Gabriela Amaral de Almeida (ao lado de Maria do Rosário Caetano) fala, durante o 45 Festival de Brasília, sobre o processo cinematográfico de criação do curta metragem. O seu, A mão que afaga, recebeu 7 prêmios durante o mesmo festival.
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27 setembro 2012
26 setembro 2012
Nasce uma grande cineasta
Com o advento do digital, uma avalanche de filmes veio a perturbar o sentido crítico, que acaba por se diluir num mar de subprodutos. O tempo, sempre implacável, vai ser o melhor juízo. Há filmes e filmes. A maioria de uma mediocridade ululante - pelo menos os que tenho visto. Mas, no palheiro, existem agulhas de ouro, obras preciosas que, sobre serem médias ou curtas, não alcançam o mercado, limitadas que ficam aos eventos e festivais cinematográficos. Os filmes da baiana/paulista Gabriela Amaral de Almeida são pérolas: Náufragos, obra surreal com a última aparição da atriz Haydill Linhares, e Uma primavera, exercício sobre a percepção do outro através de um passeio bucólico de uma mãe e sua filha num parque paulistano e que, de repente, esta desaparece. Não vi A mão que afaga, que deu a Gabriela nada menos do que sete prêmios no recente Festival de Brasília. A mão que afaga conta o desafio vivido por uma mãe que planeja o aniversário de 9 anos do único filho. Pelo que se pode observar, Gabriela procura mostrar o gesto humano através de pequenos fatos cotidianos. O importante em seus filmes não é propriamente o que está dito, mas o como se diz. É o procedimento narrativo, a maneira dela articular os elementos da linguagem cinematográfica e um especial sentido de composição que fornecem o touch especial aos seus trabalhos. Há neles um especial olhar arguto pelas motivações dos personagens, um timing perfeito, um humor sempre presente no subtexto, um sentido do conceito de duração dos planos capaz de dotar seus filmes de um dínamo atrativo. Considero Gabriela Amaral de Almeida uma grande promessa para a realização do cinema brasileiro. Ela e Kleber Mendonça Filho. Os maiores de todos.
25 setembro 2012
A magia da comédia americana
Artistas e modelos (Artists and models, 1955), de Frank Tashlin, com Jerry Lewis, Dean Martin, Shirley MacLaine, reflete um belo momento da comédia americana em meados dos anos 50. Vejam aqui o final. Tashlin foi um comediógrafo de rara sensibilidade.
23 setembro 2012
Um crustáceo que virou cineasta
Homenagem a Agnaldo Siri Azevedo que, há 25 anos, viajou para o desconhecido. Sua partida seu deu em 30 de julho de 1997. Não comprou passagem de volta e, a rigor, nem mesmo a passagem. A Implacável simplesmente o levou. Deixou vários amigos, entre eles Tuna Espinheira, companheiro de idéias e de copo. Fica o registro e a saudade.
Quando da inauguração do Cinema do Museu (Corredor da Vitória), em outubro de 1996, um dos filmes apresentados foi O capeta Carybé, de Agnaldo Siri Azevedo. Finda a exibição, um coquetel reuniu os convidados e, lembro-me bem, fiquei a tomar uma cerveja, em pé, em companhia do autor do filme, e de seu iluminador, Vito Diniz, que, ano seguinte, morreriam e, apesar do lugar comum do dito, a deixar duas imensas lacunas para o já anêmico cinema baiano. Não sabia que, naquele momento, estava vendo, pela última vez, os dois cineastas. A Implacável, como mostrou Ingmar Bergman em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), não perdoa ninguém. Siri, sobre ser um profissional de cinema de primeira ordem, com um curriculum vitae composto por trabalhos em importantes filmes de Glauber Rocha, notabilizou-se como um dos mais expressivos documentaristas da realidade baiana. Vito Diniz fotografou quase todos os filmes realizados nesta soterópolis, desde os tempos de Meteorango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, passando pelos curtas metragens e até incursões no famigerado superoitismo. Iluminador de excelência, por teimar em não sair de Salvador, deixou de ser registrado como um dos melhores fotógrafos do cinema brasileiro, ainda que o seja.
