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27 setembro 2012

Gabriela e o processo de criação do curta

Gabriela Amaral de Almeida (ao lado de Maria do Rosário Caetano) fala, durante o 45 Festival de Brasília, sobre o processo cinematográfico de criação do curta metragem. O seu, A mão que afaga, recebeu 7 prêmios durante o mesmo festival. 

26 setembro 2012

Nasce uma grande cineasta


Com o advento do digital, uma avalanche de filmes veio a perturbar o sentido crítico, que acaba por se diluir num mar de subprodutos. O tempo, sempre implacável, vai ser o melhor juízo. Há filmes e filmes. A maioria de uma mediocridade ululante - pelo menos os que tenho visto. Mas, no palheiro, existem agulhas de ouro, obras preciosas que, sobre serem médias ou curtas, não alcançam o mercado, limitadas que ficam aos eventos e festivais cinematográficos. Os filmes da baiana/paulista Gabriela Amaral de Almeida são pérolas: Náufragos, obra surreal com a última aparição da atriz Haydill Linhares, e Uma primavera, exercício sobre a percepção do outro através de um passeio bucólico de uma mãe e sua filha num parque paulistano e que, de repente, esta desaparece. Não vi A mão que afaga, que deu a Gabriela nada menos do que sete prêmios no recente Festival de Brasília. A mão que afaga conta o desafio vivido por uma mãe que planeja o aniversário de 9 anos do único filho. Pelo que se pode observar, Gabriela procura mostrar o gesto humano através de pequenos fatos cotidianos. O importante em seus filmes não é propriamente o que está dito, mas o como se diz. É o procedimento narrativo, a maneira dela articular os elementos da linguagem cinematográfica e um especial sentido de composição que fornecem o touch especial aos seus trabalhos. Há neles um especial olhar arguto pelas motivações dos personagens, um timing perfeito, um humor sempre presente no subtexto, um sentido do conceito de duração dos planos capaz de dotar seus filmes de um dínamo atrativo. Considero Gabriela Amaral de Almeida uma grande promessa para a realização do cinema brasileiro. Ela e Kleber Mendonça Filho. Os maiores de todos.

25 setembro 2012

A magia da comédia americana

Artistas e modelos (Artists and models, 1955), de Frank Tashlin, com Jerry Lewis, Dean Martin, Shirley MacLaine, reflete um belo momento da comédia americana em meados dos anos 50. Vejam aqui o final. Tashlin foi um comediógrafo de rara sensibilidade.

23 setembro 2012

Um crustáceo que virou cineasta



Homenagem a Agnaldo Siri Azevedo que, há 25 anos, viajou para o desconhecido. Sua partida seu deu em 30 de julho de 1997. Não comprou passagem de volta e, a rigor, nem mesmo a passagem. A Implacável simplesmente o levou. Deixou vários amigos, entre eles Tuna Espinheira, companheiro de idéias e de copo. Fica o registro e a saudade.

 Quando da inauguração do Cinema do Museu (Corredor da Vitória), em outubro de 1996, um dos filmes apresentados foi O capeta Carybé, de Agnaldo Siri Azevedo. Finda a exibição, um coquetel reuniu os convidados e, lembro-me bem, fiquei a tomar uma cerveja, em pé, em companhia do autor do filme, e de seu iluminador, Vito Diniz, que, ano seguinte, morreriam e, apesar do lugar comum do dito, a deixar duas imensas lacunas para o já anêmico cinema baiano. Não sabia que, naquele momento, estava vendo, pela última vez, os dois cineastas. A Implacável, como mostrou Ingmar Bergman em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), não perdoa ninguém. Siri, sobre ser um profissional de cinema de primeira ordem, com um curriculum vitae composto por trabalhos em importantes filmes de Glauber Rocha, notabilizou-se como um dos mais expressivos documentaristas da realidade baiana. Vito Diniz fotografou quase todos os filmes realizados nesta soterópolis, desde os tempos de Meteorango Kid, o herói intergalático (1969), de André Luiz Oliveira, passando pelos curtas metragens e até incursões no famigerado superoitismo. Iluminador de excelência, por teimar em não sair de Salvador, deixou de ser registrado como um dos melhores fotógrafos do cinema brasileiro, ainda que o seja.

A Trigésima Quarta Jornada Internacional de Cinema da Bahia prestou uma homenagem a Agnaldo Siri Azevedo pela passagem do décimo ano de sua morte, ocorrida em 1997, mesmo ano no qual também foi embora o grande Vito Diniz. Na oportunidade, além de uma exposição, entre outras atividades, foi programada a exibição de um documentário de Roman Stulbach, que focaliza os filmes e a trajetória de Siri. E quem o realizou foi um amigo do homenageado, além de montador de seus filmes.

Na década de 70, quando o Ciclo Bahiano de Cinema (A grande feira, Barravento, Tocaia no asfalto, outros) e o chamado surto underground(Meteorango Kid, Caveira my friend, outros) já eram favas contadas, e o Brasil imerso nos seus anos de chumbo, com a ditadura Médici, o cinema baiano se encontrava numa calmaria imensa, excetuando-se um ou outro projeto esporádico, e, entre eles, Akpalô, de José Frazão e Deolindo Checcucci, O anjo negro, de José Umberto, longas, e pouquíssimos curtas. O surgimento das jornadas baianas a partir de 1972, sempre realizadas num espaço quase consular, como o era o Instituto Goethe (Icba) contribuiu para ativar o ânimo dos cineastas baianos e, a estes, possibilitar o contato com outros realizadores do eixo Rio-São Paulo.

Mas foi preciso que se descobrisse o Super 8 para que se instalasse, aqui, uma movimentação maior em torno do que se queria como expressão pelas imagens em movimento. O embrião dos atuais realizadores que proliferam no panorama do cinema baiano contemporâneo se encontra no superoitismo, pois superoitistas foram Edgard Navarro, José Araripe, Marcos Sergipe, Fernando Beléns, Carlos Modesto, Cícero Bathomarco, e o pessoal do Grubacine. Todo mundo queria fazer o seufilmeco e houve uma espécie de coqueluche, que atordou bastante os freqüentadores das mostras competitivas das jornadas, porque havia, nelas, filmecos de mais de uma hora de duração e sem uma estrutura audiovisual que se pudesse aceitar como um filme.

O cinema baiano estava, portanto, dividido entre duas vertentes: a dos documentaristas, que abominavam as incursões superoitistas (Agnaldo Siri Azevedo, Tuna Espinheira, Timo Andrade, Celso Campinho, Roberto Gaguinho, Chico Drummond, entre outros) e a dos superoitistas (os citados acima e mais). Chegou-se até à fundação de duas associações ditas de cineastas: uma, de profissionais, congregando a ala dos documentaristas, e outra, que congregava os superoitistas. As duas não se bicavam.

Agnaldo Siri Azevedo, porém, continuava a fazer seus documentários, a apreender o pitoresco da cultura local. Embora outros também seguissem seu exemplo, o capitão do time dos documentaristas era Siri, secundado por Tuna e seus coadjuvantes. Isto quer dizer: o fato indiscutível é que Siri inaugurou uma escola de documentário – ainda que a seguir as lições da Caravana Farkas - cujos desdobramentos se fizeram logo sentir em filmes de outros realizadores baianos. A rigor, após ter sido, nos anos 60, diretor de produção e assistente de Glauber Rocha em Barravento, Deus e o diabo na terra do sol, Terra em Transe, entre outros, quando quase se pensou que o velho crustáceo fosse se aposentar, eis que aparece, em 1969, com Dança negra, um documentário seu, com um olhar particular sobre um aspecto da cultura.

Incentivado, Agnaldo Siri Azevedo realiza uma feliz adaptação da poesia de Gregório de Mattos e Guerra, que, dita por Emmanoel Cavalcanti, em trajes de época, a gritar pelos becos e ruas da Bahia os versos do poeta, configura O Boca do Inferno 1974), que de tanto apreciado fez-lhe realizar, anos depois, um segundo filme. A partir de O Boca do Inferno é que começa a colecionar prêmios das jornadas baianas. A seguir vieram: As Philarmonicas (1975), Carbonato ou Xique-Xique de Andraí: Cidade Fantasma (1976), com Clyde Morgan, dançarino americano, que executa uma performance minimalista na arquitetura colonial da cidade.

