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05 maio 2006

Lembranças de Sganzerla na Bahia



Rogério Sganzerla nunca aderiu ao comercialismo. Neste ponto, foi inflexível até o fim. Uma vez, num festival, acho que em Brasília, contrariado com Neville D’Almeida, que, por oportunismo, tinha aderido ao pensamento sganzerliano sobre cinema, mas, depois, aderiu ao puro mercado, foi ao quarto do hotel onde este estava hospedado e lhe desferiu soco violento. Razão alegada: o ex-amigo Neville traiu seus princípios. Em 1978, quando existia, aqui, o escritório da Embrafilme, que programava o Glauber Rocha, dando preferência aos filmes de Barretão, num escárnio sem precedentes, chegando a deixar Menino do Rio mais de dez semanas em cartaz, quando nas últimas a sala estava às moscas, a colocação de O Abismo - ou como se quer agora Abismu - apenas no Rio Vermelho acendeu a fúria sganzerliana. Dirigiu-se ao escritório da Embra e com o pé - estava lá, vi com estes olhos que a Terra há de comer - espatifou o telex da empresa.

Tinha seus princípios, suas concepções sobre cinema, e lutava por eles até o fim. Sua estadia na Bahia foi significativa. Virou hippie, ficava deitado na rede em Itapoã nos anos 70 e, depois, resolveu comprar um apartamento na Avenida Paralela. Curtia muito o sol de Itapoã. Mas, já na Paralela, com a sua sempre querida Helena Ignêz e os filhos, comprou um Chevette enferrujado para se deslocar. Uma vez, tomando carona, ao fechar a porta, esta caiu no chão.

Certa ocasião, encontrei com ele na porta da Tribuna da Bahia aonde ia regularmente entregar minhas colunas. Era de tarde, mais ou menos 2 horas. Fomos beber cerveja no bar de um ‘espanha’ em frente. Mais de dez garrafas das grandes. Sganzerla, com notas de 500 - naquela época a maior, saindo pelo bolso da camisa, pagou tudo, apesar de minha insistência em dividir. Fomos a um escritório à rua Ruy Barbosa onde ele me emprestou A Marca Da Maldade, de Orson Welles, em cópia 16mm contida em duas latas. Eu tinha, nesta época, um projetor IEC desta bitola e vi o filme várias vezes até que, anos depois, Sganzerla irrompeu em meu apartamento para buscar a cópia, que pensava ter ele esquecido para sempre. Bem, nesta rua Ruy Barbosa tinha um bar e continuamos a beber. Corria célere o ano de 1979. Noite adentro, com as portas do bar - um fétido bar, diga-se de passagem somente accessível aos temperamentos etílicos - já arriadas, Sganzerla subiu na mesa e fez um discurso atacando o Cinema Novo. Ninguém, no recinto, entendeu porra nenhuma. Mas embriagados de toda espécie gostam mesmo de entrar, após umas e outras, em qualquer portinha onde venda cerveja - ou, se for o caso, trago forte. Sganzerla, diga-se de passagem, bebia apenas ocasionalmente.

Encontrei-o várias vezes no jardim dos Barris, onde eu ficava esperando a sessão começar na Sala Walter da Silveira com uma namorada. Ele ia muito neste jardim, que ficava atrás da casa dos pais de Helena Ignez, que se localizava na mesma rua da pensão de D. Lúcia Rocha, onde Glauber passou a adolescência e veio a conhecer a linda vizinha com quem se casou na Igreja das Mercês em 1959.

Com o passar do tempo foi deixando o hipismo, e, já nos anos 80, tinha mudado completamente a sua indumentária. Saiu de Salvador, foi morar na Urca no Rio de Janeiro. Ia sempre, porém, a São Paulo. Foi na Bahia que começou a pesquisar sobre Orson Welles. Podia ser encontrado toda tarde no Instituto Geográfico e Histórico, ali perto da Piedade. Contou-me que, um dia, em Itapoã, conversando com um pescador velho, perguntou a ele se conhecera Orson Welles e, para sua estupefação, o pescador o tinha conhecido, sim, descrevendo-o nos mínimos detalhes. É que Welles teve uma temporada baiana e filmou aqui alguma coisa para It’s all true. Ficou encantado com a praia de Itapoã, fez conferência no Instituto Histórico e se hospedou no Palace Hotel na rua Chile na época em que existia jogo de roleta. Tomou um porre homérico, mas não jogou os móveis do quarto pela janela como fizera no Copacabana Palace depois que soube, pelo telefone, que a RKO tinha desistido de It’s all true,cortando-lhe os recursos.

Levei-o uma vez à Facom (Faculdade de Comunicação da Ufba), ainda no prédio de Biblioteconomia. Exibi em 16mm O bandido da luz vermelha, e depois Sganzerla falou muito para uma platéia apática, que, em 1982, o desconhecia. Saímos com as latas pesadas do filme e nos dirigimos ao Avalanche no Canela onde ficamos a tomar umas e outras. Para minha vergonha, alguns alunos se retiraram no meio da palestra do grande cineasta.

A última vez que o vi foi em 2001 quando fiz parte da comissão julgadora dos roteiros do Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues. Ele também fazia parte. Para julgar melhor os roteiros, o presidente da comissão teve a idéia de passar com seus membros uma semana inteira em Cachoeira, em sua melhor pousada. Sganzerla estava bem disposto, vendendo saúde, chegando, inclusive, a me criticar por um porre de cerveja que tomei.

03 maio 2006



A musa do blog aqui presente. Amém!

O DVD dá luz a Carl Theodor Dreyer

O advento do DVD, pelo menos para mim, foi uma coisa revolucionária. Ainda que no mercado faltem muitas obras importantes, o que se encontra disponível já dá para se ter uma pequena cinemateca. Por exemplo: se não existisse o disquinho onde poderíamos ver os filmes do dinamarquês Carl Theodor Dreyer?. Excetuando-se o seu famoso La passion de Jeanne D'Arc (1928), acredito que a Cinemateca Brasileira, de São Paulo, não possua em seu acervo obras fundamentais como A palavra (Ordet, 1955), Gertrud (1964), Vampyr, entre outros. Tendo-as, então seria o caso do amante do bom cinema, que não mora em SP, ter que viajar para vê-las e, mesmo assim, subordinado à programação da sala. Se não as tem, somente poderiam ser contempladas em Paris e Nova York. Mas o disquinho possibilita a apreciação de cinco obras de um realizador especialíssimo, como Carl Theodor Dreyer. E o resgate de todo o grande cinema do passado está sendo processado através do DVD. Se este não existisse, estaríamos condenados ao lixo da contemporaneidade e a nova geração ficaria sem saída para saber o que foi o cinema.

