento do narcotráfico e da radicalização da violência nas grandes cidades brasileiras.
Afortunadamente, ainda existem espaços socioculturais, onde pode-se observar a presença de discursos contra-hegemônicos, discursos que questionam o discurso oficial e opõe-se à ideologia da classe dominante (neoliberal e/ou populista e social-democrata) dentro do sistema capitalista brasileiro. Entre esses espaços contra-hegemônicos, se encontra especialmente, o que foi iniciado, faz mais de 40 anos, pela produção cultural do “Cinema Novo”, e que tem sido responsáveis pela elaboração (direta ou indireta) dos discursos de resistência do cinema nacional à dominação capitalista neoliberal e imperialista no Brasil.
                Assim, gostaria ressaltar a importância deste espaço da produção cultural do cinema brasileiro, revisitando quatro exemplos de discursos contra-hegemônicos bem realizados no Brasil. Comentarei quatro filmes que teem sido colocados, por um setor da crítica brasileira e internacional, como símbolos da imprescindível discussão nacional sobre os temas: da concentração da terra e do ingresso nacional; do aumento da migração rural-urbana e do crescimento das favelas, do desenvolvimento da violência e do narcotráfico nas grandes cidades brasileiras. Como sabemos, a representação desta realidade sócio-econômico-cultural pelas narrativas ficcionais (tanto na literatura, no cinema e nas outras artes), foi sistematicamente censurada e reprimida pelo poder da ditatura militar, que durante 21 anos destroçou culturalmente o Brasil.
Os quatro filmes que passarei a comentar são: Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em transe de Glauber Rocha e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Penso que estas quatro representações mostram que o discurso institucional que afirma a realidade da "integração nacional", acaba por ser exatamente o oposto: uma mitologia discursiva elaborada para esconder os graves problemas da corrupção, da fragmentação e da desintegração da identidade nacional por via da dominação, da exploração, da opressão, da discriminação e da exclusão da maioria da população brasileira dos benefícios logrados pelo aumento da riqueza nacional que tem sido produzida pelas classes trabalhadoras do Brasil:
Vidas secas é um filme brasileiro de 1963 dirigido pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos. O roteiro está baseado no romance do mesmo nome do escritor brasileiro Graciliano Ramos. Vidas Secas conta a história de uma família de imigrantes nordestinos que pressionado pela seca e pela miséria,  tem de empreender uma longa caminhada a procura de meios para matar a fome e sobreviver no sertão. O inicio do filme mostra uma família de quatro pessoas caminhando pelo leito de um rio seco: Fabiano, o pai, sinhá Vitória, a mãe, dois filhos menores e um cachorro chamado Baleia. Depois de caminhar por muitas léguas (quilômetros) pelo rio seco, a família chega a um casebre dentro de uma fazenda que parece abandonada.
Quando a chuva chega no sertão, reaparecem as pastagens e o Coronel Miguel, proprietário das terras (uma fazenda) onde se encontra a família de Fabiano, retorna ao local trazendo a sua boiada (cabeças de gado). Quando o coronel descobre que a família está vivendo nas suas terras decide expulsa-los, mas Fabiano fala que é bom vaqueiro e que pode ajudar a cuidar do gado além de realizar vários serviços na fazenda. Vendo a oportunidade de explorar e tirar vantagem do vaqueiro, o proprietário Miguel permite que Fabiano e sua família trabalhem e vivam na fazenda. Fabiano e a família esperam prosperar com o trabalho realizado nas terras do patrão: Sinhá Vitória sonha em possuir uma cama de couro e Fabiano imagina que será capaz de comprar umas cabeças de gado com o dinheiro que sobrar do seu trabalho. Quando Fabiano, depois de meses de trabalho, aparece na casa do patrão pra “acertar” as contas, Fabiano é enganado e roubado pelo coronel Miguel. Assim, ao fim de um quase um ano de labuta e sofrimento, Fabiano e sua mulher se dão conta de que, apesar de todo o trabalho realizado nas terras do coronel, a pobreza continuará sendo a “seca realidade” da família. Quando a seca retorna, Fabiano, a mulher e os dois filhos se encontram, no final do filme, na mesma situação do início do filme: pressionados pela seca e pela miséria, eles terão de emigrar, mais uma vez, na esperança de encontrar uma sorte melhor na vida.