No ano seguinte, foi a Ilhéus, com o já também desaparecido Rony Berbert de Castro, para filmar Creio em ti, meu São Jorge de Ilhéus, que documenta o lugar imortalizado por Jorge Amado em Gabriela, Cravo e Canela. Quase um filme por ano em seu período mais fértil. O mundo de Seu Nestor, por exemplo, de 1978, resgata um anônimo, um homem que fabrica a sua própria cerveja e vive para o seu universo interior. E continua: Anistia (1979), Sem saída (1980), este com desenhos de Calazans Neto sobrepostos às suas imagens, que apresentam o estado de calamidade a que chegou, na época, a doença de Chagas. Aliás, o artista Calá seria, anos mais tarde, objeto de um documentário especial:Calazans Neto: mestre da vida e das artes (1987). Ainda no despontar da década de 80, outro filme, outro documento: Zambiapunga de Cairu - Festança de Outrora. O ano de 1980 foi um ano feliz para o crustáceo, pois conseguiu ainda realizar um terceiro filme, que é o citado opus 2 sobre Gregório de Mattos.

E vieram: Suíte Bahia (1983), Memória de Deus e o Diabo em Monte Santo e Cocorobó (1984), documentário cheio de alegorias que tem a participação do poeta (também já extinto) Carlos Sampaio – que quase na mesma época trabalhou em O mágico e o delegado, de Fernando Cony Campos, filmado em Cachoeira. Ainda e no mesmo ano: Não Houve Tempo Sequer Para as Lágrimas. A seguir: Adeus Rodelas (1969), registro pungente dos últimos momentos de uma cidade que seria inundada pela barragem de Sobradinho.

Depois que fez, em 1990, A chuva que veio do chão, um hiato se abriu na filmografia de Siri, vindo a retornar a filmar somente em 1996, com a sua obra-prima, O capeta Carybé. Acredito que os primeiros anos da década de 90, com a caneta collorida que aboliu, de um só golpe, a Embrafilme e o Concine, o fazer cinema no Brasil ficou difícil até meados de seu decurso, quando da retomada do cinema brasileiro.

A filmografia de Agnaldo Siri Azevedo possui seus temas recorrentes (o registro da cultura baiana em todos os seus aspectos) e um estilo de documentário que preza mais o objeto documentado do que o brilho narrativo exterior ao documento querido.

21 setembro 2012

Tuna e o Acervo da Lage

O cineasta baiano Tuna Espinheira no Acervo da Lage conversa com Dinho
Tuna Espinheira, cineasta baiano que não dorme de touca, mas, também, por outro lado, nunca esteve em cima da carne seca, tem mais um projeto em vista. O seu dinamismo é impressionante, porque, criado nas ventanias de Poções, tem um dínamo que, executado, não o deixa parado. Daí se dizer dele que é um avexado. Não importa, o que importa é a sua atual proposta. Transcrevo o e-mail que me enviou sobre o assunto:

"É sabido que os primeiros passos sempre foram necessários para a caminhada, de qualquer espécie, incluindo aí as léguas tiranas. Então resolvi considerar,  como o primeiro chute, nossa visita ao Acervo da Lage (vide fotos em anexo), um oásis criado por José Eduardo Ferreira. Em co-produção com a empresa produtora, Larty Mark, do produtor Tanal Moura Estamos captando recursos para esta Utopia Cinematográfica.

Como o cinema jamais teve vocação para a clandestinidade, estou botando na tela do seu blog, partilhando os olhres públicos sobre este nosso projeto. Como toda produção independende, com carencia de parcerias.

Já saíram algumas notícias no FaceBook, em decorrencia, recebi algumas mensagens solicitando mais esclarecimentos do assunto a ser documentado. Não tendo ainda um roteiro devidamente desenhado, posso, tão somente, alinhavar uma poucas linhas. Será um filme perscrutando/registrando o invisível. E que, o Subúrbio Ferroviário (onde fica os Novos Alagados), embora pertencente a Cidade Mãe-Salvador, existe mais é invisivel. Este é o nosso principal desafio: interagir com este pedaço sempre desfocado no retrato do município. 

Por enquanto é o que tenho a dizer, acrescentado que, O Professor e Escritor José Eduardo Ferreira, nascido e criado lá, será personagem, guia e co-autor do roteiro. Para complemento vai aí algumas fotos e, principalmente a cópia da aprentação do seu livro: Novos Alagados, urdida e assinada por Antonio Candido. 

Que transcrevo abaixo as sábias palavras de um mestre como Antonio Cândido:


Apresentação

        Já faz alguns anos que venho acompanhando com interesse e emoção a atividade de José Eduardo Ferreira Santos, educador que encarna o aspecto mais nobre e difícil da prática pedagógica: a formação de meninos, meninas e adolescentes de ambos os sexos que vivem em condições adversas, como a penúria econômica e o risco de marginalização social, ao ritmo de um cotidiano de brutalidades.

        Graças ao seu ânimo solidário, José Eduardo concebe o ato educacional como estimulo para conquista da liberdade pelo próprio educando, na moldura de uma visão ao mesmo tempo realista e utópica das possibilidades abertas pela convivência, mesmo que seja no universo negativo da privação. Por isso, rejeita as formulações consagradas e as concepções de elite, voltadas geralmente para uniformizar e dissolver o indivíduo nas expectativas mais conformistas da classe e do grupo. Identificado às necessidades profundas das comunidades marginalizadas, ele procura associar a aquisição dos saberes ao aproveitamento do que se poderia denominar “culturas vividas”, que correspondem ao modo de ser das coletividades. Daí a utilização de práticas lúdicas e festivas do povo, bem como das tradições africanas como fatores educacionais, à luz de uma concepção integrativa.

        A pedagogia de José Eduardo e seus companheiros é, por isso, essencialmente humanizadora, ao conceber a socialização, ao conceber a socialização, não como enquadramento e conformismo, mas como conquista pelo educando da autonomia de pensamento e opção. É admirável no seu trabalho o contraste entre a luta pela realização de cada um e o peso opressivo do meio, que atua em sentido contrário, devido a fatores que desumanizam, como a pobreza e a violência.
 
         Educadores do porte de José Eduardo e seus companheiros mostram que é possível uma pedagogia capaz de realizar a verdadeira “promoção humana”, fazendo desabrochar a liberdade individual em harmonia com os valores positivos da coletividade. 
                                                                              Antonio Cândido
    

20 setembro 2012

Dialética do amo e do escravo

Lançado no Brasil com dez anos de atraso (em 1973, no desaparecido Cinema I da rua Prado Junior, Copacabana, Rio de Janeiro), O criado (The servant, 1963), obra-prima de Joseph Losey, cineasta maior, é, segundo as palavras de Claude Beylie, ensaísta, como todos os filmes de Losey, a história de um fracasso e uma destruição humana. E o realizador faz isso em termos de uma elegância refinada. A fábula é límpida: herdeiros de um mundo condenado, o escravo torna-se amo e vice-versa. Losey deleita-se com o espetáculo da desagregação. Com Dirk Bogarde, James Fox, Sarah Miles, Wendy Craig. Roteiro de Harold Pinter. Partitura (bela, envolvente, como se ouve no vídeo) de John Dankworth.

17 setembro 2012

As aparições de Alfred Hitchcock



O mestre Alfred Hitchcock assinava os seus filmes através de suas aparições. Marca registrada de Hitch, estas aparições, há, nelas, sempre um toque de humor, sempre um comentário irônico sobre o ridículo ao qual é exposto o homem nas mais variadas situações de sua vida. Neste vídeo, que dura quase dez minutos, temos as aparições do cineasta em quase todos os seus filmes. Há poucas semanas, a revista inglesa Sight and Sound, numa enquete com os mais representativos críticos, diretores, ensaístas, de todo o mundo, elegeu Um corpo que cai (Vertigo, 1958) como o maior de todos os tempos, derrubando do pódio Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, que há muitas décadas encimava todas as listas. O tempo, implacável, no entanto, é realmente o melhor crítico. Enquetes feitas nos anos 50, por exemplo, nunca dariam Vertigo entre os melhores. Os cabeças-pensantes da crítica viam de soslaio e de esguelha os filmes de Hitchcock, considerando-os apenas meros artesanatos bem articulados, mas na área restrita do divertissement. Federico Fellini, leio, não tem mais a valoração que tinha no passado (o que acho um absurdo). Fellini é um gênio do cinema e suas criações não estão a envelhecer. O que está em processo de deterioração é a mentalidade contemporânea. 