Assistindo a Ordet, percebi que Ingmar Bergman sofreu muita influência do dinamarquês. Simbiose do expressionismo alemão com o realismo nórdico, Ordet é uma obra-prima indiscutível, ainda que não se acredita em milagres. Os momentos de Ingrid a morrer, a agonia da espera de sua morte, lembra muito Harriet Anderson em Gritos e sussurros. O que impressiona muito é a cenografia, o branco que compõe o quarto da doente. Já Bergman, fazendo uma variação, coloca o vermelho. Mas Ordet não é para se considerar assim em poucas palavras.

01 maio 2006

Glauber Rocha: ruptura e revelação


A realização de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, em 1964, sobre ser um acontecimento para a consagração do Cinema Novo, traumatiza duramente toda uma geração de cineastas por meio de seu estilo esfuziante determinador de um verdadeiro impacto estético. O filme, que consta da relação do eminente crítico francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema em todos os tempos, está a completar 42 anos de existência, e seu lançamento em DVD, em cópia luminosa, comprova, na revisão, uma atualidade surpreendente ao contrário de outros de sua época datados e envelhecidos. O tempo, comprova-se mais uma vez, é o melhor juiz no julgamento da obra cinematográfica.E, agora, está já nas melhores locadoras o seu maior trabalho, a obra-prima que é Terra em transe.

Filmado em Monte Santo, produzido pelo carioca Jarbas Barbosa, e segundo longa metragem de Glauber Rocha – o primeiro, Barravento (1959/1962), Deus e o diabo na terra do sol surge, no panorama do cinema brasileiro, como um divisor de água, considerando ser uma obra renovadora na sua estrutura narrativa que consolida uma invenção formal inédita entre as películas realizadas no país. Ópera sertaneja ou, talvez, melhor dizendo, concerto barroco, cujas influências alienígenas notórias não poluem o estilo, o filme, no entanto, possui um toque pessoal e uma maneira toda particular na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica.

Há, na estrutura narrativa barroca de Deus e o diabo na terra do sol, a influência da tragédia grega – o cego Júlio como fio condutor; a de John Ford – na exploração dos grandes espaços em planos abertos como na seqüência da morte da mãe do vaqueiro Manoel e o tiroteio que vem a seguir; a de Akira Kurosawa – na gestualística do personagem de Corisco (Othon Bastos), o rodopio quando morre; a de Sergei Eisenstein – a matança dos beatos em Monte Santo por Antonio das Mortes se estrutura de acordo com as coordenadas da montagem eisensteiniana da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin; a de Luis Buñuel – a morte do beato por Rosa dentro da Igreja, entre muitas outras. Se, à primeira vista, isso pode parecer uma colcha de retalhos, na verdade, porém, há uma confluência que se canaliza para uma demonstração estilística particular e própria, instauradora daquilo que se chama de uma escrita glauberiana.

Deus e o diabo na terra do sol é, sem sombra de dúvida, para muitos exegetas, o maior filme do cinema brasileiro, ainda que alguns críticos vejam em Terra em transe um avanço ainda maior (como é o caso, aqui, desse mal escrevinhador). Mas em ambos se verifica uma manifestação no sentido de quebrar a linguagem cinematográfica dos cânones acadêmicos inaugurados por David Wark Griffith com o estabelecimento da montagem narrativa em 1914 com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), e que configuraria, quase como uma norma gramatical, a lei da progressão dramática – apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace. Sergei Eisenstein, na década de 20, em plena efervescência da transformação revolucionária soviética, subverte-a com a teoria da montagem intelectual ou ideológica. Mas o padrão cinematográfico continua sendo o da narrativa griffithiana. Que já nos anos 50 a desdramatização de Rossellini e Antonioni põe em xeque, inaugurando a anti-narrativa, que seria radicalizada nos 60 pelos filmes de Godard & Cia.

Se já em sua obra de estréia, Barravento, se insinua um touch eisensteiniano – na cena em que Firmino (Antonio Pitanga), desesperado, fala a pescadores impassíveis – e se percebe que ele se encontra em outro espaço fílmico, Deus e o diabo na terra do sol constitui-se num amálgama de influências diversas cujo processamento se faz em tom original, podendo ser considerada a primeira obra com a quintessência da escrita glauberiana, já que, em Barravento, Glauber Rocha entrou após um golpe com 2/3 do filme já executados. Mas se, em Deus e o diabo na terra do sol, ainda que haja seqüências que procuram o dinamismo do corte em movimento, a sua maioria, entretanto, é de planos longos, com a câmera a passear entre os personagens, demorando-se na captação de seus gestos e emblemas. O mesmo não vem a acontecer com o processo de criação cinematográfica de Terra em transe, cuja montagem é sincopada, os planos curtos, a câmera sempre acelerada em torno dos personagens e, em alguns casos, sem que, com isso, se apague a marca do autor, a presença da mise-en-scène wellesiana.

Na filmografia glauberiana, percebe-se um realizador sempre em transe, sempre em busca, sempre incomodado, sempre numa procura desesperada da traduzir a realidade brasileira num discurso quase alucinatório, servindo-se do próprio mundo para o recriar de maneira completamente original. O maior cineasta brasileiro? Sim, nenhum outro foi capaz, como ele, de recriar a realidade nacional numa tradução revolucionária. Na obra que se segue a Terra em transe, não considerando, aqui, Câncer – que é o pioneiro do Cinema Underground, embora Glauber nunca tenha assumido esta paternidade, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, o realizador tenta traduzir para as imagens em movimento a linguagem da literatura de cordel numa mistura, poder-se-ia dizer, insólita, com a tragédia transposta para a aridez dos cenários sertanejos.

As duas grandes manifestações da arte glauberiana estão em Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, vindo o cineasta, após estes dois fulgurantes momentos da expressão cinematográfica, a um reprocessamento de suas constantes temáticas que atingiu pleno êxito apenas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O exílio europeu não lhe proporciona um estímulo de renovação nem de equilíbrio como autor, considerando, neste caso que, num autor, não se pode exigir permanente renovação, pois ele se caracteriza pela variação sobre um mesmo tema – Bergman, Fellini, Chaplin, Antonioni, Mizoguchi, Buñuel, et caterva. Mas Cabeças cortadas e O leão de sete cabeças – ou, como queria Glauber, em cinco idiomas: Der leone have sept cabeças, revistos hoje, são simplificações temáticas que culminariam, entre outros filmes, como o genial Di Cavalcanti – uma exceção na segunda fase do autor de Deus e o diabo na terra do sol, no radicalismo da montagem atômica de A idade da terra, canto de cisne do cineasta que viria a morrer num aziago agosto de 1981. Mas, como se costuma dizer, no macrofilme glauberiano, que é toda a sua filmografia, uma obra singular, ainda que menor, não pode ser considerada, por isso, menos importante.