 Neste ponto, gostaria de comentar uma sequência de cenas que me permitirão fazer uma pequena analise sociológica da representação das relações sócio-econômica-cultural, destacando o campo semântico através dos termos (signos) que funcionam como as coordenadas essenciais do filme do Nelson Pereira.
A sequência de cenas destaca a relação de opressão socioeconômica entre o coronel (dono das terras, do gado e de gente) e o vaqueiro Fabiano. Fabiano (o polo dominado e explorado), chega à casa do coronel (o polo dominador e explorador) para “acertar as contas” referentes ao seu trabalho de vaqueiro, mas durante o “acerto das contas”, o coronel paga-lhe menos dinheiro do que era devido. Percebendo a injustiça, o erro, e/ou engano, Fabiano reaciona falando pro coronel que a sua mulher Sinhá Vitoria, que sabe contar, tinha feito as contas, e as contas do patrão estavam erradas, que a quantia de dinheiro que o coronel estava dando-lhe não correspondia ao que ele tinha ganhado. Ai o coronel não gosta do questionamento de Fabiano, fala que as suas contas estão certas, e implicitamente Fabiano fica ameaçado de perder seu trabalho. O vaqueiro aceita o dinheiro que o patrão lhe paga e sai desmoralizado da casa do coronel. Ou seja, dentro das relações de propriedade, de dominação e de exploração estabelecida pelo sistema de propriedade na área rural, o coronel tem direito de abusar de Fabiano, legitimando o nível de opressão que estava já estava implico no início do “acordo” (contrato verbal de trabalho) entre o coronel e o vaqueiro.
Se colocarmos nossa atenção não somente nas imagens em movimento mas no campo semântico do filme Vidas Secas, podemos obter um campo semântico (sem intenção de esgotá-lo)  formado pelos oposições campo/cidade; fome/fartura; pobreza/riqueza; proprietário/não proprietário; dominado/dominador; explorador/explorado; injustiça/justiça social que articuladas permitirão a compreensão da globalidade do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme brasileiro de 1964, escrito e  dirigido pelo cineasta Glauber Rocha. O filme tem sido considerado por parte da crítica nacional e internacional como uma das obras-primas do cinema novo e nacional  e um exemplo fundamental da “Estética da Fome”.
Este filme conta a história do vaqueiro Manuel e sua esposa Rosa que vivem uma vida extremamente dura no sertão, trabalhando para o coronel Morais. Mas Manuel tem um plano: ele quer usar todo os recursos obtidos na futura partilha de gado para comprar um pedaço de terra para ele e Rosa. No entanto, quando Manuel leva o gado para a cidade, alguns animais morrem na estrada. Quando chega o momento da partilha , o coronel Morais diz que não vai lhe entregar nenhuma cabeça de gado , porque as vacas que morreram ao longo do caminho pertenciam a Manuel.   
Inconformado, Manuel questiona a arbitrariedade e a injustiça do coronel Morais contra ele. Mas o coronel Manuel não tolera questionamentos e pegando o chicote, começa a chicotear Manuel. Indignado e cheio de raiva, Manuel se revolta e mata o coronel com seu facão. Logo, Manuel tem que fugir da perseguição dos capangas de Coronel. Manuel e sua esposa abandonam a casa onde moravam e decide se juntar ao grupo religioso liderado pelo profeta negro (o santo Sebastião) que procura encontrar o  caminho do paraíso depois da morte. Ele profetiza que o “Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão”. Incomodados pela presença dos fanáticos de Sebastião, os latifundiários e a igreja católica decidem contratar o jagunço Antônio das Mortes para perseguir e matar a Sebastião e a todos os seus seguidores.  
Mas, antes de Antônio das Mortes chegar ao local para matar Sebastião, Rosa, numa reação contra o santo por haver sacrificado (assassinado) uma criança recém nascida no altar de uma igreja,  assassina Sebastião com o punhal usado para o sacrifício. Agora, Manuel e Rosa ficam sem alternativa, e, mais uma vez, terão que fugir para evitar serem assassinados por Antônio das Mortes. Assim, Manuel e Rosa se juntam ao grupo de cangaceiros liderados por Corisco e sua mulher Dadá .