16 setembro 2012

Ingmar Bergman e o silêncio de Deus

Cliquem na imagem

Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, cidade universitária sueca, em 1918, vindo a morrer aos 89 anos, prestes a completar os mitológicos novent’anos. Se todos não podem escapar à Implacável (como é personificada em um de seus filmes mais celebrados: O sétimo selo), pode-se dizer que o grande cineasta cumpriu além da conta a sua missão, pois ofertou à humanidade uma das obras mais sólidas e densas de toda a história do cinema. Deixou um legado inestimável, que transcende o próprio cinema para ser considerado uma contribuição indiscutível e inquestionável ao patrimônio cultural da humanidade.

Filho de um severo e grave pastor luterano da corte real (que retratou em Fanny e Alexander), a influência de seu pai foi muito forte para a visão atormentada do mundo do jovem Bergman, cuja educação, rigorosa, carregava o fardo do sentimento do pecado e da culpa (duas constantes que iria desenvolver em sua rica filmografia). Ainda adolescente, saiu de Uppsala para se fixar em Estocolmo com o propósito de, na capital do país, estudar literatura e artes e, nestas, a arte dramática que logo o fascinou. Por este tempo atuou como diretor de uma companhia teatral universitária, a qual o pôs em caminho de sua vocação. Com a sua inscrição nos cursos de aperfeiçoamento do Master-Olofsgarden e do Medborgarhuset, a formação de Ingmar Bergman toma corpo, principalmente depois que experimentou montar um de seus autores preferidos: Sonata dos espectros, de August Strindberg.

Após passar por um período de treinamento como assistente de direção da Ópera Real de Estocolmo, ingressou no cinema em 1944, aos 26 anos, por causa de um amigo, Carl Andrés Dymling, que era administrador do Svenskfilindustri, para o qual escreveu o roteiro de Tortura (Hets), realizado por Alf Sjoberg. O sucesso deHets fez com que o estúdio prestasse atenção a seu roteirista, dando-lhe a oportunidade de dirigir o seu primeiro filme, em 1945, Crise (Kris), adaptação de uma peça teatral de Leck Fischer.

O cinema de Ingmar Bergman é um cinema culto e refinado que engloba toda a tradição cultural nórdica, incluindo, aí, os filmes clássicos suecos, principalmente os de Victor Sjostrom -A carroça fantasma (Korkalen, 1920),deste, era visto toda noite de Ano Novo pelo realizador, chegando a afirmar que era a maior obra de todos os tempos, e os realizados pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer (A paixão de Joana D’Arc, Vampyr, A palavra). Mas além da tradição nórdica, Bergman incorporou ao seu cinema as experiências do expressionismo alemão (o início de Morangos silvestres tem influência do expressionismo e é uma homenagem a Korkalen, de Sjostrom), do surrealismo e do existencialismo sartriano, enraizando-os em seu próprio país. Sjostrom seria o principal ator em Morangos silvestres no papel centro, a do velho que faz uma revisão de sua vida.

Observando-se bem, em cada obra de Bergman se unem a problemática moral, a incomunicabilidade dos seres, a urgência da morte, o silêncio de Deus, a angústia de estar-no-mundo. A primeira fase de seu cinema, a fase juventude, que tem início em Crise e vai até meados do decurso dos cinqüenta, ainda comporta otimismo, apesar do amargor, e até mesmo a comédia embora não desprovida de um certo cinismo, como a notável Sorrisos de uma noite de amor(Somarnattens leende, 1955), cujos acentos shakespearianos são evidentes, assim como a influência, notória, de A regra do jogo (La règle du jeu, 1939), de Jean Renoir. Nesta fase inicial, no entanto, os filmes mais marcantes e que proporcionaram a seu autor o reconhecimento internacional foram Noites de circo (Gyclamas afton) – tortura e solidão, um libelo do artista contra a sociedade e sua ordem - e Mônica e o desejo (Sommarenmed Monika), ambos de 1953. O Bergman pessimista das últimas fases cede, aqui, lugar a um olhar simpático pela beleza da juventude, mas nunca, no entanto, deixando a sua visão ácida da existência. A tragédia da humilhação, talvez mais do que em Shakespeare, nunca esteve tão bem apresentada quanto em Noites de circo.

Se Deus colocou o homem no mundo, pensava Bergman, deixou-o à sua própria sorte, desamparado, triste, desesperado. A única solução possível para amainar o seu desespero está no amor, mas este é efêmero, passa, e a vida permanece sem sentido. A busca por uma metafísica da existência faz parte de seus temas recorrentes. A filmografia de Bergman, por seu um autor de filmes (em oposição ao cinema de gêneros) é como se fosse constituída por um macrofilme do qual as obras singulares se enquadram como variações sobre um mesmo tema, excetuando poucos filmes atípicos, a exemplo de O ovo da serpente (Das Schlangenei, 1979), que realizou na Alemanha quando saiu da Suécia motivado pelo rigor fiscal, obra política que mostra a gênese do nazismo, A flauta mágica (Die Zauberfloete, 1975), homenagem à ópera e a Mozart num filme que obedece as marcações teatrais, Para não falar de todas estas mulheres (For Att Inte Tala Om Alla Dessa Kvinnor, 1963), entre poucas.

O silêncio de Deus é uma constante em seus filmes. Traumatizado com o rigor de sua educação religiosa, nos filmes de Bergman estão sempre presentes os tormentos em torno do pecado e da culpa. Um silêncio que é sentido com a progressão de sua filmografia já na fase que tem início em O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1956), a fase da perplexidade, e que engloba Morangos silvestres (Smultronstallet, 1957), A fonte da donzela (Jungfrukallan, 1959), entre outros.

Entre todos os filmes de Bergman, a preferência do comentarista recai sobre Morangos silvestres e O silêncio (Tystnaden, 1962), ainda que fique difícil se escolher entre as obras de um cineasta que explodiu o conceito de obra-prima, considerando-se que realizou várias delas. Em Morangos silvestres, cuja preferência talvez seja ser o seu primeiro Bergman, visto no entusiasmo da adolescência e, nesta, a constatação de que o a arte do filme se encontra além do cinema de gênero, da qual fora acostumado a ver, e a constatação de que o cinema também podia ser um veículo do pensamento, de uma visão de mundo, de uma filosofia de vida. Um velho senhor, professor universitário, sai de sua cidade interiorana na Suécia para receber, na universidade de Estocolmo, o título de Doutor Honoris Causa. Apesar de todos os seus familiares preferirem ir de avião, o velho opta por ir de carro com a sua nora. No caminho, durante a viagem, ele faz uma revisão de sua vida, concluindo que somente a generosidade e o amor podem torná-la mais suportável.

fase dos filmes de câmera tem início em Através do espelho (Sasom i em spegel, 1960), sendo bastante extensa, uma fase na qual Bergman se fecha cada vez mais, reduzindo ao essencial seus atores e o cenário. É nesta fase que se destacam O silêncioQuando duas mulheres pecam (Persona, 1966), e A paixão de Ana (En passion, 1970), e Gritos e sussurros, filme síntese da obra bergmaniana.

fase psicanalítica encontra o seu apogeu em Cenas de um casamento (Scener ur ett Aktenskap, 1974), seguido de Face a face (Ansiktet mot Ansiktet, 1976), Sonata do outono (Hortssonat, 1978) quando Bergman encontra Ingrid Bergman, também sueca como ele, a atriz famosa, hollywoodiana, que trabalha ao lado de Liv Ullman. Segundo a impressão do comentarista, e questão subjetiva, a fase psicanalítica é a mais fraca – ainda que, como um grande autor, fraca para Bergman não queira dizer sem importância.

Em 1982, Bergman anunciou sua aposentadoria do cinema, com a conclusão de Fanny e Alexander (Fanny och Alexander), mas não cumpriria a promessa, pois ainda faria alguns filmes. Seu último filme, Sarabanda, data de poucos anos atrás, e é uma releitura de Cenas de um casamento, com o encontro do mesmo casal já na velhice.

A morte de Bergman e de Antonioni sinalizou o fim de uma era, o fim de um tempo, o desaparecimento de uma cultura cinematográfica. Bergman e Antonioni reinventaram o cinema na década de 50 e de 60. Ajudaram a construir e a consolidar a linguagem cinematográfica. Depois deles nada surgiu de significativo no cinema contemporâneo, ainda que bons realizadores existam e façam filmes. Mas o grande cinema acabou!