30 abril 2006

Barbaridade


Quinta, vi anunciado que ia passar no Telecine Cult, O leão do inverno (The lion in the winter, 1968), de Anthony Harvey, (montador de Lolita e Dr. Fantástico, ambos de Stanley Kubrick), com um elenco de monstros sagrados: Peter O'Toole, Katherine Hepburn (ganhou um Oscar pelo desempenho primoroso da rainha, ex-aequo com Barbra Streisand por Funny Girl, de William Wyler), Anthony Hopkins (aqui, em seu primeiro papel no cinema, muito jovem e gordo), Tomothy Dalton (que, nos anos 90, foi James Bond), secundados por atores inglêses do proscênio teatral de altíssimo nível. Tinha um compromisso que levou a tarde toda, mas, perto da hora marcada, 19:30, saí antes do fim, para ver O leão do inverno, pois visto no cinema Tupy no fim da década de 60, guardava, dele, boa lembrança. Esta sala exibidora era especializada em exibir filmes em 70mm e, evidentemente, já foi fechada. Assim, o meu único contato com The lion in the winter foi "no esplendor dos 70mm". Filmado em cinemascope, pelo artista Douglas Slocombe, para suavizar o excesso de diálogos, porque baseado em peça teatral, The lion in the winter tem excelentes composições de enquadramento em plano geral e, nos momentos de diálogos, os personagens geralmente ocupam as laterais do quadro. Trata-se de um cruel e impiedosa reflexão sobre o poder com acentos shakespearianos, com roteiro do próprio autor da peça, James Goldman. Impossível reduzi-lo a uma tela cheia, por exemplo. Mas foi o que aconteceu. Iniciado, conservou o Cult, durante a apresentação dos créditos, o formato original. Findo estes, a tela se espicha para dar lugar ao full screen. Quinze minutos decorreram para que, hidrófobo, desligasse, incontinenti, a televisão.

Aliás, os canais telecine não respeitam mais o formato cinemascope. Agora mesmo, domingo, ia ver Viagem ao fundo do mar, de Irwin Allen, mas fizeram o mesmo: após os créditos, as imagens se esticaram, e, também, estiquei-me do sofá para fazer outra coisa.

27 abril 2006

Diamante minnelliano



Frank Sinatra e Martha Hyer em Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), do grande Vincente Minnelli, que, além dos musicais clássicos, como o inexcedível A roda da fortuna (The bandwagon, 1953), entre muitos outros, realizou comédias sofisticadas e dramas ásperos, como este, Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), e o esquecido, mas excelente, A cidade dos desiludidos (Two weeks in another city, 1961), que faz alusão expressa a Assim estava escrito.Minnelli é insuperável, um mestre.

25 abril 2006

Beija-me idiota



Comédia sobre a inversão de papéis na representação da hipocrisia social, e a dialética do ser e da aparência, com uma visão ácida do american way of life, Beija-me Idiota (Kiss Me, Stupid, 1964), de Billy Wilder, ainda que tenha na sua fonte primária uma peça de teatro, L’Ora della Fantasia, de Anna Bonacci, possui, no entanto, um ritmo frenético e envolvente por causa da ourivesaria do roteiro do parceiro de Wilder, I. A.L. Diamond, composto a quatro mãos com o realizador, embora este não coloque sua firma no screenplay. Se Wilder, antes, na sua filmografia, já tinha atacado o mal estar do capitalismo (Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment, 1960, entre outros), é, porém, em Kiss Me, Stupid que sua crítica se faz mais visceral. O filme, quando lançado na primeira metade dos anos 60, foi atacado pelos moralistas e proibido em alguns estados da América do Norte. E, apesar de distribuído pela United Artists no mundo inteiro, não contou com verba publicitária, passando em muitos lugares despercebido. A virulência do olhar wilderiano, sobre certas idiossincrasias da sociedade americana, chocou os mais conservadores e arautos do establishment. A observar, entretanto, que se, na época de sua estréia, foi motivo de restrições absolutas pelas ligas de decências, foi servido, em 2003, pelo defundo e saudoso Telecine Classic em plena noite de Natal como presente de fim de ano. E o mundo, indiscutivelmente, mudou. Mas a permanência das observações contidas em Kiss Me, Stupid continuam atuais, considerando-se que a mentalidade dos retratos é a mesma seja em 1963, seja em 2006. O que mudou foi a instauração da apatia na recepção num mundo em desagregação que já não se importa mais pela preservação nem mesmo de sua antiga hipocrisia.

Wilder dá início a esta comédia-demolição com uma panorâmica na qual mostra um plano geral de um teatro, que anuncia o cantor Dino (Dean Martin), no qual os letreiros vão sendo retirados a denotar a despedida do artista. E no plano a seguir, com a música envolvente de Gershwin, Dino está no palco, meio bêbado, intercalando a canção com suas piadas características. Os créditos se anunciam neste frenesi e continuam na viagem que o cantor, saindo furtivamente para fugir das mulheres, inicia em direção a Hollywood onde, diz, vai fazer um filme com Frank Sinatra e sua turma. Mas um incidente, no meio do caminho, determina-lhe um outro itinerário para chegar a seu destino, obrigando a passar por várias cidades interioranas. Numa destas, Clímax, de poucos habitantes e cheia de preconceitos – tão diferente da visão edulcorada de uma cidadezinha americana apresenta em Cine Majestic, de Frank Darabont, Dino pára num posto de gasolina para abastecer seu carro, onde é atendido pela frentista Barry (Cliff Osmond – que sempre trabalha com Wilder e em Irma, la douce faz o guarda que recebe o dinheiro ao colocar o chapéu, logo no princípio, no bar de Moustache). Em Climax, mora um compositor e professor de piano, Orville Jeremiah Spooner (Ray Walston), parceiro de Barney em muitas músicas, casado com Zelda (Felicia Farr, esposa, na época de Jack Lemmon), apaixonada, desde criança, por Dino, e que tem todos os seus discos em casa. Mas Orville e Barney sonham que um dia suas músicas sejam reconhecidas e consigam sair do anonimato. Assim, a presença de Dino no posto de gasolina acende a chama da ambição de Barney, que danifica o motor do carro de Dino a fim de que ele fique retido em Clímax e venha a conhecer as músicas da dupla.

A solução encontrada pela mente fervilhante do gordo Barney é fazer com que Dino passe a noite na casa de Orville, mas este, que morre de ciúmes infundados da mulher, precisa arranjar um jeito de pô-la para fora por uma noite. Dino, insaciável quando se trata do sexo feminino, diz que não pode deixar de ter uma companhia, e, para satisfazê-lo, o plano de Barney inclui a vinda de uma prostituta, Polly, the pistol (Kim Novak, magnífica), que trabalha num bar/prostíbulo O Umbigo, cujo cartaz anuncia desde logo: “Entre e se perca”. Orville consegue brigar com a mulher e ela vai para a casa da mãe. Barney traz Polly, que representa, para Dino, ser a esposa de Orville. A troca de identidade, porém, não funciona, pois Polly, apesar de prostituta, uma profissional paga para um trabalho específico, qual seja o de dormir com Dino como se fosse a mulher de Orville, se enternece por este e não mostra o menor interesse pelo cantor. As coisas se complicam. Polly mostra que seria uma excelente dona de casa. E Zelda, saindo da casa dos pais, acaba indo tomar um porre no Umbigo.