A Trigésima Quarta Jornada Internacional de Cinema da Bahia prestou uma homenagem a Agnaldo Siri Azevedo pela passagem do décimo ano de sua morte, ocorrida em 1997, mesmo ano no qual também foi embora o grande Vito Diniz. Na oportunidade, além de uma exposição, entre outras atividades, foi programada a exibição de um documentário de Roman Stulbach, que focaliza os filmes e a trajetória de Siri. E quem o realizou foi um amigo do homenageado, além de montador de seus filmes.
Na década de 70, quando o Ciclo Bahiano de Cinema (A grande feira, Barravento, Tocaia no asfalto, outros) e o chamado surto underground(Meteorango Kid, Caveira my friend, outros) já eram favas contadas, e o Brasil imerso nos seus anos de chumbo, com a ditadura Médici, o cinema baiano se encontrava numa calmaria imensa, excetuando-se um ou outro projeto esporádico, e, entre eles, Akpalô, de José Frazão e Deolindo Checcucci, O anjo negro, de José Umberto, longas, e pouquíssimos curtas. O surgimento das jornadas baianas a partir de 1972, sempre realizadas num espaço quase consular, como o era o Instituto Goethe (Icba) contribuiu para ativar o ânimo dos cineastas baianos e, a estes, possibilitar o contato com outros realizadores do eixo Rio-São Paulo.
Mas foi preciso que se descobrisse o Super 8 para que se instalasse, aqui, uma movimentação maior em torno do que se queria como expressão pelas imagens em movimento. O embrião dos atuais realizadores que proliferam no panorama do cinema baiano contemporâneo se encontra no superoitismo, pois superoitistas foram Edgard Navarro, José Araripe, Marcos Sergipe, Fernando Beléns, Carlos Modesto, Cícero Bathomarco, e o pessoal do Grubacine. Todo mundo queria fazer o seufilmeco e houve uma espécie de coqueluche, que atordou bastante os freqüentadores das mostras competitivas das jornadas, porque havia, nelas, filmecos de mais de uma hora de duração e sem uma estrutura audiovisual que se pudesse aceitar como um filme.
O cinema baiano estava, portanto, dividido entre duas vertentes: a dos documentaristas, que abominavam as incursões superoitistas (Agnaldo Siri Azevedo, Tuna Espinheira, Timo Andrade, Celso Campinho, Roberto Gaguinho, Chico Drummond, entre outros) e a dos superoitistas (os citados acima e mais). Chegou-se até à fundação de duas associações ditas de cineastas: uma, de profissionais, congregando a ala dos documentaristas, e outra, que congregava os superoitistas. As duas não se bicavam.
Agnaldo Siri Azevedo, porém, continuava a fazer seus documentários, a apreender o pitoresco da cultura local. Embora outros também seguissem seu exemplo, o capitão do time dos documentaristas era Siri, secundado por Tuna e seus coadjuvantes. Isto quer dizer: o fato indiscutível é que Siri inaugurou uma escola de documentário – ainda que a seguir as lições da Caravana Farkas - cujos desdobramentos se fizeram logo sentir em filmes de outros realizadores baianos. A rigor, após ter sido, nos anos 60, diretor de produção e assistente de Glauber Rocha em Barravento, Deus e o diabo na terra do sol, Terra em Transe, entre outros, quando quase se pensou que o velho crustáceo fosse se aposentar, eis que aparece, em 1969, com Dança negra, um documentário seu, com um olhar particular sobre um aspecto da cultura.
Incentivado, Agnaldo Siri Azevedo realiza uma feliz adaptação da poesia de Gregório de Mattos e Guerra, que, dita por Emmanoel Cavalcanti, em trajes de época, a gritar pelos becos e ruas da Bahia os versos do poeta, configura O Boca do Inferno 1974), que de tanto apreciado fez-lhe realizar, anos depois, um segundo filme. A partir de O Boca do Inferno é que começa a colecionar prêmios das jornadas baianas. A seguir vieram: As Philarmonicas (1975), Carbonato ou Xique-Xique de Andraí: Cidade Fantasma (1976), com Clyde Morgan, dançarino americano, que executa uma performance minimalista na arquitetura colonial da cidade.