12 setembro 2012

Dino Risi: a inteligência a serviço da comédia

Jean-Louis Trintgnant e Vittorio Gassman em Aquele que sabe viver (Il sorpasso), de Dino Risi

As comédias italianas das décadas de 50 e, principalmente, as da década de 60, estabeleciam no cinéfilo o prazer de ir ao cinema, mas um prazer especial, pois somente nelas havia um encanto particular não encontrado em outras cinematografias. Seriam as comédias italianas um gênero especial na comediografia mundial? A julgar pela sua excelência, acredita-se que sim, pois elas se diferiam das outras do mesmo gênero realizadas em outras paragens pelo humor, pela inventiva, pela emergência de uma cultura específica e muito exclusiva que se refletia no modo de ser do italiano.

Chegou-se, inclusive, a dizer, dada a profusão de realizadores notáveis, que o cinema italiano era o melhor cinema do mundo (o documentário de Martim Scorsese, Mio viaggio in Itália, 1999, sobre esta cinematografia, é, não apenas um testemunho pessoal e poético, mas, e principalmente, uma constatação). Qual outra cinematografia tinha cineastas do porte, da excelência, de um Luchino Visconti, de um Federico Fellini, de um Michelangelo Antonioni, de um Pier Paolo Pasolini, de um Roberto Rossellini, entre tantos outros!

Colocados em segundo plano, mas geniais em alguns momentos, nomes como Bernardo Bertolucci, Pietro Germi (seu Divórcio à italiana/Divorzio all’italiana, 1961, é um dos grandes filmes da história do cinema e a melhor interpretação de Marcello Mastroianni), Vittorio DeSica (este fez algumas obras-primas, mas tem uma filmografia irregular), Dino Risi, Mario Monicelli, Damiano Damiani, Florestano Vancini, Elio Petri, Marco Bellochio, Luigi Comencini, Alberto Lattuada, citados, aqui, ao sabor da memória com o risco enorme de alguma omissão. Portanto, et caterva.

E que cinematografia poderia ter "em segundo plano" tantos nomes notáveis? Todos, à exceção de um ou outro, estão mortos, enterrados, assim como também enterrado está o cinema italiano contemporâneo, cujas cinzas nem mais se enxergam a se debater em crise agônica desesperada.

Quem viu as comédias italianas dos anos 50 e 60 pode dizer que provou de uma "iguaria" extraordinária. Tinha-se, nelas, a inteligência e a beleza, o riso farto e um panorama vasto dos usos e costumes da Itália, além de um afresco da própria condição humana em seus aspectos trágicos e cômicos.

A morte de Dino Risi representa o enterro de um "gênero" no sentido, repita-se, de que as comédias realizadas na Itália se diferenciavam bastante das outras comédias de outros países. Ainda que desaparecido desde muitas décadas (o que se faz hoje é um acúmulo de besteirol impossível de verificação dada a incompetência e a regressão cultural do cinema), o "gênero" fez com que a memória do cinéfilo despertasse os filmes do pretérito ao se deparar com a notícia do falecimento do grande Risi, Dino Risi.

Retirado da vida aos 92 anos, Dino Risi deve ser reverenciado e todo amante do cinema  se lhe encontra agradecido por tantos momentos de felicidade dentro das salas escuras. Psiquiatra de formação, Risi abandonou seus clientes no divã para ir fazer filmes a partir de 1952.

No ano seguinte, auge dos estúdios da Vera Cruz, em São Paulo, tentou aqui realizar um filme, mas, não se sabe o motivo, voltou para a Itália sem atingir o seu objetivo. Mas dá, neste retorno, o início de uma fulgurante carreira, cujos sinais de vitalidade e genialidade já são percebidos em Pobres milionários (Poveri milionari, 1959), ainda que seu início de grande cineasta se dê, para a maioria da crítica, em Uma vida difícil (Une vita difficile, 1961), com Alberto Sordi, o "Albertoni", e Lea Massari, que a Versátil, em boa hora, já colocou em DVD.

Qual seria o melhor filme de Dino Risi? Para a maioria, Aquele que sabe viver (Il sorpasso, 1962), "o ultrapassador" no título original, bem à pele de Vittorio Gassman como um irresponsável e bon vivant que convida Jean-Louis Trintgnant a, com ele, correr pelas estradas, encontrar mulheres, gozar a vida, até o trágico final. Ainda no elenco, a esfuziante Catherine Spaak. Risi incorpora, aqui, a tragédia no cômico com particular felicidade e a inteligência que sempre caracterizou as situações de seus filmes (a graça, por vezes, vinda da dor, e esta da condição humana).

Sobre ser um filme excelente, Il sorpasso, de raro encanto, como tudo em Dino Risi, a escolha do melhor, no entanto, talvez recaísse em Férias à italiana (L'Ombrellone, 1966), com Enrico Maria Salerno e Sandra Milo (a musa felliniana, a eterna donna). Mas não se pode esquecer, sob pena de grave omissão, da cena em que, em Nós as mulheres somos assim (Noi donne, siamo fatte cosi, 1971), um rapaz, num restaurante, exulta de felicidade por estar sendo olhado pela belíssima Monica Vitti. Mas depois se constata (é a graça advinda da dor) que Vitti é cega e, portanto, não o está a ver.

Em Vejo tudo nu (Vedo nudo, 1969), Nino Manfredi, míope em último grau, em seu apartamento, despido, olha para a vizinhança e se excita com o derrière que pensa estar a ver na vizinhança, quando se constata, depois, que ele olha, realmente, é para o próprio derrière refletido na vidraça da porta de seu apartamento.

O cinema já estava sem Dino Risi, porque o abandonou em 1996, a realizar, depois, apenas uma fita para a televisão no ano 2000. Desiludido com a mediocridade do cinema contemporâneo não agiu como seu colega Mario Monicelli, que apesar de seus noventa e tantos, continuou a filmar até que, constatado um câncer em sua próstata, pulou do alto da janela do hospital, onde estava internado e desenganado, e se espatifou no chão.

A comédia italiana, no entanto, morta há décadas, tem, com a morte de Dino Risi, apenas a imagem de uma lembrança de um tempo quase feliz, quando a inteligência estava, realmente, a serviço da cinema.

10 setembro 2012

Claude Lelouch e o poder da 'mise-en-scène'


A visão recente de Esses amores (Ces amours-là, 2010), de Claude Lelouch, filme-síntese desse poeta do cinema, retrospectiva de seu processo de criação cinematográfica ou, talvez (já que o cineasta tem 75 anos), obra de revisão e afirmação de seu poder, imenso, de 'mise-en-scène', nos dá a medida exata de seu talento. A fascinação do espetáculo e, ao mesmo tempo, a explicação de seu fascínio. Um belíssimo filme, um dos melhores dos últimos anos. Que deve ser visto em genuflexório.

Há, por parte da crítica, uma total indiferença diante dos filmes de Claude Lelouch, um certo preconceito em relação a este brilhante realizador do cinema francês. Convidado para participar da mostra internacional paulista há 3 ou 4 anos, foi evitado pela imprensa, e apenas algumas notas insignificantes deram conta de sua importante presença no exitoso evento coordenado por Leon Cakoff. Em um festival ocorrido em Manaus, também não despertou o entusiasmo que merece por parte da imprensa, que lhe foi completamente indiferente, ainda que homenageado. Talvez a explicação para a marginalização do autor de Um homem, uma mulher esteja no fato dele falar mal da nouvelle vague e, apesar do seu público fiel, a chamada intelligentzia o colocou no index. Os críticos brasileiros, que se pautam muitas vezes pela autoridade crítica internacional, passaram a proceder da mesma maneira, determinado-lhe o desprezo e, pior ainda, a indiferença (e a indiferença também é crime, segundo diz William Shakespeare em Hamlet).


O fato é que são poucos os filmes de Lelouch, nas últimas décadas, que tiveram lançamentos bem colocados, e nunca é citado nos círculos mais intelectualizados do pensamento cinematográfico. Considerado um virtuoso, maneirista, superficial, dotado de uma poética do vazio, Lelouch, no entanto, é um talento, um poeta, que sabe, como poucos, envolver o espectador com sua mise-en-scène única e particular. Os filmes de Claude Lelouch sempre me deram conta de estar diante de um artista criador, que emociona, que, como poucos, tem um método de dirigir os atores, deixando-os espontâneos, verdadeiros, convincentes. Um filme de Claude Lelouch, para mim, é um bálsamo capaz de deixar a impressão de se ter contemplado a beleza em movimento, os pequenos gestos significantes, a emoção surpreendida em seu momento exato. Mas, não se pode negar, o que vem a ser considerada crítica cinematográfica oferece, para ele, as opiniões mais deprimentes. E Lelouch é, antes de tudo, um antidepressivo fundamental, que trata dos seus temas, aparentemente superficiais, com o vigor de uma mise-en-scène que os torna envolventes e perfuratrizes na alma do espectador. Ver um Lelouch é sempre um prazer, uma descoberta da vida e do amor.