Não vou continuar narrando o filme, mas existe uma sequência de cenas que eu gostaria de comentá-la sucintamente: 
O vaqueiro Manuel se encontra com o coronel Morais para “acertar as contas” (fazer a partilha das cabeças de gado). Manuel informa-lhe que algumas vacas morreram por mordidas de cobras.  O coronel diz ao vaqueiro que não tem nenhuma conta para acertar porque todas as vacas que foram mordidas de cobra pertenciam a Manuel. Este reage dizendo que as vacas mortas tinham a “marca do ferro”  dele. O coronel  não aceita as evidências e tratando de impor  sua autoridade fala:
”Já disse e está dito. Você não tem direito a vaca nenhuma e a lei está comigo.”
Manuel não aceita a autoridade do que foi dito pelo coronel e responde: “Que lei é essa que não protege o que é meu?” O coronel Morais com a “dignidade” supostamente ofendida, retruca. “Tá me chamando de ladrão?” Manuel desabafa: “foi o senhor que falou”. Então o coronel Morais agarra o chicote e começa a chicotear o vaqueiro impondo o seu poder: “Isso é pra você apreender”. Manuel, reage tira seu facão da algibeira e mata o coronel a golpes de facão. Assim, a revolta do vaqueiro Manuel (a diferença do vaqueiro Fabiano) contra a dominação e exploração do coronel Morais acaba na morte do dominador e explorador.
Apesar dos paralelismos de algumas situações e processos comuns (similaridades) aos dois filmes, existem entre Vidas Secas e Deus Diabo na terra do Sol, algumas diferenças que transformam o filme de Glauber, na minha opinião, numa concepção/realização muito mais complexa e profunda (tanto temática quanto formalmente) que o filme Vidas Secas. Enquanto neste, a relação de dominação e exploração se limita a relação entre o coronel Miguel e o vaqueiro Fabiano, entre o policial e Fabiano, em Deus e o Diabo na Terra do Sol a relação de dominação e exploração incluem  não somente a relação entre o coronel Morais e vaqueiro Manuel, mas também as relações de dominação e exploração entre o Santo Sebastião e o povo devoto, entre a igreja e os coronéis de um lado e Sebastião, os cangaceiros e Antônio das Mortes do outro. Incluem também a relação de dominação e exploração entre Corisco, o chefe dos cangaceiros e o vaqueiro Manuel.   
Assim, se colocarmos, nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, podemos obter um campo semântico (sem intenção em esgotá-lo) que se parece ao de Vidas Secas, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; proprietário/não proprietário; dominador/dominado, explorador/explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições tal como conformismo/rebelião; povo/classe média; fanatismo/religião oficial; coronel/jagunço, coronel/cangaceiros, que articuladas às anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Terra em Transe é um filme brasileiro de 1967, também escrito e dirigido por Glauber Rocha. Os filmes Terra em Transe e Deus e o Diabo na Terra do sol são considerados duas obra primas, como os melhores filmes não somente do “Cinema Novo”, mas de toda a história do cinema nacional brasileiro.
O filme (narrado numa forma complexa não linear) conta a história do poeta, jornalista e o jovem político Paulo Martins (Jardel Filho),  num país imaginário (Eldorado) que se encontra dividido entre as forças políticas do senador Porfírio Diaz (um político colonialista / imperialista) vendido à multinacional Explint, e as forças políticas do governador Vieira (um político demagogo e populista).
Depois de abandonar seu amigo Porfirio Diaz, Paulo Martins deixa a capital de Eldorado e vai para a província de Alecrim. Neste local, Paulo começa a acreditar no discurso reformista do político Vieira e com a ajuda de Sara, uma ativista do Partido Comunista, decide trabalhar para eleger Vieira como governador do estado, na esperança de que Vieira usaria o poder conquistado para defender os interesses do povo oprimido ( Felício e camponeses ) do local.
Após a vitória de Vieira, Paulo é atrelado pelo governo populista, mas pouco a pouco toma consciência da demagogia, da corrupção do governador e seus aliados. Pleno de contradições, Paulo começa a agir desesperadamente contra o poder fascista do ex-amigo Porfirio Diaz e contra o populismo do governador Vieira. Para se fortalecer, Paulo Martins faz um pacto político com Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), um empresário, supostamente representante da burguesia nacional, mas Fuentes entra no dilema: apoiar politicamente governador Vieira ou o senador Porfirio Diaz.  