O que interessa na verdade é que Wilder demonstra pela comédia que uma dona de casa típica americana pode ter uma mente prostituída – como, geralmente, muitas das donas de casa do mundo inteiro cujas fantasias são incontáveis, enquanto uma prostituta pode ser uma mulher pura e mais adequada ao lar. A comédia se desenvolve na base de uma ironia constante cujos atributos não se devem apenas a Wilder, mas, também, ao roteiro imaginoso de Diamond, que consegue driblar o peso teatral do argumento em função de uma transmissão deste através dos procedimentos cinematográficos. É neste particular que a direção de Wilder entra em campo ao conferir aos seus enquadramentos um sentido de equilíbrio e ritmo extraordinários. Este realizador sabe construir seu filme de tal maneira que o corte se anuncia como um atendimento à expectativa do espectador.

O imaginário de certas pessoas interioranas dos Estados Unidos, como Zelma, a mulher de Orville, que é a presidente do fã-clube de Dino, é uma representação das idiossincrasias de uma sociedade na qual o que importa mesmo é o sucesso a qualquer custo. Daí certo cinismo no final, a recusa de um happy-end, e a manutenção do status quo anterior, ainda que se possa pensar no desenlace diferente.

Entram na composição da excelência do espetáculo, além da direção de Wilder e do roteiro de Diamond, a funcional iluminação em preto e branco de Joseph La Shelle – fotógrafo preferido, em cinemascope, capaz de dar a Clímax um tom cinzento e a tela larga é sabiamente utilizada no deslocamento dos atores no espaço, facilitando o trabalho da câmera, a partitura musical de André Previn que utiliza clássicos da música como alguns dos compositores George e Ira Gershwin. E o elenco afinado, bem wilderiano, como o citado Cliff Osmand, que faz Barney, Ray Walston, Dean Martin e Felicia Farr. E inexcedível está Kim Novak num papel diferente, perfeitamente à vontade, blasé, principalmente para quem a imagina como a Madeleine de Scott na obra-prima Um Corpo Que Cai (Vertigo), de Alfred Hitchcock.

21 abril 2006

Amor na tarde



Um dos filmes menos citados de Billy Wilder, mas, nem por isso, menos importante, Amor na tarde (Love in the afternoon, 1957), com Audrey Hepburn, Gary Cooper, e Maurice Chevalier, baseado numa novela de Claude Anet, e roteirizado a quatro mãos com seu fiel colaborador I.A.L. Diamond, é uma deliciosa comédia romântica dotada de uma finesse que desapareceu, e acho que para sempre, do cinema contemporâneo. Hepburn é a filha de um investigador particular (Chevalier), que se apaixona por um cliente milionário de seu pai (Gary Cooper, que morreria três anos depois, em 1960). Para o conquistar, se faz passar por uma mulher que pratica o adultério nas tardes parisienses. A seqüência final, toda desenrolada numa estação ferroviária, é um primor de carismas e de direção de atores. Outro Wilder que considero muito é sua obra crepuscular Avanti!, (1973) que, no Brasil, tomou o título de Amantes à italiana, e que tem um inexcedível Jack Lemmon ao lado de Patricia Mills nos principais papéis. Avanti! é a síntese wilderiana.