Parisiense de nascimento, 75 anos (vai fazer em outubro), (30/10/1937), Claude Lelouch chamou a atenção internacional, quando, em 1966, ganhou a cobiçada Palma de Ouro do Festival de Cannes, derrotando realizadores poderosos. Un homme et une femme, se, por um lado, rendeu a Lelouch uma bilheteria assombrosa pelo mundo todo, não se constituiu, porém, numa unanimidade crítica. Já começou aí a inveja de outros cineastas pretensiosos e menos dotados, que deram início à difamação de Lelouch como cineasta menor. A partitura envolvente de Francis Lai, a técnica de improvisação na direção dos atores, o realizador como seu próprio cameraman com notável segurança, a fotografia deslumbrante, a poesia que emana de sua articulação da linguagem, a mise-en-scène que transforma objetos em novos significantes determinaram a Un homme et une femme um estrondoso sucesso, uma fascinação irresistível. E além da Palma, o diretor também conquistou o Oscar de melhor filme estrangeiro, além de muitos outros prêmios em festivais internacionais.


Vale repetir que, no cinema, assim como na literatura, e em outras artes, o que importa não é o tema em si, mas a maneira com que ele é tratado pelos procedimentos cinematográficos. Em Um homem, uma mulher, Lelouch filma o romance de um piloto de corridas automobilísticas (Jean-Louis Trintgnant) e uma continuísta de cinema (Anouk Aimée). Os dois, viúvos, têm filhos, e o encontro inicial se dá na escola onde estes estudam. O relacionamento amoroso se desenvolve pela perspectiva de uma segunda chance e é marcado por lembranças (vindas em flash-backs). O diretor mistura imagens coloridas com imagens em preto e branco e o roteiro, bastante fragmentado, influenciou uma geração de publicitários. Destaque para a presença de Pierre Barouh, que canta "O samba da benção", de Baden Powell e Vinicius de Morais. Barouh, no filme, é visto nas recordações da mulher (fora o seu primeiro marido e morre num acidente de filmagem). Pode ser visto facilmente em DVD.


Antes de Un homme et une femme, Lelouch já tinha feito dois ou três longas sem expressão e alguns curtas, mas é neste que se inicia, realmente, como cineasta e desponta no cenário internacional. Logo a seguir dirigiu um dos episódios de Loin de Vietnam (1967), ao lado de monstros sagrados do cinema (que dirigiram os outros, a exemplo de Jori Ivens, Jean-Luc Godard, William Klein, Alain Resnais, Chris Marker, e Agnès Varda), que ficou inédito no Brasil. No mesmo ano, tentou reeditar o sucesso de Un homme, une femme com Viver por viver (Vivre pour vivre), com Yves Montand, Annie Girardot, a belíssima Candice Bergen, que representou a França no Festival de Mar Del Prata de 68, onde conquistou o prêmio de melhor atriz para Annie Girardot. Montand, aqui, um ator charmant, é um repórter de televisão cujo casamento com Girardot se encontra estagnado e vem a conhecer, numa viagem a Quênia, Candice Bergen, pela qual se apaixona. Estão presentes a dinâmica característica da mise-em-scène lelouchiana, a espontaneidade dos intérpretes e a poesia flutuante de suas imagens.


A seguir, Lelouch realizou A vida, o amor e a morte (La vie, l'amour, la mort, 1969), drama contra a pena de morte que representou a França no II Festival Internacional do Filme do Rio (organizado por Antonio Moniz Viana, o único evento cinematográfico verdadeiramente internacional que o Brasil já teve em sua história), em 69, conquistando o prêmio de melhor ator para Amidou. Que interpreta François Toledo, acusado de ter assassinado prostitutas. Condenado à pena de morte, ao caminhar para a guilhotina, lembra-se sua vida pregressa. A primeira imagem de La vie, l'amour, la mort é a da morte violenta de um touro, e o último plano é da morte violenta de um homem, sob a lâmina afiada da guilhotina (faz lembrar os excelentes Quero viver! (I want to life), de Robert Wise, e Não matarás, de Kieslowski). Filme arrematado com final agônico e de forte emoção. Será que os detratores contumazes de Claude Lelouch viram este filme?


Depois deste, Lelouch filma O homem que eu amo, com Belmondo e Girardot, Um homem como poucos (Le voyou, 1970), que considero sua obra-prima e uma das obras-primas do cinema francês em todos os tempos, e a deliciosa sátira políticaA aventura é uma aventura. Mas fica para a próxima coluna na terça vindoura estes e o resto da filmografia desse artista singular.


Em 1969, O homem que eu amo (L'homme qui me plait), com Jean-Paul Belmondo e Annie Girardot, procura repetir a fórmula estabelecida em filmes anteriores. Trata-se, evidentemente, de um love story, e Belmondo, numa cena dentro de um jatinho, repete, em mímica, para uma Girardot apaixonada, os tiques de Michel Poiccard, o seu personagem de Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, filme que detona a Nouvelle Vague e está a completar, neste ano em curso, o seu cinquentenário.


A obra-prima de Lelouch, contudo, é Um homem como poucos (Le voyou, 1970), filme que se perdeu no esquecimento coletivo e que necessitaria de uma urgente revisão para reavaliá-lo em sua dimensão certa. Thriller que sucede a L'homme qui me plait, Le voyou, desde a apresentação dos créditos, uma sequência musical de delirante movimentação cênica, já desperta o entusiasmo do espectador. Radiografia de certos podres das grandes organizações financeiras, assim como do cultivo do sensacionalismo pela imprensa e pela publicidade, Um homem como poucos é um filme engenhosamente construído. Jean-Louis Trintgnant faz um advogado que trapaceia com o banqueiro interpretado por Charles Denner (em seu melhor papel e numa performance inexcedível) o rapto do filho deste a fim de obterem do banco a recompensa.


Mas Trintgnant, ao invés de repartir a grana conforme a combinação inicial, devolve o menino e esconde o dinheiro. Achando-se traído, Denner o denuncia, e Trintgnant é condenado a doze anos de prisão, mas cinco anos depois consegue se evadir do cárcere e vem a conhecer uma mulher, Danièle Delorme, pela qual se enamora, e, através de seu cúmplice personificado pelo ator Charles Gerard, remete o dinheiro para ficar bem guardado na Suíça. Seu objetivo é se vingar de Denner, que acaba preso pela polícia. Trintgnant e seu sócio partem, então, para Nova York, alegando viagem para Montreal, onde a polícia os aguarda. O mau tempo, porém, desvia a rota do avião para Montreal. Neste final, Trintgnant recebe a notícia pela voz da aeromoça e um close up, mostrando todo a sua apreensão, fecha o filme.


Pierre Uytterhoeven é quem assina todos os roteiros dos filmes de Lelouch, mas se desconfia que se trata de um pseudônimo do próprio diretor. Lelouch sempre pilota a sua câmera e, como de hábito, aqui em Um homem como poucos, a música é de Francis Lai (que ao lado de Michel Legrand e George Delerue é um dos maiores partituristas do cinema francês). O filme como que propõe a questão: comparado a essa gente que vive da exploração da ingenuidade popular culturalmente desamparada, o voyou desta obra de Lelouch não chega a ser umméchant. A seguir, o diretor realizou Smic, smac, smoc, que ficou inédito no Brasil e não foi distribuído comercialmente, e que tem o premiado Amidou (ator lelouchiano por excelência e Catherine Allégret). Em 1971, uma sátira política que se constituiu num de seus maiores sucessos: A aventura é uma aventura(L'aventure c'est l'aventure), co-produção entre a França e a Itália, é uma aventura de humor crítico cuja inspiração o realizador atribui a Os três mosqueteiros e aos Pieds Nickelés - famosa história em quadrinhos francesa. Cinco criminosos (os franceses Lino Ventura, Jacques Brel e Charles Denner, os italianos Charles Gerard presença constante nessa fase lelouchiana, Aldo Maccione), certos e confiantes de que as clássicas fontes de sustento do submundo estão exauridas (os bancos estão vazios, as prostitutas se rebelam - a idéia e o roteiro são do realizador), decidem atualizar-se, adotando a técnica empresarial do neocapitalismo e, sobretudo, dando cobertura ideológica às suas atividades. Começam sequestrando Johnny Halliday e fazem o mesmo com um embaixador suíço e um general latino-americano, obtendo sempre altos resgates. A última de suas vítimas consegue entregá-los à justiça. Processados, condenados e finalmente salvos pelo clamor público - que vê neles paladinos da "contestação", os cinco se recolhem à África, onde são recebidos como heróis. Postos a serviço dos corruptos governantes locais, não renunciam, contudo, à mais sensacional de suas proezas: o sequestro do papa, por cujo resgate exigem e obtêm um franco por cabeça de todos os católicos do mundo.