Apesar de sua retórica nacionalista, Júlio Fuentes traciona as forças políticas ligadas a Paulo Martins e se associa ao capital estrangeiro apoiando o golpe militar fascista liderado por Porfirio Diaz. Paulo Martins, ainda tenta convencer o governador Vieira a resistir e lutar contra o golpe militar, mas o governador, covarde, se recusa a usar o poder para tomar uma decisão em benefício do movimento popular progressista.  
O filme Terra em Transe pode ser lido como uma alegoria da história do Brasil e de seu povo durante os anos da crise política que conduziu o país ao golpe militar de 1964 e a subsequente ditadura militar que foi imposta ao Brasil por 21 anos. Assim, a narrativa fílmica trata de representar, através  dos diversos personagens, as diferentes forças e tendências políticas que foram decisivas no Brasil daquele período. O filme faz uma crítica complexa de todos aqueles agentes e forças que participaram do processo político que conduziu o projeto popular ao fracasso, incluindo os vários movimentos da chamada esquerda brasileira, entre os quais se encontrariam os que atualmente estariam sendo representados pelas presidências de Fernando Henrique Cardoso e o PSDB e de Lula da Silva e o PT.
Não vou continuar narrando o filme, mas gostaria de comentar uma sequência de cenas que, na minha opinião, é muito importante para entender o tipo de relações de poder (as relações políticas de caráter populista), que se produzem e reproduzem sistematicamente e que parecem que levarão muitos anos para  serem superadas no Brasil.
A sequência de cenas mostra o governador eleito Vieira (acompanhado por Paulo Martins, seguranças e policiais) descendo o morro de uma favela brasileira para se encontrar com Felício (o líder grupo de agricultores) que, na posição oposta, vem subindo o mesmo morro (acompanhado da  esposa e um grande grupo de agricultores pobres, moradores da favela). Sem grandes efeitos visuais , o poder da sequência está, além da posição espacial dos personagens, na apresentação do espaço e no movimento da câmera: por um lado, a câmara mostra a amplidão do espaço ilimitado da nação brasileira, em oposição ao pequeno espaço restrito onde se processa o diálogo entre o governador e o camponês Felício. O movimento da câmera (aproximando-se e afastando-se dos personagens) ressalta as posições de poder dos dois grupos no espaço da negociação, através de detalhes significativos , como quando o governador Vieira ordena (com um sinal feito com sua cabeça e seu olhar) que os policiais isolem o líder Felício do resto do grupo de agricultores e, assim, enfraquecer o líder na negociação política que virá. Esta sequência também expressa a luta e a contradição de sentimentos latentes em ambos os lados. O jogo entre o claro/escuro da sequência de cenas, também evidencia o desconforto e angústia da confrontação. A colocação do governador Vieira e seu grupo no topo da colina sugere a posição de superioridade e a vantagem inicial que o grupo no poder trata de assegurar antes de enfrentar o grupo de agricultores.
O conteúdo e motivo do (des)encontro é manifestado no diálogo que desmascara a manipulação populista e a falta de caráter do governador e seus colaboradores quando (precisando de votos para ganhar a eleição) prometeram aos moradores da favela a regularização das terra ocupadas. Nesta aliança política, o povo acreditava que Vieira e seu grupo (quando chegassem ao poder) realizariam alguma forma de justiça social que lhes beneficiaria.
A seqüência finaliza quando o poeta Paulo Martins sentindo-se "ofendido" pela força de verdade das palavras de Felício (que questiona a honestidade política do governo), intromete-se no diálogo e começa a ameaçar o agricultor por ter "faltado ao respeito" ao governador. Paulo diz: "respeite o governador, Felício". Para se defender da arrogância de Paulo, a fala de Felício refere-se ao envolvimento do poeta no mesmo tipo de desonestidade política. Felício fala: "Dr. Paulo, o senhor prometeu ... Dr. Paulo” ... “Dr. Paulo, Você era meu amigo”... "Irritado com a verdade das palavras de Felício, Paulo, recorrendo à violência que o poder legitima, derruba e golpeia o líder dos agricultores, negando na fala, a promessa que tinha sido feita anteriormente, ao povo agricultor. "Eu não lhe prometi nada” , diz Paulo.