16 abril 2006

MONSIEUR CINEMA


A morte do ator americano Gregory Peck, ocorrida em 12 de junho de 2003, aos 87 anos (se vivo fosse, neste 2006, Peck estaria prestes a completar 90 anos), não apenas registra o desaparecimento de uma figura singular do cinema americano de todos os tempos, mas sinaliza o fim de uma época, de uma cultura, de um estilo de representação, de uma maneira de se ser no mundo. Entre o período áureo – no qual Peck pontifica – e o atual, há uma distância bastante grande, que se mede pela degradação do homem contemporâneo na sua gestualística, no seu modo de ser, e da cultura da chamada contemporaneidade na qual o processo de decadência, flagrante, incendeia nos corações e mentes a apatia de uma demência que se poderia até chamar de precox (esquizofrenia).
Peck pertence a uma outra cultura onde ainda se pode verificar a presença de princípios éticos norteadores de comportamentos, quando o cinema ainda possui uma qualidade que se encontra completamente diluída, hoje, nos arruídos da mediocridade dos blockbusters, na metástase absoluta da tendência “videoclipadora” dos filmes que se apresentam na atualidade. É a personalidade de Gregory Peck que o faz singular, atraente, tornando-o uma figura emblemática do cinema americano. Até Rita Lee, numa música, não resiste a seus encantos. Mas a questão primordial é a que interroga se Peck teria a mesma aceitação no caldo cultural em frangalhos da contemporaneidade – o uso deste termo é a contragosto e com acentos pejorativos. Não, Gregory Peck – assim como Cary Grant, Clark Gable, Robert Mitchum, John Wayne, entre outros – não teria vez na algazarra debilóide de um cinema que elegeu Matrix Reloaded como o must da temporada. Padrão de refinamento, de um tempo no qual existe uma finesse nas relações humanas, quando o processo degenerativo da cultura ocidental ainda não se tem pontificado como norma de consumo e de conduta, quando o cinema é visto com poesia e encantamento, quando o cinéfilo ainda não é o consumidor indiferente e bagunceiro dos dias atuais, Peck representa o homem ético, a elegância, o charme, o aplomb, o cavalheirismo, a solidariedade e a generosidade do ser.No Festival de Cannes de 2000, Gregory Peck tem a sua derradeira grande aparição pública, quando é homenageado pela direção do evento, após a exibição do documentário Conversation with Gregory Peck. Subindo ao palco, Gilles Jacob, o sisudo crítico e diretor do festival, apresentou-o como Monsieur Cinema, e o ator é aplaudido de pé por mais de 15 minutos numa demonstração inequívoca da admiração geral. Em seguida, a entrevista coletiva mostra um Peck bem-humorado e bem disposto e jornalistas que de provocativos com os outros passam à reverência diante do monstro sagrado. “Ele é o próprio cinema”, escreve um deles para o Le Figaro.
Nasce, este inexcedível Gregory Peck, em La Jolia, Califórnia, em 1916, batizado com o nome de Gregory Eldred. Terminada a adolescência, estuda na Universidade da Califórnia, mas, formado, decide se aventurar pelos cursos de arte dramática com o objetivo de ser um ator. No proscênio, atua em várias peças e, numa delas, é descoberto por um “olheiro” da Fox, que o convida a trabalhar no cinema, em 1944. As chaves do reino (The keys of kingdom), seu segundo filme, dirigido por John M. Stahl, lhe dá, de saída, consagração popular. Trabalha com Alfred Hitchcock em Quando fala o coração (Spellbound, 1945) – em 47, o mestre o chama para fazer Agonia de amor (The Paradine case), e alcança prestígio inigualável como o irmão rebelde de Duelo ao sol (Duel in the sun, 1947), de King Vidor, mas, na verdade, filme de David Selznick, o poderoso produtor de ...E o vento levou. Incompreendido na época, pelo excesso de sensualidade e violência (Jennifer Jones explode como fêmea fatal caçada como uma fera), Duel in the sun é um western atípico que se configura como uma superprodução, quando o gênero americano por excelência tem sempre assegurados mirrados recursos para a sua produção. Não se pode esquecer, também, do belíssimo Virtude selvagem (The yearling, 1946), de Clarence Brown. Em 1947, Gregory Peck é incluído no grupo dos dez astros e estrelas mais queridos do cinema americano e, com Elia Kazan, trabalha em A luz é para todos (Gentleman’s agreement), filme corajoso para a época onde o ator faz um jornalista que se faz passar por judeu para investigar o anti-semitismo no seio da sociedade americana. Ganha os Oscar de filme, direção e atriz coadjuvante (Celeste Holm). No ano seguinte, encontra seu amigo William Wellman, que o convida para participar de um western: Céu amarelo (Yellow sky), com Richard Widmark, Anne Baxter, obra na qual alguns críticos enxergam ser uma adaptação disfarçada de A Tempestade, de Shakespeare: seis homens em um deserto e uma mulher procuram desesperadamente por ouro roubado.
Em 1949, o ator decide estabilizar a carreira ao encarnar quase sempre tipos de heróis melancólicos e reflexivos, com seu olhar triste e desencantado, como o oficial de Almas em chamas, de Henry King, realizador com o qual tem profícua colaboração: O matador (The gunfighter, 1950), filme sobre um pistoleiro (Peck) que decide abandonar o ofício, mas, por circunstâncias alheias à sua vontade, vê-se obrigado a mostrar, mais uma vez, que é o gatilho mais rápido do oeste;Da vid e Betsabá (David and Bethsheba, 1951), um épico à la DeMille, mas modelado com gosto e requinte por King e que tem, como a heroína, a bela e talentosa Susan Hayward. As outras parcerias com King incluem As neves do Kilimanjaro (The snows of Kilimanjaro, 1952), com Tyrone Power, Susan Hayward, Ava Gardner, grande sucesso de bilheteria baseado em livro de Hemingway; e um western de primeira, Estigma da crueldade (The bravados, 1958), no qual há um itinerário a percorrer, uma viagem imperiosa para liquidar aos quatro malfeitores que matam a sangue frio a esposa de Peck. A vingança é feita um por um e o final é surpreendente como surpreendente é este western desprezado pela crítica na ocasião de seu lançamento, mas que, revisto, revela todo o potencial de King como articulador de mise-en-scène. The bravados, de certa forma, por causa de sua violência inusitada, prenuncia Sam Peckinpah e Meu ódio será a tua herança (The wild bunch, 1968), com dez anos de antecedência. Com o grande Raoul Walsh trabalha em O falcão dos mares e O mundo em seus braços, mas é em 1953 que faz uma das melhores comédias românticas do cinema americano: A princesa e o plebeu (Roman Holiday), estréia de Audrey Hepburn no cinema, como a princesa que decide sair escondida do palácio, para fazer um tour anônimo pela Roma dos anos 50, quando encontra, por acaso, um jornalista americano (Peck, evidentemente). O encontro dos dois acende a chama da paixão, mas ela tem que voltar, ficando, apenas, o recuerdo. William Wyler, realizador notável, tem a necessária dose de equilíbrio para fazer de Roman Holiday um conto de fadas moderno. Obra de puro encantamento e impossível de ser feita atualmente, pois referência de um tempo, de uma época, de um estado de espírito que o vento impiedoso da contemporaneidade fajuta há muito levou. Peck é o Capitão Ahab em Moby Dick (1956), de John Huston, baseado no antológico monumento literário de Herman Melville. Se para Huston viver é lutar, a transposição das páginas do livro é, também, um risco e uma luta. Consegue, porém, convencer – embora não se possa comparar a obra literária com a cinematográfica.
E, após enfrentar os mares bravios de Moby Dick, Peck transfere-se ao refinamento nova-iorquino com o esteta Vincente Minnelli em Teu nome é mulher (Designing woman, 1957) ao lado de Lauren Bacall. Minnelli é o máximo em sofisticação e suas comédias são pérolas de bom gosto. Aqui, Peck é um jornalista esportivo casado com uma desenhista de moda e os conflitos que advêm daí dão o timing da comédia - este colunista, abrindo um parêntesis, coloca, entre os dez melhores filmes que já viu, um Minnelli: Deus sabe quanto amei (Some came running, 1958), com Frank Sinatra, Dean Martin, Shirley MacLaine. Uma obra-prima! Outro grande western estrelado por Gregory Peck é Da terra nascem os homens (The big country, 1958), fotografado em Cinemascope Deluxe, dirigido, novamente, por William Wyler. Exemplo de um cinema de gênero de um cineasta perfeccionista que não desvia a estrutura narrativa de sua fluência magnética, vê-se, aqui, Peck como um homem urbano que tem que enfrentar, em uma fazenda rural, rústicos criadores de gado. No elenco, Charlston Heston, Burl Ives – que ganhou o Oscar por este desempenho –, Jean Simmons, Carroll Baker. Segue, na trajetória do grande ator, A hora final (On the beach, 1959), de Stanley Kramer, e Os canhões de Navarone (The guns of Navarone, 1961), de J. Lee Thompson, filme de guerra com elenco estelar.
O melhor filme de Gregory Peck, no entanto, e pelo qual ganha o Oscar de melhor ator, é O sol é para todos (To kill a mockingbird, 1962), de Robert Mulligan, cineasta sensível e delicado, dotado de uma mise-en-scène evocativa e poética – Peck viria a trabalhar novamente com ele no insólito A noite da emboscada (The stalking moon, 1969). Em To kill a mockingbird, que, traduzido, significa Para matar um rouxinol, a história é contada sob o ponto de vista de uma criança que evoca sua infância numa cidadezinha preconceituosa do Alabama na década de 20, quando seu pai, um advogado, defende um negro injustamente acusado de violentar uma branca. Peck, aqui, se encontra na sua quintessência. O filme marca a estréia do ator Robert Duvall e foi lançado em vídeo nos anos 80 pela CIC Mas atualmente se encontra fácil em DVD.

15 abril 2006

O melhor filme brasileiro de todos os tempos


Afinal saiu o DVD de Terra em transe, o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Custa 59,90. A curadoria ficou a cargo de Paloma Rocha (filha de Glauber com Helena Ignez) e Joel Pizzini. Nos extras, Maranhão 66, curta que Glauber realizou para a campanha de José Sarney para o governo do estado que intitula o filme. Também há um documentário com raridades: Depois do transe, que, entre outras preciosidades históricas, apresenta o caloroso debate no Museu da Imagem e Som do Rio. Quando lançado, Terra em transe causou grande polêmica.