Comédia dramática de fundo policial, A dama e o gangster (1973) é o filme imediatamente posterior a L'aventure c'est l'aventure. Ainda que não seja um de seus melhores, La bonne année, título original, fascina pela segurança da narração e por um cuidadoso registro de surpresas sem que a partitura entre em ação. A música, que seria a música do filme, é cantada numa boite, mas todo o desenrolar das reviravoltas com suspense a tem ausente. Também, aqui, em La bonne année, o uso das imagens em preto e branco e a cores revela a constante lelouchiano de significar por meio do cromático.


Em dezembro de 1973, o diretor de uma prisão dá liberdade condicional a Lino Ventura, ladrão de jóias, na esperança de, por seu intermédio, apanhar Charles Gerard, seu cúmplice no roubo de uma joalheria Van Cleef seis anos antes. Conseguindo iludir a polícia, Ventura (ator clássico da tradição cinematográfica francesa), se prepara para celebrar o ano novo com a bela Françoise Fabian, sua antiga amante, mas, ao chegar ao apartamento desta só encontra seu atual companheiro. A desilusão toma conta dele. Esgueirando-se sem ser visto, vai-se a lembrar dos lances do roubo (o filme quase todo é em flash-back, excetuando-se o momento presente no princípio e no final), da separação (quando foi preso) e da promessa que Françoise lhe fizera de esperar por ele.


Em 1974, um filme fascinante: Toda uma vida (Toute une vie), afresco sobre o cinema, o tempo que passa, a vida e o amor. E vejam que achado: o começo do filme é em preto e branco e seu estilo vai variando de acordo com a evolução da técnica cinematográfica; nas seqüências finais é em Technicolor. Um interlúdio de 20 minutos em que o casal no avião imagina o nosso mundo no fim do século foi eliminado pelo diretor nas cópias de exportação.


Marthe Keller e André Dussolier (um dos atores preferidos de Alain Resnais) sentam-se lado a lado num avião e apaixonam-se à primeira vista. Cada qual passou por várias situações dramáticas. Keller já tentara o suicídio, casara-se e se divorciara, tentando, depois, revolucionar os métodos de trabalho na indústria do seu falecido pai. Dussolier vivera de expedientes, estivera preso, sofrera um desastre ao sair da cadeia, aprendera a técnica fotográfica, fizera filmes pornográficos e comerciais e planejara realizar um filme que cobriria o espaço de tempo entre 1900 e o ano 2000.


Marriage (1975) parece que não foi lançado no Brasil. O gato e a rainha (Le chat et les souris, 1975), comédia com Jean Pierre Aumont, Serge Reggiani, Michèle Morgan, não foi visto por este comentarista. Mas a filmografia de Lelouch não pára por aqui.


Em meados dos anos 70, o fôlego de Lelouch se arrefece para ressurgir mais forte nos 80 (Retratos da vida/Les uns et les autres, 1981) e nos 90 (com o admirável Os miseráveis, 1993, versão livre, e totalmente lelouchiana do livro homônimo do célebre Victor Hugo), além de Tem dias de lua cheia.

Em 1976, Se tivesse que refazer tudo... (Si c'était à refaire), melodrama que marca o retorno da atriz Anouk Aimée (de Um homem, uma mulher), e assinala o primeiro trabalho de Catherine Deneuve com o diretor, trata, como sempre, do amor ("L'amour toujours l'amour"). O argumento gira em torno de uma presidiária, Deneuve, que, condenada aos 19 anos pelo assassinato de um banqueiro, sai da cadeia aos 35. Que fazer para recomeçar a vida? Ansiosa para encontrar o filho que somente veio a conhecer na prisão, Deneuve une-se, então, a uma antiga companheira de cárcere, Aimée, mas, para sua surpresa, vem a saber que o filho é amante da amiga. E se torna uma estranha entre eles.

Nada a acrescentar de especial a Si c'était à refaire, além da sempre competência formal do autor e do brilho de suas imagens. No elenco, além das citadas, os atores de sempre, como Charles Denner (que teria atuação marcante em O homem que amava as mulheres, de François Truffaut), Francis Hustler, Jean-Pierre Kalfon. A música, como de hábito, quem a assina é Francis Lai, e há uma canção de autoria de Pierre Barouh. Lançado em 1977 no Rio de Janeiro, o filme passou em brancas nuvens com a indiferença habitual da crítica, que sempre gostou de massacrar o cineasta.

Outro homem, outra mulher (Une autre homme, une autre chanche, 1977) é um Lelouch bem menor, um melodrama sentimental em ambiente de western e falado em inglês e francês. A tendência crítica, no entanto, de acusar o cineasta pela repetição não tem correspondência com a verdade do artista, pois todo autor, na verdade, se repete, constituindo-se seus filmes singulares como variações sobre um mesmo tema (Bergman, Fellini...).


Co-produção com capital francês e americano, Un autre homme, une autre chanche tem seu início em 1870, quando a França está em guerra com a Prússia. Os contratempos advindos do conflito bélico forçam Geneviève Bujold a fugir com o namorado (Franços Huster) para os Estados Unidos. Entrementes, na América, o veterinário interpretado por James Caan vê sua mulher violentada por um bandido que rouba seu bracelete índio. Caan, perdida a esposa, embarca, com o filho pequeno, para o sul. Passa-se um tempo e este se matricula no mesmo colégio no qual estuda o filho de Bujold e não se precisa dizer que vai nascer, entre Caan e Bujold (que está viúva), um relacionamento amoroso


Por uma dessas incompreensíveis injunções do mercado exibidor, a maioria dos filmes de Lelouch não foi importada no Brasil, e muitos permanecem inéditos. A considerar, também, sua extensa filmografia, vai-se aqui citar en passant alguns títulos para uma concentração maior naqueles que são considerados os mais brilhantes das duas últimas décadas - e não se quer, também, entrar numa quarta parte sobre o autor.


Robert e Robert (1978), com Charles Denner (sempre ele) e Jacques Villoret, é inédito em território brasileiro, assim como Edith et Marcel (1983), Vive la vie(1984), com Michel Piccoli e Charlotte Rampling, Attention bandits (1987), La belle histoire (1992), Hommes, femmes, mode d'emploi (1996), Hasards et coincidences (1998), entre outros menos notáveis.


Foram mal lançados, quase escondidos: Brindemos a nós dois (À nous deux), com Catherine Deneuve e Jacques Dutroc, Ir, voltar (Partir, revenir, 1983), com Annie Girardot e Jean-Louis Trintgnant, Um homem, uma mulher - vinte anos depois (Un homme, une femme, vingts ans déja, 1986), Itinerário de um aventureiro (L'enfant gâté, 1988), com Jean-Paul Belmondo, Amantes & Infiéis(...And now ladies and gentlement, 2002), com Jeremy Irons, Claudia Cardinale, entre poucos.


Em Les uns et les autres, Lelouch retoma, de certa forma, a idéia - base de outro de seus melhores filmes - Toda uma Vida (1974): uma história que passa por várias gerações e que tem alguns personagens-base. Em Toute une vie é a personagem interpretada por Marthe Keller que conduz os fatos. Aqui, é a sensibilidade artística de quatro famílias de Moscou, Paris, Berlim e Nova Iorque. Elas são unidas por uma linguagem comum - a música. Enfrentam as tragédias da II Guerra Mundial e do após-guerra. E se reúnem, num final apoteótico, em Paris, num concerto de gala aos pés da Torre Eiffel, em benefício da Unicef e da Cruz Vermelha, quando o coreógrafo Maurício Bejart coloca em cena todo seu imenso talento, para uma longa seqüência de verdadeiro delírio visual. Por causa desta sequência apoteótica, quando um dançarino executa o Bolero de Ravel, o filme, nos Estados Unidos, veio a se chamar Bolero. A partitura vem assinada por Francis Lai e Michel Legrand.