Se colocarmos, a nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Terra em Transe, podemos obter um campo semântico (sem intenção em esgotá-lo)  que se parece ao de Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; ; proprietário e não proprietário; dominador e dominado, explorador e explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições tal como arte/política; honestidade/corrupção; capital estrangeiro/nacional; imperialismo/nacionalismo: sociedade civil/ditadura militar; violência do estado/violência ante estado; populismo/neofascismo; povo, classe média, classe dominante; que articuladas as anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global e mais completa da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Cidade de Deus é um filme brasileiro dirigido por Fernando Meirelles. O roteiro está baseado no romance do mesmo nome do escritor brasileiro Paulo Lins. O filme concentra-se no processo de crescimento da marginalidade social nas favelas brasileiras e nas guerras que se desenvolvem entre as quadrilhas rivais e as forças armadas do Brasil, pelo domínio e controle do trafico de drogas na “Cidade de Deus", uma favela do Rio de Janeiro. O filme é narrado numa forma não linear e utiliza diferentes técnicas de edição e  tomadas de câmera.
Baseado na realidade , o filme Cidade de Deus conta a história de três gerações de delinquentes que vivem na favela ao longo de quase 30 anos, entre os anos sessenta e oitenta. A realização do filme  foi condicionada pelas relações de poder que sustentam o submundo marginal: os cineastas tiveram que buscar a aprovação e cooperação do chefe da favela para filmar na sua área de influencia, além de proporcionar condições de segurança adequadas para realizar as filmagens .
Desde uma perspectiva sócio-histórica, o filme Cidade de Deus representa acontecimentos que ocorreram num grande período de tempo, durante a vigência da ditadura militar que assolou o Brasil por 21 anos. O filme inicia-se com a primeira geração de bandidos formados por 3 jovens desempregados (Cabeleira, Alicate e Marreco, conhecidos como “o trio ternura”) que assaltam o caminhão de gás para obter dinheiro, mas é com a geração de Bené (irmão mais jovem do assassinado Cabeleira) e seu amigo Dadinho/Zé Pequeno que  a Cidade de Deus torna-se famosa pela produção  de criminosos terríveis ligados ao trafico de drogas. O jovem Buscapé (irmão mais jovem do assassinado Marreco), o narrador da história, procura evitar o trabalho criminoso, tornando-se um fotógrafo profissional para um jornal da cidade. À medida que o tempo passa, a Cidade de Deus se converte no espaço do tráfico de cocaína, do homicídio, da delinquência juvenil, da corrupção policial e da venda das armas  moderníssimas produzida por Israel e pelos EUA. As armas que são vendidas pelos policiais aos bandidos são os frutos da ajuda militar dos EUA à ditadura militar brasileira.
O ritmo acelerado do filme, facilmente consegue a atenção de um público jovem, apesar de sua extensão e diversidade de personagens e das histórias entrelaçadas. O filme começa mostrando as galinhas vivas sendo cortadas e cozinhadas para o almoço da banda do Zé Pequeno. Uma galinha foge e é perseguido pelos bandidos armados da quadrilha de Zé Pequeno (Dadinho). Durante a perseguição da galinha, eles encontram com o fotógrafo Buscapé, que acredita que a banda quer matá-lo. Então, num longo flashback, o filme representa as memorias do fotógrafo desde muitos anos atrás: ao tempo em que ele, Dadinho e Bené ainda eram crianças. Neste tempo, o grupo de três jovens ladrões, Alicate (irmão de Buscapé) , Cabeleira ( o irmão de Bene ) e Marreco , conhecido como Trio Ternura , aterroriza as empresas locais com vários ataques a mão armada. Como um moderno Robin Hood, eles compartilham dinheiro e tanques de gás roubados com os moradores da favela, que por sua vez, lhes protegem. Vários meninos idolatram o Trio. Um dos meninos, chamado Dadinho (futuro Zé pequeno) convence o Trio Ternura a roubar um motel. A banda concorda com o plano, com a condição de que não devem matar ninguém. Enquanto o Trio Ternura está assaltando os casais amorosos sem tiros, Dadinho(Zé Pequeno ), decide unilateralmente matar os ocupantes do motel. O assalto termina em chacina e chama a atenção da polícia e as consequências trágicas para o Trio Ternura: Cabeleira é assassinado pela polícia ao tentar fugir com sua namorada, Alicate é assassinado por Dadinho e Marreco entra pra igreja.