No ano seguinte, foi a Ilhéus, com o já também desaparecido Rony Berbert de Castro, para filmar Creio em ti, meu São Jorge de Ilhéus, que documenta o lugar imortalizado por Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela. Quase um filme por ano em seu período mais fértil. O mundo de Seu Nestor, por exemplo, de 1978, resgata um anônimo, um homem que fabrica a sua própria cerveja e vive para o seu universo interior. E continua: Anistia (1979), Sem saída (1980), este com desenhos de Calazans Neto sobrepostos às suas imagens, que apresentam o estado de calamidade a que chegou, na época, a doença de Chagas. Aliás, o artista Calá seria, anos mais tarde, objeto de um documentário especial:Calazans Neto: mestre da vida e das artes (1987). Ainda no despontar da década de 80, outro filme, outro documento: Zambiapunga de Cairu - Festança de Outrora. O ano de 1980 foi um ano feliz para o crustáceo, pois conseguiu ainda realizar um terceiro filme, que é o citado opus 2 sobre Gregório de Mattos.
E vieram: Suíte Bahia (1983), Memória de Deus e o Diabo em Monte Santo e Cocorobó (1984), documentário cheio de alegorias que tem a participação do poeta (também já extinto) Carlos Sampaio – que quase na mesma época trabalhou em O mágico e o delegado, de Fernando Cony Campos, filmado em Cachoeira. Ainda e no mesmo ano: Não Houve Tempo Sequer Para as Lágrimas. A seguir: Adeus Rodelas (1969), registro pungente dos últimos momentos de uma cidade que seria inundada pela barragem de Sobradinho.
Depois que fez, em 1990, A chuva que veio do chão, um hiato se abriu na filmografia de Siri, vindo a retornar a filmar somente em 1996, com a sua obra-prima, O capeta Carybé. Acredito que os primeiros anos da década de 90, com a caneta collorida que aboliu, de um só golpe, a Embrafilme e o Concine, o fazer cinema no Brasil ficou difícil até meados de seu decurso, quando da retomada do cinema brasileiro.
A filmografia de Agnaldo Siri Azevedo possui seus temas recorrentes (o registro da cultura baiana em todos os seus aspectos) e um estilo de documentário que preza mais o objeto documentado do que o brilho narrativo exterior ao documento querido.
21 setembro 2012
Tuna e o Acervo da Lage
| O cineasta baiano Tuna Espinheira no Acervo da Lage conversa com Dinho |
"É sabido que os primeiros passos sempre foram necessários para a caminhada, de qualquer espécie, incluindo aí as léguas tiranas. Então resolvi considerar, como o primeiro chute, nossa visita ao Acervo da Lage (vide fotos em anexo), um oásis criado por José Eduardo Ferreira. Em co-produção com a empresa produtora, Larty Mark, do produtor Tanal Moura Estamos captando recursos para esta Utopia Cinematográfica.
Como o cinema jamais teve vocação para a clandestinidade, estou botando na tela do seu blog, partilhando os olhres públicos sobre este nosso projeto. Como toda produção independende, com carencia de parcerias.
Já saíram algumas notícias no FaceBook, em decorrencia, recebi algumas mensagens solicitando mais esclarecimentos do assunto a ser documentado. Não tendo ainda um roteiro devidamente desenhado, posso, tão somente, alinhavar uma poucas linhas. Será um filme perscrutando/registrando o invisível. E que, o Subúrbio Ferroviário (onde fica os Novos Alagados), embora pertencente a Cidade Mãe-Salvador, existe mais é invisivel. Este é o nosso principal desafio: interagir com este pedaço sempre desfocado no retrato do município.
Por enquanto é o que tenho a dizer, acrescentado que, O Professor e Escritor José Eduardo Ferreira, nascido e criado lá, será personagem, guia e co-autor do roteiro. Para complemento vai aí algumas fotos e, principalmente a cópia da aprentação do seu livro: Novos Alagados, urdida e assinada por Antonio Candido.