A palavra mais certa para definir Tem dias de lua cheia (Il y a des jours...et des lunes, 1992) é que é um filme simplesmente encantador. O dia de mudança no horário de verão altera o comportamento de várias pessoas numa cidade interiorana da França. Situações insólitas e inusitadas passam a acontecer: um crime sem um móvel visível, casais que se desentendem. A narrativa, que compreende um grande número de personagens envolvidos em várias situações, é de natureza polifônica. No elenco, Gerard Lanvin, a grande Annie Girardot (inesquecível como a Nádia de Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti), François Hustler, Philippe Leotard. A poesia reina em todo o seu desenrolar. A poesia e a música que abraçam este filme singular.


Leitura original de Os miseráveis, famosa obra de Victor Hugo, numa versão completamente livre e adaptada a outros tempos, o filme é um delírio na composição de sua estrutura narrativa, de sua mise-en-scène. Belmondo faz um ex-pugilista analfabeto que ajuda uma família de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e vem a encontrar paralelos significativos entre a sua vida e a do personagem do escritor francês. A rigor, não se trata propriamente de uma adaptação, mas o livro é tomado como marca referencial. Les miserables apresenta o comportamento dos franceses durante a guerra, a perda de valores morais provocada pela opressão em suas diversas formas, e a idéia de que a História é um ciclo que se repete de tempos em tempos. Além de Belmondo, tem-se novamente Annie Girardot.


Entre seus últimos filmes, um episódio (segmento: França) de uma obra coletiva sobre o 11 de setembro dirigida por vários cineastas, A coragem de amar (Le courage d'aimer, 2005) e Crimes de autor (Roman de gare, 2007). E este deslumbrante Ces amours-là, que sintetiza sua obra.

05 setembro 2012

Alberto Silva: crítico e humanista


Nos anos 50 e 60, o nome de Alberto Silva era um referencial na crítica de cinema baiana, ainda que sem uma periodicidade muito regular como alguns de seus colegas dessa mesma época (Glauber Rocha e Jeronimo Almeida - pseudônimo de José Gorender no Jornal da Bahia, Hamilton Correia no Diário de Notícias, José Augusto Berbert de Castro em A Tarde, entre outros. Com a homenagem que prestei aqui, neste blog, ao velho guerreiro Athayde, vim a saber da morte de Alberto Silva ocorrida há alguns anos. O desconhecimento, tudo indica, provocado pela ausência absoluta de informações na imprensa baiana, que omite. sempre e sempre, os falecimentos de baianos célebres - por ignorância, falta de memória. Acredito ser ainda tempo de as Quartas Baianas vir a prestar uma homenagem a Alberto Silva e, também, a Carlos Alberto Vaz de Athayde. Nascido em 1940 (dez anos mais velho do que eu), Alberto Silva, se morreu há dois anos, desapareceu com 70 anos, mas já abatido e doente. Lembrando o bravo guerreiro da crítica baiana, publico aqui algumas informações sobre Silva. Vale lembrar que Alberto Silva foi um grande amigo de Athayde.


Jornalista profissional, Alberto Silva nasceu na Bahia a 23 de março de 1940. Em Salvador, foi presidente da Associação dos Críticos Cinematográficos, diretor do jornal Cinema Novo e da Revista da Bahia. Radicados no rio de Janeiro durante anos de sua vida, atuou como crítico cinematográfico de Correio da Manhã, Última Hora, Tribuna da Imprensa, Jornal do Commercio e como crítico literário de O Globo. Foi verbetista da Enciclopédia Mirador Internacional e colaborador das revistas Filme Cultura, Cadernos Brasileiros e Cultura. Foi editor do jornal Letras & Artes.

Dirigiu os filmes Major Cosme e Hospedarias. Escreveu, em 30 anos de militância cinematográfica, diversos argumentos, roteiros e cerca de dois mil artigos e ensaios em colunas especializadas, suplementos literários e revistas culturais de todo o país. Cinema e humanismo recebeu o prêmio de “Melhor Ensaio” (1975) da União Brasileira de Escritores. E A primavera mora na rua.

A PRIMAVERA MORA NA RUA (Editora Achiamé, 84 págs., Rio de Janeiro, 1991.)
 “Demonstra a presença de um escritor com real possibilidade de vir a destacar-se, pois revela criatividade, humour e calor humano, requisitos fundamentais a quem quer que deseje seguir, conseqüentemente, a carreira de letras.”
 Ênio da Silveira – Editora Civilização Brasileira

CINEMA E HUMANISMO (prefácio Alex Viany, 128 págs.,  Editora Palias, Rio de Janeiro, 1975).
“É um dos raros estudos sérios sobre o cinema já escritos no Brasil, e tem inegável mérito”
  Otto Maria Carpeaux

“É um alívio ler um crítico, um ensaísta cinematográfico, que permanece firme nessa de ver com os olhos e sentir com os sentidos – e, mais, olhos e sentidos tão brasileiros (e descolonizados) quanto é possível alguém ter nestes 70 tão multinacionais.”
 Alex Viany

“Enriquece a nossa pobre bibliografia de cinema. (...) Não é um livro morno ou inocente: a instigação polêmica está em todas as suas páginas. (...) Cinema e humanismo é um apanhado sintético do cinema, de hoje e de ontem: visão crítica e histórica, uma soma positiva para a bibliografia brasileira.”
 Assis Brasil

“Bem escrito, caloroso, com uma visão sintética do cinema brasileiro enquanto fenômeno cultural no sentido mais amplo da palavra, isto é, sem perder de vista o entrosamento da cultura com a economia e a sociedade como um todo. (...) Eminentemente opinativo, possui base informativa suficientemente sólida para que as opiniões ganhem valor objetivo, vibração inteligível e um grande poder de movimentação de ideias. (...) Outra qualidade importante a assinalar no livro é o tom quase didático mas nunca esquemático, que o torna muito útil para estudantes de cinema ou jovens em geral interessados no conhecimento do fenômeno cinematográfico.”
 Miguel Borges

Nunca mais
20 anos na Bahia
Ronaldo Werneck


Terrível é saber que nunca mais terei vinte anos nem o corpo intacto como na Bahia de 64. Vinte anos, eu pleno e pronto para todos os prazeres, tabálcoois & tabarizes. Leia-se cigarro, cerveja & Tabariz: a diabólica boate daquela ladeira por trás do Cine Guarany, aquela ali que o Jorge Amado vai retomar mais tarde — o “Novo Tabariz” de seus futuros romances. Tabariz era sinônimo de “vadiar”, como fazia o Vadinho da Dona Flor. Vão-se as virtudes vem a vida, varal de vícios. A Bahia, pelo menos a “minha” Bahia, cheirava a acarajé & sexo, exatamente como Maria Bethânia diria certa vez da lambreta, aquele marisco que a gente entornava com a cerveja da madrugada na Ladeira do Pelourinho: “dá um tesão dos diabos!”. Difícil conciliar futebol e farra. E, antes de qualquer coisa, em 64, como ainda hoje, a Bahia já era uma farra só, imensa e permanente.

“Temos que dormir pelo menos umas quatro horas por noite, Ronaldo. É preciso conservar o corpo pras mulheres”. Sábias essas palavras de Antônio, da jovem turma do cinema baiano dos anos 60, o pessoal com quem eu andava na época. O Antônio que nós chamávamos de “Antônio das Mortes”, brincando com o filme do Glauber. O nosso Antônio das Mortes disse sua histórica frase no exato momento em que o crítico Alberto Silva adentrava a Cantina da Lua, a cara idem, em plena madrugada do Terreiro de Jesus. Há três noites/dias sem dormir, Alberto parecia um zumbi, com uns bons cinco quilos a menos que seu normal, que já não era muito, ele que até hoje conserva sua magreza baiana e bastante.