Meus favoritos do cinema brasileiro


01) Terra em Transe, de Glauber Rocha (1967), com Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Autran. O melhor filme brasileiro de todos os tempos, que retrata, num painel alucinante, o terremoto da política brasileira. Obra de grande impacto em sua mise-en-scène, com seqüências audaciosas, é, também, um canto agônico, onde um poeta - dividido entre a política e a arte, no processo de sua lenta morte, após um tiroteio numa estrada, repassa o seu pretérito. O filme, portanto, tem sua ação localizada na mente desse personagem enquanto dá seus últimos suspiros. Não se pode deixar de ver a influência de Alain Resnais (pouco reconhecida), a de Orson Welles, e a de Jean-Luc Godard. Surpreendente sob todos os aspectos.

_ _Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, com Geraldo D’El Rey, Othon Bastos, Maurício do Valle, Yoná Magalhães e Sonia dos Humildes. Filme-ópera que rompe com os cânones narrativos do cinema brasileiro para instaurar uma estética dilacerante onde estão em simbiose a tragédia sertaneja, plena de ecos gregos, e a expressão lancinante de brasilidade, onde, num toque original e impactuante, a influência de vários cineastas (Ford, Kurosawa, Buñuel, e principalmente Eisenstein - a matança dos beatos é nitidamente influenciada pela seqüência da Escadaria de Odessa de O encouraçado Potemkin) se espraia num estilo personalíssimo. Este filme traumatizou duramente o cinema brasileiro.

02) São Paulo S/A, de Luís Sérgio Person (1965), com Walmor Chagas, Eva Wilma, Otelo Zelloni. O Cinema Novo se desloca, aqui, do campo para a cidade. Person realiza uma obra delicada e sensível onde a cidade paulistana se integra no conflito audiovisual, inserindo-se na estrutura narrativa do filme como um personagem. Esta incorporação do ambiente ao tecido dramatúrgico é rara na cinematografia. Centro da metrópole, em plena era de industrialização, um homem perdido está à procura de um sentido para a sua existência. Exemplar!

03) O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla (1967), com Paulo Villaça, Helena Ignêz, Luiz Linhares. Carro-chefe do chamado Cinema Marginal - ou underground ou, ainda, udigrudi. Um faroeste do Terceiro Mundo, na definição de seu autor, obra de estréia em longa metragem, um filme único na cinematografia nacional. As imagens, desordenadas mas com uma cadência rítmica explosiva, aparecem, na estrutura narrativa, como a ilustração de um programa de rádio de classe Z. Duas vozes narram a trajetória de um perigoso marginal da periferia paulistana. O que se pode ver, neste filme extraordinário, é a apreensão, por um jovem cineasta de 21 anos, do melhor cinema praticado em décadas anteriores. Radiofônico, como Welles, sincopado em sua montagem, como Godard, mas de uma boçalidade exclusivamente brasileira. O autor assume a bregüice nacional com uma total non chalance, proporcionando, com isso, um retrato esculhambado por excelência, mas inteligentíssimo como expressão da arte do filme.

04) A Hora e A Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos (1965), com Leonardo Villar, Jofre Soares. O realizador venceu uma batalha mais forte do que a do seu personagem: adaptar, com poder de convencimento, uma obra de Guimarães Rosa. Problemas de especificidades lingüísticas à parte, o fato é que o filme é deslumbrante na tentativa de descrever o universo rosiano por meio da força de um outro signo expressivo: o da linguagem cinematográfica. Um grande momento para o Cinema Novo e para todo o cinema brasileiro. E Leonardo Villar está como que inexcedível no papel título.

05) Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte (1958), com Dercy Gonçalves, Anselmo Duarte, Odete Lara. Em pleno domínio da chanchada, o maior galã do cinema nacional da época dirige o seu primeiro longa. O resultado fica acima da expectativa, pois uma inteligente comédia de costumes que retrata, com graça e humor, a classe média paulistana. Mas, mais importante que isso, é o cinema ágil, engraçado, com excelentes transições, de um ritmo frenético que acaba por funcionar como um trabalho que ultrapassa o espírito de sua época. O realizador, anos depois, conquistaria a cobiçada Palma de Ouro no Festival de Cannes com O Pagador de Promessas. Mas é aqui que se encontra o melhor do cineasta.

06) Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos (1964), com Átila Iório, Maria Ribeiro. Adaptação do romance homônimo de Graciliano Ramos. Poucas vezes o cinema e a literatura puderam se dar as mãos em harmonia como nesta obra cinematográfica. O livro parece um indicativo das imagens em movimento pela sua linguagem seca, sem floreios. O diretor, precursor do Cinema Novo - Rio, quarenta graus, Rio Zona Norte, soube apreender as indicações da escritura romanesca, transformando-as em pura linguagem fílmica. Desde a fotografia sem filtros, que denuncia a aridez da paisagem e o sol dominador, passando pelas rigorosas interpretações de Átila Iório e Maria Ribeiro, até o clímax da morte cansada da cadela, tudo é luz e maravilhamento.

07) Noite Vazia, de Walter Hugo Khoury (1964), com Mário Benvenutti, Norma Bengell, Odete Lara, Gabrielle Tinti. Um autor original no panorama do cinema brasileiro que, muito criticado pelos cinemanovistas pelas influências de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, conseguiu, como poucos neste país, revelar-se um verdadeiro autor na expressão exata do vocábulo. Com um universo ficcional próprio e um estilo particularíssimo, com cada obra singular sendo uma variação de um mesmo tema - o macrofilme, que é toda a sua filmografia, Khoury enfrentou incólume as turbulências da crítica e hoje está estabelecido como um dos maiores cineastas brasileiros. Noite vazia investe na noite de São Paulo com seus personagens amargurados à procura de um significado para as suas existências desiludidas. Mas o que se faz notar no filme é uma emergência poética a cada instante, um domínio formal impressionante na condução da mise-en-scène. A seqüência da chuva na janela, em montagem paralela com as mulheres deitadas e o ovo que se estala no fogão, é uma das mais belas do cinema brasileiro.

08) Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira (1966), com Paulo José, Flávio Migliaccio, Leila Diniz, Ivan de Albuquerque, Irma Alvarez. Nenhum filme brasileiro revelou tão bem o espírito de uma época como este delicado poema à mulher amada de um realizador em sua primeira incursão no universo das imagens em movimento. Domingos se encontra em sua quintessência, dotado de um singular humor e uma capacidade intuitiva rara no estabelecimento de uma poética sobre o seu tempo.

09) A margem, de Ozualdo R. Candeias (1967), com Mário Benvenutti, Lucy Rangel, Valéria Vidal, Bentinho. A câmera do realizador, um dos principais nomes do cinema paulista, registra com uma insólita poesia a vida da gente humilde que habita as margens do Rio Tiête. Filme na cinematografia brasileira, que causou, e ainda causa, grande impacto diante de suas imagens plenas daquele tão necessário poder de verdade. Aqui se encontra visceralidade, conhecimento do que se está a retratar, intuição do sentido poético cinematográfico, um saber pensar cinematograficamente numa precária estrutura de produção.