Que transcrevo abaixo as sábias palavras de um mestre como Antonio Cândido:
Que transcrevo abaixo as sábias palavras de um mestre como Antonio Cândido:
Apresentação
Já faz alguns
anos que venho acompanhando com interesse e emoção a atividade de José Eduardo
Ferreira Santos, educador que encarna o aspecto mais nobre e difícil da prática
pedagógica: a formação de meninos, meninas e adolescentes de ambos os sexos que
vivem em condições adversas, como a penúria econômica e o risco de
marginalização social, ao ritmo de um cotidiano de brutalidades.
Graças ao seu
ânimo solidário, José Eduardo concebe o ato educacional como estimulo para
conquista da liberdade pelo próprio educando, na moldura de uma visão ao mesmo
tempo realista e utópica das possibilidades abertas pela convivência, mesmo que
seja no universo negativo da privação. Por isso, rejeita as formulações
consagradas e as concepções de elite, voltadas geralmente para uniformizar e
dissolver o indivíduo nas expectativas mais conformistas da classe e do grupo.
Identificado às necessidades profundas das comunidades marginalizadas, ele
procura associar a aquisição dos saberes ao aproveitamento do que se poderia
denominar “culturas vividas”, que correspondem ao modo de ser das
coletividades. Daí a utilização de práticas lúdicas e festivas do povo, bem
como das tradições africanas como fatores educacionais, à luz de uma concepção
integrativa.
A pedagogia de
José Eduardo e seus companheiros é, por isso, essencialmente humanizadora, ao
conceber a socialização, ao conceber a socialização, não como enquadramento e
conformismo, mas como conquista pelo educando da autonomia de pensamento e
opção. É admirável no seu trabalho o contraste entre a luta pela realização de
cada um e o peso opressivo do meio, que atua em sentido contrário, devido a
fatores que desumanizam, como a pobreza e a violência.
Educadores do
porte de José Eduardo e seus companheiros mostram que é possível uma pedagogia
capaz de realizar a verdadeira “promoção humana”, fazendo desabrochar a
liberdade individual em harmonia com os valores positivos da coletividade.
Antonio Cândido
20 setembro 2012
Dialética do amo e do escravo
Lançado no Brasil com dez anos de atraso (em 1973, no desaparecido Cinema I da rua Prado Junior, Copacabana, Rio de Janeiro), O criado (The servant, 1963), obra-prima de Joseph Losey, cineasta maior, é, segundo as palavras de Claude Beylie, ensaísta, como todos os filmes de Losey, a história de um fracasso e uma destruição humana. E o realizador faz isso em termos de uma elegância refinada. A fábula é límpida: herdeiros de um mundo condenado, o escravo torna-se amo e vice-versa. Losey deleita-se com o espetáculo da desagregação. Com Dirk Bogarde, James Fox, Sarah Miles, Wendy Craig. Roteiro de Harold Pinter. Partitura (bela, envolvente, como se ouve no vídeo) de John Dankworth.
17 setembro 2012
As aparições de Alfred Hitchcock
O mestre Alfred Hitchcock assinava os seus filmes através de suas aparições. Marca registrada de Hitch, estas aparições, há, nelas, sempre um toque de humor, sempre um comentário irônico sobre o ridículo ao qual é exposto o homem nas mais variadas situações de sua vida. Neste vídeo, que dura quase dez minutos, temos as aparições do cineasta em quase todos os seus filmes. Há poucas semanas, a revista inglesa Sight and Sound, numa enquete com os mais representativos críticos, diretores, ensaístas, de todo o mundo, elegeu Um corpo que cai (Vertigo, 1958) como o maior de todos os tempos, derrubando do pódio Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, que há muitas décadas encimava todas as listas. O tempo, implacável, no entanto, é realmente o melhor crítico. Enquetes feitas nos anos 50, por exemplo, nunca dariam Vertigo entre os melhores. Os cabeças-pensantes da crítica viam de soslaio e de esguelha os filmes de Hitchcock, considerando-os apenas meros artesanatos bem articulados, mas na área restrita do divertissement. Federico Fellini, leio, não tem mais a valoração que tinha no passado (o que acho um absurdo). Fellini é um gênio do cinema e suas criações não estão a envelhecer. O que está em processo de deterioração é a mentalidade contemporânea.