O tempo passa e alguns anos depois, enquanto Buscapé se junta a um grupo de jovens (da classe média carioca do bairro da Tijuca), que gostam de fumar maconha, Dadinho muda o seu nome para Zé Pequeno e, com seu amigo de infância Bené, estabelece um poderoso centro de distribuição de drogas. Zé Pequeno, na ambição de ser o único fornecedor de drogas da favela, inicia a guerra para assassinar os competidores inimigos. Consegue eliminar a todos os bandos inimigos, com exceção do bando de Cenoura, um amigo do seu sócio Bené.  Quando Bené decide abandonar o negócio da droga e é assassinado na sua festa de despedida, Zé Pequeno, decide prolongar a guerra e exterminar o bando de Cenoura. A guerra fica ainda mais trágica, quando Zé Galinha (um ex-exímio atirador do exército brasileiro) decide entrar para o bando de Cenoura para vingar o assassinato de dois familiares e a violação de sua noiva por Zé Pequeno. A luta se transforma numa guerra de extermínio quando Tio Sam, fornece (diretamente para os bandos inimigos de Zé Pequeno e Cenoura) as moderníssimas armas produzidas por EUA e Israel.
Não vou continuar resumindo o roteiro do filme, mas vou comentar sucintamente duas sequências de cenas que nos que permite associar o aumento da violência e das guerras nas favelas brasileiras à ditadura, a corrupção militar e ao imperialismo dos EUA e Israel.
A primeira sequência de cenas mostra na boca do Zé Pequeno ao Tio Sam tratando de vender-lhe  um pesado baú cheio de armas moderníssimas. Zé pequeno pergunta-lhe pela arma AR-15 que lhe havia encomendado. Tio Sam não tem a arma desejada por Zé Pequeno mas trata de enrolar e vender-lhe os outros tipos de armas tão mortíferas quanto a desejada por Zé Pequeno. Este se reta com a enrolação do vendedor,  expulsa Tio Sam da sua boca de fumo, apropriando-se das armas sem pagar-lhe um tostão por elas. 
A seguinte sequência de cenas mostra Tio Sam dentro de uma viatura policial explicando para o chefe dos policiais como as armas  foram tomadas por Zé Pequeno. O diálogo revela a relação entre eles, levando o espectador a  tomar consciência de que Tio Sam é apenas o mediador da venda de armas, o verdadeiro fornecedor das armas (produzidas por EUA e Israel) é a policia militar, já que as armas são tomadas da ajuda militar dos EUA à ditadura brasileira. A sequência finaliza com o chefe dos policiais assassinando o vendedor Tio Sam.
Quase no final, o filme apresenta Buscapé olhando os dois conjuntos de imagens que conseguiu  fotografar, sem ser visto: o primeiro conjunto de fotos mostra quando os policiais recebem dinheiro de Zé Pequeno em troca da sua liberdade; o segundo conjunto mostra o corpo de Zé Pequeno cravado de balas de revólver.
Dividido entre os dois conjuntos de fotos, Buscapé revela seu dilema: por segurança pessoal, vai publicar somente a foto do Zé Pequeno assassinado, mas num monólogo interior questiona: “Zé Pequeno já não vai chatear mais... e a policia? Em poucas palavras, ficando livre do poder dos bandidos, quem nos livrará  do poder dos militares? Chico Buarque cantava numa música: “Chame o ladrão”.
Assim, se colocarmos, nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Cidade de Deus, podemos obter um campo semântico (sem intenção de esgotá-lo)  que tem paralelismos ao de Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; proprietário e não proprietário; dominador e dominado; explorador e explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições como honestidade e corrupção polical; estrangeiro e nacional; imperialismo e nacionalismo: sociedade civil e ditadura militar; violência do estado e violência antiestado; populismo/neofascismo; marginal/povo/classe média/ classe dominante; desemprego/tráfico de drogas; guerra/paz;  que articuladas as anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global e mais completa da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
                Para finalizar, gostaria de destacar que a representação da realidade nacional brasileira pelo discurso artístico contra hegemônico influenciado pela literatura nordestina, pelas ciências sociais e pela crítica marxista da sociedade capitalista quase que desapareceu da produção cultural, devido à censura, à perseguição pela ditadura militar que foi imposta ao Brasil pelo golpe de 1964.