10) Liliam M: Relatório Confidencial (1975), de Carlos Reichenbach, com Célia Olga, Benjamin Cattan, Sérgio Hingst, Maracy Mello, Edward Freund, José Júlio Spiewak, Numa época em que o predomínio era da chamada pornochachada, em meados da década de setenta, surge este filme intrigante na maneira pela qual o seu realizador trata o tema. Obra autoral, na qual a estrutura narrativa tem modulações várias, como se fosse um caleidoscópio burlesco. Crê-se que, neste filme, o seu diretor dá o ponto de partida para seus filmes mais maduros como Filme Demência, Alma Corsária, Anjos do Arrabalde, e o recente Bens confiscados.

HORS CONCURS
Limite, de Mário Peixoto (1930), com Olga Breno, Taciana Rei, Raul Schnoor. Clássico absoluto do cinema brasileiro. Um filme que não se compara mas se separa. Três pessoas viajam sem destino num barco e relembram o passado. Filme-mito, que provocou estesia e polêmica, realizado ainda na estética da arte muda por um jovem realizador que estreava, aqui, na direção cinematográfica e depois desse filme se trancou numa ilha para sempre. Obra essencial, visual, puro cinema, ou o cinema como música do olhar. Fotografia excepcional de Edgard Brazil.

14 abril 2006

Da visceralidade necessária


Há cineastas que detestam captar recursos, mas, neste caso, podem arranjar um gerente de produção para a tarefa. Este, no entanto, que seria o diretor de produção, não possui a força de vontade suficiente, pois o filme a se realizar não é dele. O diretor de produção gosta mesmo é de gerir recursos já captados. Edgar Navarro, por exemplo, ficou louco com a necessidade de ter de se inteirar das dificuldades na realização de seu Eu me lembro, ainda que não tivesse de captar recursos, pois seu filme se tornou possível por causa de um prêmio num concurso de roteiros e num aporte salvador do Minc. Há, por outro lado, cineastas que gostam de captar recursos ou, pelo menos, conhecem a economia de mercado, os trâmites para se arranjar e aplicar dinheiro. É o caso da empresa de Fernando Meirelles e seus sócios, que há mais de 20 anos está no mercado publicitário. Também o pessoal da Conspiração, Walter Salles, entre outros. Já Barretão, Cacá Diegues, et caterva, estavam acostumados com as burras da Viúva e, por isso, gritam tanto quando há alguma modificação na legislação que possa lhes causar cortes no patrocínio. Se vivo fosse, como estaria Glauber Rocha, que detestava qualquer tipo de burocracia?

Os realizadores, assim, para captar recursos necessários, moldam seus roteiros para agradar às empresas patrocinadoras, tirando, com isso, a dose de audácia. Alguns diretores, a exemplo de Andrucha Waddington, Walter Salles, entram pelo sertão sem nenhuma vivência da problemática retratada e acabam por embelezar a paisagem, o décor. Um Glauber, por exemplo, compreendia bem o que estava a retratar, fazendo filmes viscerais. Uma coisa que está fazendo falta ao cinema brasileiro atual é a visceralidade. E, neste visceralidade, entenda-se total liberdade de expressão. Rogério Sganzerla, por exemplo, um dos mais geniais cineastas da história do cinema brasileiro, realizou sua obra-prima, O bandido da luz vermelha, em 1968, com um resto de negativo de um outro filme. Não teve que passar uma imagem para ninguém. E suas imagens em movimento são viscerais, assim como as de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, A margem, de Ozualdo Candeias, À meia-noite levarei a sua alma (entre outros do mesmo autor), de José Mojica Marins, Lilian M, Alma corsária, de Carlos Reichenbach, Bang bang, de Andreia Tonacci, O viajante, de Paulo César Saraceni, Amarelo Manga, de Cláudio Assis, Contra todos, de Roberto Moreira, entre tantos outros que encheriam, se citados, o espaço deste quilométrico blog.
O cinema brasileiro está sendo assassinado pelos golpes de uma estética televisiva. Daniel Filho é, talvez, o seu maior algoz.


13 abril 2006

Da recente safra brasileira


Os filmes oriundos da equpe da Globo, a exemplo do campeão de bilheteria Se eu fosse você, de Daniel Filho, atentam contra o processo de criação cinematográfica, porque o que produzem é a imagem televisiva. Tem-se a sensação de que se está a assistir a algum especial da Vênus Platinada. Filmes certinhos e realizados com uma artesania mortuária que chamam a atençao do grande público pelo apelo de seus protagonistas, estrelas globais. Da safra mais recente do cinema nacional, são absolutamente fracas e anêmicas obras como O gatão de meia-idade, de Antônio Carlos Fontoura (que já realizou filmes curiosos como Copacabana me engana, A rainha diaba...), Irma Vap, o retorno, de Carla Camuratti (que, se teve algum acerto em Carlotta Joaquina, fez feio em Copacabana), Se eu fosse você, O casamento de Romeu e Julieta, de Bruno Barreto (ainda que este tenha, em sua filmografia, filmes decentes: Ato de amor, O romance de uma empregada, Bossa Nova, Além da paixão...), entre outros. Os filmes citados, porque produzidos em parceria com multinacionais, conseguem ser exibidos nas melhores salas, enquanto os exemplares mais significativos do cinema brasileiro ficam restritos às salas alternativas ou, mesmo, não conseguem sequer a inclusão no mercado. Os melhores filmes nacionais vistos recentemente são Bens confiscados, de Carlos Reichenbach, Crimes delicados, de Beto Brant, Serra da desordem, de Andreia Tonacci, Eu me lembro, de Edgard Navarro, Cinema, aspirina e urubus, de Marcelo Gomes, entre mais alguns outros - Veneno da madrugada, de Ruy Guerra, é chato e confuso. O cinema patrocinado pela iniciativa privada (com o governo a proporiconar que empresas descontem do imposto de renda significativa parcela que injeta em produções audiovisuais) se, por um lado, tem favorecido alguns cineastas, por outro, está liquidando os artistas mais viscerais, a exemplo de um José Mojica Marins, de um Ozualdo Candeias. E há aqueles que, entendidos da economia do mercado, sabem se adequar ao esquema neoliberal, enquanto outros, eternos dependentes do auxílio estatal, ficam a reclamar da necessidade da ajuda do estado.