16 setembro 2012
Ingmar Bergman e o silêncio de Deus
12 setembro 2012
Dino Risi: a inteligência a serviço da comédia
10 setembro 2012
Claude Lelouch e o poder da 'mise-en-scène'
A visão recente de Esses amores (Ces amours-là, 2010), de Claude Lelouch,
filme-síntese desse poeta do cinema, retrospectiva de seu processo de criação
cinematográfica ou, talvez (já que o cineasta tem 75 anos), obra de revisão e
afirmação de seu poder, imenso, de 'mise-en-scène', nos dá a medida exata de seu
talento. A fascinação do espetáculo e, ao mesmo tempo, a explicação de seu
fascínio. Um belíssimo filme, um dos melhores dos últimos anos. Que deve ser
visto em genuflexório.
Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista há 3 ou 4 anos, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).
O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.
Parisiense de nascimento, 75 anos (vai fazer em outubro), (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.
Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.
Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.
A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?
Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.
Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.
A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.
Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.
Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.
Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.
Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.
Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.
Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.
Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.
Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.
Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.
Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.
Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).
Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso
Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.
Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.
Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.
Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.
A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.
Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.
Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007). E este deslumbrante Ces amours-là, que sintetiza sua obra.
Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista há 3 ou 4 anos, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).
O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.
Parisiense de nascimento, 75 anos (vai fazer em outubro), (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.
Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.
Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.
A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?
Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.
Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.
A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.
Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.
Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.
Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.
Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.
Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.
Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.
Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.
Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.
Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.
Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.
Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).
Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso
Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.
Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.
Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.
Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.
A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.
Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.
Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007). E este deslumbrante Ces amours-là, que sintetiza sua obra.
05 setembro 2012
Alberto Silva: crítico e humanista
Nos anos 50 e 60, o nome de Alberto Silva era um referencial na crítica de cinema baiana, ainda que sem uma periodicidade muito regular como alguns de seus colegas dessa mesma época (Glauber Rocha e Jeronimo Almeida - pseudônimo de José Gorender no Jornal da Bahia, Hamilton Correia no Diário de Notícias, José Augusto Berbert de Castro em A Tarde, entre outros. Com a homenagem que prestei aqui, neste blog, ao velho guerreiro Athayde, vim a saber da morte de Alberto Silva ocorrida há alguns anos. O desconhecimento, tudo indica, provocado pela ausência absoluta de informações na imprensa baiana, que omite. sempre e sempre, os falecimentos de baianos célebres - por ignorância, falta de memória. Acredito ser ainda tempo de as Quartas Baianas vir a prestar uma homenagem a Alberto Silva e, também, a Carlos Alberto Vaz de Athayde. Nascido em 1940 (dez anos mais velho do que eu), Alberto Silva, se morreu há dois anos, desapareceu com 70 anos, mas já abatido e doente. Lembrando o bravo guerreiro da crítica baiana, publico aqui algumas informações sobre Silva. Vale lembrar que Alberto Silva foi um grande amigo de Athayde.
Jornalista
profissional, Alberto Silva nasceu na Bahia a 23 de março de 1940. Em Salvador,
foi presidente da Associação dos Críticos Cinematográficos, diretor do jornal
Cinema Novo e da Revista da Bahia. Radicados no rio de Janeiro durante anos de
sua vida, atuou como crítico cinematográfico de Correio da Manhã, Última Hora,
Tribuna da Imprensa, Jornal do Commercio e como crítico literário de O Globo.
Foi verbetista da Enciclopédia Mirador Internacional e colaborador das revistas
Filme Cultura, Cadernos Brasileiros e Cultura. Foi editor do jornal Letras &
Artes.
Dirigiu
os filmes Major Cosme e Hospedarias. Escreveu, em 30 anos de
militância cinematográfica, diversos argumentos, roteiros e cerca de dois mil
artigos e ensaios em colunas especializadas, suplementos literários e revistas
culturais de todo o país. Cinema e humanismo recebeu o prêmio de “Melhor
Ensaio” (1975) da União Brasileira de Escritores. E A primavera mora na rua.
A PRIMAVERA MORA
NA RUA (Editora Achiamé, 84 págs., Rio de
Janeiro, 1991.)
“Demonstra a
presença de um escritor com real possibilidade de vir a destacar-se, pois revela
criatividade, humour e calor humano, requisitos fundamentais a quem quer
que deseje seguir, conseqüentemente, a carreira de
letras.”