Porem ainda existem brasileiros que sabem que um discurso artístico (cinema, literatura, teatro) e crítico influenciado pela estética marxista deve responder a algumas questões: como a arte deve refletir a sociedade? Como a arte deve se constituir numa crítica da sociedade? Como a arte deveria prever uma sociedade utópica ideal e emergente? E este discurso era contra o discurso hegemônico e oficial da classe dominante do Brasil.
O declínio e ofuscação dos discursos críticos influenciado pela estética marxista está relacionado com a proliferação das ditaduras de direita (de corte neofacista) implantadas no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile durante os anos 60 e 70 da nossa história latino americana.  Como sabemos, um dos objetivos fundamentais da implantação de ditaduras de direita impostas pelo imperialismo de EUA  foi destruir o discurso marxista, o discurso revolucionário, mesmo que  para isso tivesse que destruir os agentes (sujeitos humanos) portadores desse discurso.
                Assim, durante os anos de vigência das ditaduras, os militares prenderam, sequestraram, torturaram e assassinaram a dezenas de milhares de militantes políticos, de estudiosos das ciências sociais, de investigadores científicos, de pedagogos, intelectuais e artistas cujo pensamento eram influenciados pelo marxismo.
Os militares estabeleceram o medo e o horror na nossa cotidianidade, queimando livros, invadindo campus universitário, censurando obras teatrais, filmes nacionais, poemas e letras da música popular brasileira(MPB). Por outro lado, para destruir aos simpatizantes do discurso marxista, tiveram de fazer uso não somente das metralhadoras e das balas, mas também de grandes somas de dinheiro para captação de professores e estudantes, para concessões de bolsas de estudo, para a criação de programas de pós graduação, para fundar novas cátedras e financiar novos editoriais para livros, revistas e jornais com seus  suplementos culturais, e seus programas televisivos como o da TV Globo.  Assim, podemos afirmar que enquanto alguns intelectuais marxistas revolucionários, como o cineasta Glauber Rocha, por exemplo, tiveram que fugir do Brasil para conseguir sobreviver no exilio, outros intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso, recebiam financiamento da fundação Ford e da CIA para fundar centro de estudos, publicar revistas e captar intelectuais de esquerda para a defesa do reformismo social democrata.  (Vejam o artigo do jornalista Sebastião Nery sobre o envolvimento de FHC com a CIA, em  http://tribunadaimprensa.com.br/?p=29078).
Dessa forma, os órgãos de espionagem como a CIA  e as montanhas de dólares dos EUA, foram usados para neutralizar a dissidência, captar consciências críticas e fabricar o consenso  requerido para continuar com a dominação e exploração capitalista neoliberal e imperialista.
                Durante e depois do período da ditadura militar, apareceram os discursos inócuos do estruturalismo, do pós-estruturalismo e do pós-modernismo. E enquanto estas suas ideias e ideologias foram muito bem recebidos no Brasil capitalista neoliberal, o discurso marxista foi completamente marginalizado do país, ao longo de varias décadas, por quase 40 anos. Dado que os discursos pós-estruturalista e pós-modernista, celebravam a “fragmentação”, a “dispersão”, os “micro relatos” e os “micro poderes”, estes discursos foram instrumentalizados para ajudar o discurso hegemônico a se posicionar dogmaticamente contra o discurso marxista resultante  do estudo e da investigação da “totalidade do modo de produção capitalista” com suas articuladas relações sociais fundadas na “dominação”, na “exploração” e  “opressão” do capitalismo imperialista (globalização).
Por isso, é necessário e urgente que as novas gerações possam ver ou rever os filmes brasileiros sobre a nossa realidade econômico social como os quatro mencionados.  Acredito que estes filmes poderão ajudar a tomar consciência da existência de discursos culturais alternativos que foram cancelados pela ditadura militar: discursos culturais contra-hegemônicos que ajudarão a aumentar o conhecimento e a resistência dos brasileiros tanto à globalização capitalista neoliberal, como às políticas culturais propagadoras da ideologia populista, reformista e pós-moderna,  como por exemplo, a propaganda do Governo e da FIFA em torno a realização da Copa Mundial de 2014 no país do futebol. Chegou a hora de que as novas gerações de brasileiros possam promover mais uma vez (“levanta, sacode a poeira e dar volta por cima”), um  pensamento político, sócio-econômico-cultural de corte transformador do Brasil: o pensamento dialético  marxista-revolucionário.