10 abril 2006

Sergio Leone é um esteta



O DVD de ‘Era uma vez no Oeste’, de Sergio Leone, lançamento em edição especial, cheia de extras, é, simplesmente, uma beleza. O filme, com o passar do tempo – é de 1968, ficou ainda melhor, não perdendo em nada do seu impacto inicial, quando o vi pela primeira vez na gigantesca tela do cinema Tupy em cópia de 70mm. Ainda que a dimensão da tela doméstica não possua o mesmo poder de envolvimento e êxtase – sim, é a palavra correta em se tratando de uma obra-prima como essa, momento, sem exagero, de rara inspiração em toda a história da arte do filme, vejo ‘Era uma vez no Oeste’ como se fosse uma sinfonia, como se uma música de imagens. A partitura do maestro Ennio Morricone está tão entrosada no filme que faz parte dele, e, neste caso, poderia dizer que Morricone é uma espécie assim de co-autor da obra, da mesma maneira como Michel Legrand o é de ‘Os guarda-chuvas do amor’, de Jacques Demy. Morricone, com sua extraordinária musicalidade, funciona, aqui, em ‘Era uma vez no Oeste’, não apenas como uma complementação da narrativa, mas uma espécie de ‘mise-en-musique’. E Leone é um esteta, um mestre absoluto, que sintetiza, neste ‘western sui generis’, toda a sua primeira fase constituída de obras que ‘rascunham’ esta belíssima reflexão sobre a estética westerniana num prisma novo e insinuante, apátrida, singular e original. Quem viu ‘Por uns dólares a mais’, ‘Por um punhado de dólares’ e ‘O bom, o mau e o feio’ – também conhecido por ‘Três homens em conflito’ – pode testemunhar que estes filmes são uma ‘anunciação’ de ‘Era uma vez no Oeste’. A sua revisão comprova a magnificência de Sergio Leone que, nos anos 80, com seu canto de cisne, ‘Era uma vez na América’, traumatizou toda uma década, realizando uma das maiores obras de toda a história do cinema. Pena que a morte prematura – ia fazer 60 anos – o tenha levado embora.

Morricone compôs quatro temas fundamentais destinados a cada um dos personagens principais: Claudia Cardinale, Jason Robards, Charles Bronson e Henry Fonda – magnífico no papel de vilão, cínico, cruel, frio, super maquiado, super estilizado, capaz de matar até criancinhas com irrepreensível sangue frio. Quando os personagens se cruzam, as partituras também entram em rodízio com um resultado impressionante em se tratando da relação música e imagem. A seqüência inicial, de abertura, é uma obra-prima à parte, que mostra a espera, por três pistoleiros, em uma velha e encardida estação (há alguns anos, existia, no Boulevar que fica em Itaigara, em frente do shopping do mesmo nome, um bar cuja decoração, uma estação de trem, era baseada em ‘Era uma vez no Oeste’, por causa da admiração que o seu proprietário tinha por este filme), da chegada do trem. Morricone chegou a compor um tema, mas desistiu e, influenciado por John Cage – para quem todo ruído num concerto é música, fez dos ruídos uma espécie de ‘sinfonia’. Assim, o estalar dos dedos de um dos pistoleiros, a gota d’água que cai modorrenta no chapéu de Woody Strode, a mosca que fica zoando no rosto de Jack Élan, o ranger do moinho, a chegada estrepitosa do trem, etc, formam uma tensão inusitada.

Leone tem um sentido de duração que difere da maioria dos cineastas, aproximando-o mais, na utilização do tempo cinematográfico, dos realizadores japoneses. Gosta de alternar extremos ‘close ups’ com planos gerais de grande amplitude, provocando, com isso, um contraste nos códigos perceptivos. Mas, para Leone, o rosto humano não é uma face oculta, mas, e principalmente, também uma paisagem. Seus ‘closes’ demoram na tela, enchendo-a, para perscrutar a alma humana, para adentrar na interioridade dos seres. Tudo é muito estilizado e rigoroso, sem perder, contudo, o caráter de introspecção.

O argumento de ‘C’era una volta in West’/’Once upon a time in West’ foi escrito a seis mãos: as de Bernardo Bertolucci, o consagrado cineasta de ‘O último tango em Paris’, as de Dario Argento, diretor ‘cult’ de terroríficos e crítico afamado, e as de Sergio Donati, que ficou responsável pela decupagem, além, é claro, da participação de Leone em todas as fases do processo de criação cinematográfica.

O DVD é especial mesmo e tem muitos extras, inclusive um documentário precioso com depoimentos de Tonino Delli Colli, o fotógrafo, Alex Cox, Gabrielle Ferzetti, Bertolucci, Claudia Cardinale, Henry Fonda, entre outros. Para assistir de joelhos.


09 abril 2006

Sam Peckinpah, cineasta implacável



Thriller vigoroso, sem falsos moralismos (o crime, afinal, para o casal protagonista, compensou), Os implacáveis (The getaway, 1972), de Sam Peckinpah (1924/1984), incorpora, inclusive, procedimentos resnaisianos ao gênero (como nos lances de memória, que se poderia dizer flashes de memória, quando Steve McQueen, logo na apresentação, dentro da cela, pensa na mulher que deixou, Ali MacGraw), além da montagem procurar, ao mostrar o trabalho dos presidiários, uma associação não de continuidade, mas de significações através das ações humanas e dos objetos que adquirem, na composição peckinpahniana, um sentido que é acrescido à representação da imagem, como queria André Bazin. Há quase trinta e cinco anos de sua realização, The getaway se mostra uma obra ágil, vibrante, como se tivesse sido realizada nos dias atuais. Aliás, Peckinpah em Meu ódio será tua herança (The wild bunch, 1968) já preconizava um cinema de cortes rápidos em determinadas seqüências (como a do tiroteiro final avassalador e terminal), nunca, porém, como se faz hoje, com a abominável estética da tesourinha, quando a narrativa cinematográfica vira um papel picado não deixando ao olhar qualquer possibilidade de contemplação. The wild bunch é um filme que detona uma escrita que seria tomada como base pelos cineastas (como o uso da câmera lenta para enfatizar e robustecer a violência).

Em 1994, seguindo à risca o roteiro de Walter Hill (que viria a dirigir ótimos filmes de ação), Roger Donaldson realizou um remake de The getaway, que serve de exemplo, apesar de um filme fraquíssimo, como a mão de um grande diretor é que determina a excelência de um filme. O caso de Gus Van Sant no remake de Psicose é também exemplar, porque, mesmo contando com os préstimos do mesmo roteirista de Hitch, o resultado foi desastroso. O primeiro filme notável de Peckinpah, depois de realizados vários filmes de ação, está em Pistoleiro ao entardecer (Ride the high country, 1961), western outonal, crepuscular, que prenuncia a morte do gênero, com Joel McCrea e Randolph Scott como dois velhos pistoleiros que já sentem sinais do tempo, mas, assim mesmo, insistem na permanência como cowboys. Obra melancólia, de rara beleza, que também pode ser comparada a O homem que matou o facínora, do grande John Ford, também um western do crepúsculo.

McQueen, um tipo admirável, raro se se pensar no cinema contemporâneo tão cheio de adamascados, teve um affair impeduoso e implacável com Ali MacGraw, que, na época, era esposa do presidente da Paramount. Na cena em que ele bate nela, encostados num carro numa estrada, Peckinpah o orientou no sentido de socá-la com vontade