Ênio da
Silveira – Editora
Civilização Brasileira
CINEMA E
HUMANISMO (prefácio Alex Viany, 128 págs., Editora Palias, Rio de Janeiro,
1975).
“É um dos raros
estudos sérios sobre o cinema já escritos no Brasil, e tem inegável
mérito”
Otto Maria
Carpeaux
“É um alívio ler
um crítico, um ensaísta cinematográfico, que permanece firme nessa de ver com os
olhos e sentir com os sentidos – e, mais, olhos e sentidos tão brasileiros (e
descolonizados) quanto é possível alguém ter nestes 70 tão
multinacionais.”
Alex
Viany
“Enriquece a
nossa pobre bibliografia de cinema. (...) Não é um livro morno ou inocente: a
instigação polêmica está em todas as suas páginas. (...) Cinema e
humanismo é um apanhado sintético do cinema, de hoje e de ontem: visão
crítica e histórica, uma soma positiva para a bibliografia
brasileira.”
Assis
Brasil
“Bem escrito,
caloroso, com uma visão sintética do cinema brasileiro enquanto fenômeno
cultural no sentido mais amplo da palavra, isto é, sem perder de vista o
entrosamento da cultura com a economia e a sociedade como um todo. (...)
Eminentemente opinativo, possui base informativa suficientemente sólida para que
as opiniões ganhem valor objetivo, vibração inteligível e um grande poder de
movimentação de ideias. (...) Outra qualidade importante a assinalar no livro é
o tom quase didático mas nunca esquemático, que o torna muito útil para
estudantes de cinema ou jovens em geral interessados no conhecimento do fenômeno
cinematográfico.”
Miguel
Borges
Nunca mais
20 anos na
Bahia
Ronaldo
Werneck
Terrível é saber que
nunca mais terei vinte anos nem o corpo intacto como na Bahia de 64. Vinte anos,
eu pleno e pronto para todos os prazeres, tabálcoois & tabarizes. Leia-se
cigarro, cerveja & Tabariz: a diabólica boate daquela ladeira por trás do
Cine Guarany, aquela ali que o Jorge Amado vai retomar mais tarde — o “Novo
Tabariz” de seus futuros romances. Tabariz era sinônimo de “vadiar”, como fazia
o Vadinho da Dona Flor. Vão-se as virtudes vem a vida, varal de vícios. A Bahia,
pelo menos a “minha” Bahia, cheirava a acarajé & sexo, exatamente como Maria
Bethânia diria certa vez da lambreta, aquele marisco que a gente entornava com a
cerveja da madrugada na Ladeira do Pelourinho: “dá um tesão dos diabos!”.
Difícil conciliar futebol e farra. E, antes de qualquer coisa, em 64, como ainda
hoje, a Bahia já era uma farra só, imensa e permanente.
“Temos que dormir pelo
menos umas quatro horas por noite, Ronaldo. É preciso conservar o corpo pras
mulheres”. Sábias essas palavras de Antônio, da jovem turma do cinema baiano dos
anos 60, o pessoal com quem eu andava na época. O Antônio que nós chamávamos de
“Antônio das Mortes”, brincando com o filme do Glauber. O nosso Antônio das
Mortes disse sua histórica frase no exato momento em que o crítico Alberto Silva
adentrava a Cantina da Lua, a cara idem, em plena madrugada do Terreiro de
Jesus. Há três noites/dias sem dormir, Alberto parecia um zumbi, com uns bons
cinco quilos a menos que seu normal, que já não era muito, ele que até hoje
conserva sua magreza baiana e bastante.
Nosso crítico predileto
encostou-se solene ao balcão do botequim, pediu a clássica batida de limão, e
disse que vinha de um aniversário de criança, onde subira numa cadeira e fizera
um veemente discurso contra os milicos que tomaram o poder depois da quartelada
de abril. Um espanto, o Alberto. Sóbrio, sempre foi cordato e simpaticíssimo.
Bêbado, um revolucionário romântico e, por isso mesmo, eterno. Lembro de outra
madrugada baiana, logo no início daquele abril de 64, dia 2, talvez dia 3, nós
dois voltando pra casa: eu e Alberto trôpegos ali pela Rua Chile, vizinhanças do
Elevador Lacerda. No Centro da Bahia, o sol já ensolarando todas as cores dia
adentro – vermelho-amarelo-azul-verde-azul – lá pelas bandas do mar, por trás do
Forte de São Marcelo.