Nosso crítico predileto encostou-se solene ao balcão do botequim, pediu a clássica batida de limão, e disse que vinha de um aniversário de criança, onde subira numa cadeira e fizera um veemente discurso contra os milicos que tomaram o poder depois da quartelada de abril.  Um espanto, o Alberto. Sóbrio, sempre foi cordato e simpaticíssimo. Bêbado, um revolucionário romântico e, por isso mesmo, eterno.  Lembro de outra madrugada baiana, logo no início daquele abril de 64, dia 2, talvez dia 3, nós dois voltando pra casa: eu e Alberto trôpegos ali pela Rua Chile, vizinhanças do Elevador Lacerda. No Centro da Bahia, o sol já ensolarando todas as cores dia adentro – vermelho-amarelo-azul-verde-azul – lá pelas bandas do mar, por trás do Forte de São Marcelo.

Vício de jornalistas, mesmo bêbados compramos nosso jornal. Continuamos a andar, quer dizer, a tropegar, quando Alberto começa a gritar as manchetes do jornal que lia: “Milicos não duram muito!”. “Jango resiste no Sul!”. “Brizolla pronto para derrubar a quartelada!”. Os baianos que iam pro trabalho àquela hora, quer dizer, uns dois ou três, os baianos, aqueles entes manemolentes, voltavam-se estarrecidos, não acreditando, mas querendo acreditar, nas manchetes inventadas pelo Alberto. Tomamos nosso ônibus rindo muito, a alma lavada. Que maravilha! Melhor, que coisa mais porreta, como dizem os bons baianos. Realmente, Antônio das Mortes tinha razão: a gente precisa dormir pelo menos umas boas quatro horas (aliás, nem carece de quatro horas: dormir com as “boas” já basta) antes de se aventurar em qualquer aniversário de criança.

Pois é, como podem perceber, era preciso dormir bem mais do que isso pra se ficar sob as traves, à espera dos intermináveis tirambaços dos baianos de todas as estirpes e que tentavam me estirpar a qualquer custo da posição de guarda-valas, onde aliás, estava eu perenemente metido – nas invioláveis valas da noite em vão. Era muita noite pra pouco dia: não havia tempo pro futebol na Bahia. Mesmo assim, o time da AABB, comigo sob as traves, ganhou a grande maioria das partidas do início do campeonato e estávamos inclusive seriamente cotados para ir a São Paulo representar a Bahia na disputa do Torneio de Futebol de Salão Bancário. Mas pode um jovem goleiro resistir aos acenos da noite? Depois eu conto.
Jornal Olé nº 17/16 a 31de abril de 1998
Do livro Há Controvérsias 1
Editora Arte Paubrasil, São Paulo, 2009




04 setembro 2012

Ronaldo Werneck e o quixotesco Athayde



Ronaldo Werneck, poeta, escritor, jornalista, conviveu muito em Salvador, nos anos 60, com Carlos Alberto Vaz de Athayde. Lendo neste blog a seu respeito, enviou-me uma mensagem, que é um depoimento muito interessante sobre o saudoso Athayde. Os dados referentes a Werneck foram retirados de seu site http://www.ronaldowerneck.com.br

Ronaldo Werneck nasceu em Cataguases-MG e morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro.
Jornalista, colaborou com vários jornais e revistas cariocas (Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre - Biblioteca Nacional). Desde 2001 é Assessor de Comunicação e Editor de Textos da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, em Cataguases, e Diretor de Comunicação do Cineport, Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa.
Poeta, tem nove livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), o ensaio Kiryri Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK (2009) e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o cd Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?
Editor de Suplementos Literários, ensaista, tradutor e crítico de literatura, cinema e artes plásticas, tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna "Há Controvérsias", publicada em vários blogs e no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Produtor Cultural, foi um dos realizadores dos dois Festivais Audiovisuais de Cataguases – Música e Poesia (1969/1970) e Coordenador da Exposição Os Mineiros do Pasquim, em 2008.
Em 2011, lança novo livro de crônicas, Há Controvérsias 2.

Sua mensagem sobre Athayde, que me enviou:
"Caro André,
li no seu blog sobre o Carlos Athayde. Tentei postar um comentário, mas não consegui de forma alguma. Minha ignorância virtual não é nada virtual. Antes, pelo contrário, é mais do que palpável.
Como diz minha filha, "o papai trabalha com email". É o máximo que consigo, embora tenha um blog e um site (claro que os posts são realizados por um amigo "internético").
Mas voltemos ao Athayde, agora sim: via email.
Fui muito amigo dele durante o ano de 1964, quando morei em Salvador. A gente se encontrava quase todas as noites pelos bares da Bahia: eu, Alberto Silva, Roberto Gaguinho e o Bel, todos nós bebendo todas e o Athayde fumando, fumando e bebendo café, café, café. Sempre de gravata e com seu terno escuro, à la Mastroianni/Guido Anselmi do 8 1/2 do Fellini (vimos o filme várias e várias vezes durante a semana em que foi lançado na Bahia). Nosso papo, é claro, girava só e tão-somente sobre cinema, cinema, cinema. Fora o Alberto (com quem retomei contato depois que ele foi pro Rio,  onde morei durante mais de 30 anos e ficamos muito amigos, inclusive trabalhando juntos em jornais, época "carioca" em que também voltei a me encontrar com o Tuna), o meu caríssimo Alberto Silva que desapareceu da minha vida desde que voltei pra Minas, há dez anos, e até hoje não sei onde anda, se está vivo ou não, fora o Alberto, então, só vi meus amigos em passagens esparsas pela Bahia pós-64. Quando, nos anos 1970,  lancei meu livro de poemas Selva Selvaggia em Salvador, na Cantina da Lua, do Clarindo Silva (que está lá firme e forte até hoje, estive com ele há dois anos) o Bel ajudou e muito na divulgação, inclusive agendando uma entrevista na TV Itapoã, onde trabalhava na época. Gaguinho revi algumas outras vezes de passagem por Salvador (lembro-me de um almoço antológico que começou exatamente no Terreiro de Jesus, na Cantina do Clarindo e acabou num botequim lá nos baixos do Pelourinho, com uma moqueca diabólica).  
Mas o Athayde, não. E logo o meu caro Athayde, amigo de longos papos sobre literatura e cinema. Chegamos até a pensar um roteiro de um filme que faríamos juntos, dois personagens antagônicos perdidos numa ilha, roteiro que existiu somente em nossas cabeças e sequer chegou ao papel. Depois andei acompanhando algumas de sua filmagens, inclusive um documentário sobre bombeiros (Vida por Vida?), com cenas realizadas na Feira Água de Meninos, quando daquele incêndio criminoso de 1964 (Gil chegou até a fazer uma canção sobre isso). Lembro-me de nós dois, eu e Athayde, caminhando  entre as tendas da feira, ouvindo sucessivas explosões nas bodegas, todas elas lotadas de garrafas de cachaça.  Em 1965, voltei pro Rio. Trocamos algumas cartas, mas de repente o Athayde sumiu, a vida levou a gente pra outras bandas. Vejo agora no seu blog alguém falando da vontade dele de vir a Cataguases falar com o Humberto Mauro sobre a droga (mescalina) que o velho Mauro dizia que era preciso injetar nas câmeras do nosso cinema. Na verdade, o Humberto Mauro falou isso pra mim numa entrevista que fiz com ele em Volta Grande, nos anos 1970 (devo ter mandado essa entrevista pro Athayde, ou pro Gaguinho, que repassou pra ele). Fui amigo do velho Mauro (inclusive publiquei um alentado livro sobre ele em 2009, "Kiryri Rnedáua Toribóca Opé"). A frase do Mauro, remetendo ao Aldous Huxley do romance "A Ilha", era "é preciso dar uma injeção de mescalina nas câmeras" (Mauro me falava da apatia de nossos cineastas e me perguntou "como é mesmo o nome daquela droga usada pelo Aldous Huxley"?). Não sabia dessa vontade do Athayde de vir a Cataguases falar com o Mauro. Aliás, se viesse, não iria encontrá-lo. Mauro, na verdade, filmou por aqui nos anos 1920. Depois foi pro Rio e por lá ficou até os anos 1960, quando retornou a Volta Grande (onde nasceu) e ficou até sua morte, em 1983.
Pois é, André, como se vê, eu "trabalho mesmo é por email".  Perdão por ter me estendido tanto. É que a a notícia sobre o Athayde em seu blog (e sua morte, que eu não sabia, mas imaginava) me fez voltar a um tempo de juventude e muitos sonhos naquela Bahia dos anos 60. Muitos e muitos sonhos, como os de Carlos Athayde, sonhador compulsivo. Saudade do meu amigo.
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Grande abraço,
Ronaldo Werneck"