Vício de jornalistas,
mesmo bêbados compramos nosso jornal. Continuamos a andar, quer dizer, a
tropegar, quando Alberto começa a gritar as manchetes do jornal que lia:
“Milicos não duram muito!”. “Jango resiste no Sul!”. “Brizolla pronto para
derrubar a quartelada!”. Os baianos que iam pro trabalho àquela hora, quer
dizer, uns dois ou três, os baianos, aqueles entes manemolentes, voltavam-se
estarrecidos, não acreditando, mas querendo acreditar, nas manchetes inventadas
pelo Alberto. Tomamos nosso ônibus rindo muito, a alma lavada. Que maravilha!
Melhor, que coisa mais porreta, como dizem os bons baianos. Realmente, Antônio
das Mortes tinha razão: a gente precisa dormir pelo menos umas boas quatro horas
(aliás, nem carece de quatro horas: dormir com as “boas” já basta) antes de se
aventurar em qualquer aniversário de criança.
Pois é, como podem
perceber, era preciso dormir bem mais do que isso pra se ficar sob as traves, à
espera dos intermináveis tirambaços dos baianos de todas as estirpes e que
tentavam me estirpar a qualquer custo da posição de guarda-valas, onde aliás,
estava eu perenemente metido – nas invioláveis valas da noite em vão. Era muita
noite pra pouco dia: não havia tempo pro futebol na Bahia. Mesmo assim, o time
da AABB, comigo sob as traves, ganhou a grande maioria das partidas do início do
campeonato e estávamos inclusive seriamente cotados para ir a São Paulo
representar a Bahia na disputa do Torneio de Futebol de Salão Bancário. Mas pode
um jovem goleiro resistir aos acenos da noite? Depois eu
conto.
Jornal Olé nº 17/16
a 31de abril de 1998
Do livro Há Controvérsias
1
Editora Arte Paubrasil,
São Paulo, 2009
04 setembro 2012
Ronaldo Werneck e o quixotesco Athayde
Ronaldo Werneck, poeta, escritor, jornalista, conviveu muito em Salvador, nos anos 60, com Carlos Alberto Vaz de Athayde. Lendo neste blog a seu respeito, enviou-me uma mensagem, que é um depoimento muito interessante sobre o saudoso Athayde. Os dados referentes a Werneck foram retirados de seu site http://www.ronaldowerneck.com.br
Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases-MG e morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro.
Jornalista, colaborou com vários jornais e revistas cariocas (Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre - Biblioteca Nacional). Desde 2001 é Assessor de Comunicação e Editor de Textos da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, em Cataguases, e Diretor de Comunicação do Cineport, Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa.
Poeta, tem nove livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), o ensaio Kiryri Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK (2009) e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o cd Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?
Editor de Suplementos Literários, ensaista, tradutor e crítico de literatura, cinema e artes plásticas, tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna "Há Controvérsias", publicada em vários blogs e no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Produtor Cultural, foi um dos realizadores dos dois Festivais Audiovisuais de Cataguases – Música e Poesia (1969/1970) e Coordenador da Exposição Os Mineiros do Pasquim, em 2008.
Em 2011, lança novo livro de crônicas, Há Controvérsias 2.
Sua mensagem sobre Athayde, que me enviou:
"Caro André,
li no seu blog sobre o Carlos Athayde. Tentei
postar um comentário, mas não consegui de forma alguma. Minha ignorância virtual
não é nada virtual. Antes, pelo contrário, é mais do que palpável.
Como diz minha filha, "o papai trabalha com
email". É o máximo que consigo, embora tenha um blog e um site (claro que os
posts são realizados por um amigo "internético").
Mas voltemos ao Athayde, agora sim: via
email.
Fui muito amigo dele durante o ano de 1964,
quando morei em Salvador. A gente se encontrava quase todas as noites pelos
bares da Bahia: eu, Alberto Silva, Roberto Gaguinho e o Bel, todos nós bebendo
todas e o Athayde fumando, fumando e bebendo café, café, café. Sempre de gravata
e com seu terno escuro, à la Mastroianni/Guido Anselmi do 8 1/2 do Fellini
(vimos o filme várias e várias vezes durante a semana em que foi lançado na
Bahia). Nosso papo, é claro, girava só e tão-somente sobre cinema, cinema,
cinema. Fora o Alberto (com quem retomei contato depois que ele foi pro Rio,
onde morei durante mais de 30 anos e ficamos muito amigos, inclusive
trabalhando juntos em jornais, época "carioca" em que também voltei a me
encontrar com o Tuna), o meu caríssimo Alberto Silva que desapareceu da minha
vida desde que voltei pra Minas, há dez anos, e até hoje não sei onde anda, se
está vivo ou não, fora o Alberto, então, só vi meus amigos em passagens esparsas
pela Bahia pós-64. Quando, nos anos 1970, lancei meu livro de poemas Selva
Selvaggia em Salvador, na Cantina da Lua, do Clarindo Silva (que está lá firme e
forte até hoje, estive com ele há dois anos) o Bel ajudou e muito na divulgação,
inclusive agendando uma entrevista na TV Itapoã, onde trabalhava na época.
Gaguinho revi algumas outras vezes de passagem por Salvador (lembro-me de um
almoço antológico que começou exatamente no Terreiro de Jesus, na Cantina do
Clarindo e acabou num botequim lá nos baixos do Pelourinho, com uma moqueca
diabólica).
Mas o Athayde, não. E logo o meu caro
Athayde, amigo de longos papos sobre literatura e cinema. Chegamos até a pensar
um roteiro de um filme que faríamos juntos, dois personagens antagônicos
perdidos numa ilha, roteiro que existiu somente em nossas cabeças e sequer
chegou ao papel. Depois andei acompanhando algumas de sua filmagens, inclusive
um documentário sobre bombeiros (Vida por Vida?), com cenas realizadas na Feira
Água de Meninos, quando daquele incêndio criminoso de 1964 (Gil chegou até a
fazer uma canção sobre isso). Lembro-me de nós dois, eu e Athayde, caminhando
entre as tendas da feira, ouvindo sucessivas explosões nas bodegas, todas elas
lotadas de garrafas de cachaça. Em 1965, voltei pro Rio. Trocamos algumas
cartas, mas de repente o Athayde sumiu, a vida levou a gente pra outras bandas.
Vejo agora no seu blog alguém falando da vontade dele de vir a Cataguases falar
com o Humberto Mauro sobre a droga (mescalina) que o velho Mauro dizia que era
preciso injetar nas câmeras do nosso cinema. Na verdade, o Humberto Mauro falou
isso pra mim numa entrevista que fiz com ele em Volta Grande, nos anos 1970
(devo ter mandado essa entrevista pro Athayde, ou pro Gaguinho, que repassou pra
ele). Fui amigo do velho Mauro (inclusive publiquei um alentado livro sobre ele
em 2009, "Kiryri Rnedáua Toribóca Opé"). A frase do Mauro, remetendo ao Aldous
Huxley do romance "A Ilha", era "é preciso dar uma injeção de mescalina nas
câmeras" (Mauro me falava da apatia de nossos cineastas e me perguntou "como é
mesmo o nome daquela droga usada pelo Aldous Huxley"?). Não sabia dessa vontade
do Athayde de vir a Cataguases falar com o Mauro. Aliás, se viesse, não iria
encontrá-lo. Mauro, na verdade, filmou por aqui nos anos 1920. Depois foi pro
Rio e por lá ficou até os anos 1960, quando retornou a Volta Grande (onde
nasceu) e ficou até sua morte, em 1983.
Pois é, André, como se vê, eu "trabalho
mesmo é por email". Perdão por ter me estendido tanto. É que a a notícia sobre
o Athayde em seu blog (e sua morte, que eu não sabia, mas imaginava) me fez
voltar a um tempo de juventude e muitos sonhos naquela Bahia dos anos 60. Muitos
e muitos sonhos, como os de Carlos Athayde, sonhador compulsivo. Saudade do meu
amigo.
Visite meu site:
Grande abraço,
Ronaldo Werneck"
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