Seguidores
01 maio 2014
30 abril 2014
Um curso de cinema com Walter da Silveira
27 abril 2014
Psicologia da recepção
Com o advento das novas tecnologias, dos novos
suportes, a recepção das imagens em movimento tomou novos contornos. Se, há
poucas décadas, elas apenas podiam ser contempladas dentro das salas escuras
dos cinemas, e mediante o pagamento de ingressos, atualmente as imagens em
movimento fazem parte do cotidiano do homem, e não seria exagero afirmar que
ele nasce a vê-las através da televisão sempre ligada no hospital onde é dado à
luz.
As imagens, portanto, estão
em todos os lugares - em casa, na televisão, nos shoppings, nos anúncios em
movimento - e a sala exibidora, que era dona da exclusividade delas, é mais
um local onde são apresentadas.
Para ficar apenas no cinema, este tinha, em anos
passados, uma total exclusividade. E a recepção das imagens em movimento
causava, naquele que as via pela primeira vez, certo assombro, certa
estupefação. É célebre um texto do escritor russo Gorki quando relata a sua
primeira impressão ao entrar para ver um filme. Por causa da planificação, dos
cortes, e neófito neste tipo de recepção, conta que o que viu foram pessoas
despedaçadas, cabeças, pernas estraçalhadas, enfim, uma sucessão de fragmentos
das partes do corpo humano e das coisas. O que era apenas um filme romântico se
tornou, para ele, uma manifestação de terror.
Nunca me esqueço da primeira
vez que fui ao cinema. As imagens também se me afiguraram deformadas até que
consegui focá-las adequadamente na sua dimensão espacial.
Iniciada a minha trajetória de cinéfilo nos anos 50,
em Salvador, onde moro até hoje, naquela época não havia sequer televisão.
Imagens em movimento somente podiam ser vistas dentro das salas exibidoras. Se
a Tv no Brasil surgiu em 1950, graças aos esforços de Assis Chateaubriand, na
Bahia ela foi somente instalada em novembro de 1960, uma década depois,
portanto.
Poucas os soteropolitanos
que compraram o caro aparelho, privilégio de uma classe média mais alta. Mas as
imagens eram ruins e sempre havia defeitos, como o ajuste do horizontal e
vertical, que era de difícil colocação. Não existia videotaipe e os
programas, a exceção de desenhos animados e seriados, eram todos produzidos na
região. O que de certa forma era importante para o incentivo dos profissionais
da área, mas os baianos ficavam sem ver os grandes programas televisivos do
eixo Rio-São Paulo, que fizeram história.
Aqueles que se formaram
cinematograficamente antes do advento do VHS e do DVD, ao tomar conhecimento
destes, o espanto se deu pela possibilidade de se ter em casa os seus filmes
preferidos, mas o assombro já tinha se manifestado quando do conhecimento do
espetáculo cinematográfico. Mas a nova geração que nasceu, com o VHS e o DVD,
não foi assombrada, por assim dizer, pelas imagens em movimento. Não teve
a oportunidade de sentir a magia do cinema nem se assombrar com este, nem se
assombrar na sua primeira vez dentro da sala escura.
Se, naquela época, muitos se
assombraram, os filmes também permaneciam nos cinéfilos por vários meses.
Alguns deles chegaram a viver de determinados filmes, a exemplo do
crítico carioca Paulo Perdigão, que, força de expressão, passou a vida a ver Os
brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens, chegando, inclusive, a
ir aos Estados Unidos para entrevistar o grande diretor e trazer, na bagagem, um
punhado da terra onde se deram as locações da citada obra, um western
realmente inesquecível.
Isto quer dizer que o
impacto da obra cinematográfica era imenso. E o espetáculo cinematográfico
tinha duas características essenciais: ser fugidio e não se poder, nele,
intervir na sua temporalidade. Fugidio porque um filme era lançado e levava
apenas uma semana em cartaz, excetuando-se os de sucesso que dobravam e num
período de cinco anos (prazo de validade do certificado de censura) eram
reprisados. A grande maioria dos filmes, no entanto, ficava uma semana e se,
por acaso, o cinéfilo estivesse doente ou viajando podia perdê-lo para sempre.
Há obras importantes que, estreadas em Salvador, por estar doente (gripe,
sarampo, catapora, coqueluche as doenças clássicas da época), ou em viagem,
perdi-as para sempre, reencontrando agora, algumas, em DVD.
Esta característica do filme
ser fugidio é importante. Na maioria das vezes, os filmes lançados em cinema de
primeira linha, saiam destes e circulavam pelos poeiras (salas de
segunda categoria) e, depois, pelos cinemas de bairro para fazer carreira no
interior até que as cópias se desgastassem nesse interregno de cinco anos.
Aconteceu de ter perdido o relançamento de Rastros de ódio (The seachers),
de John Ford, e vim a saber que estava em cartaz em Jequié. Tomei um
ônibus em direção a esta cidade baiana e consegui vê-lo na última sessão. De
volta à rodoviária, por causa de um atraso na projeção (geralmente os filmes
partiam, as luzes se acendiam), perdi o ônibus e tive que dormir num banco da
rodoviária. Mas estava feliz: tinha visto Rastros de ódio.
Impossível acontecer fato
semelhante nos dias atuais. E a impossibilidade de se intervir no tempo é outra
característica do cinema de antigamente. O espectador, sentado na poltrona, era
um escravo do tempo cinematográfico. Intervir no tempo somente seria
possível se ele fosse à cabine de projeção e ameaçasse, com uma arma, o
operador para parar a exibição.
Atualmente as coisas
mudaram. Grandes filmes da história do cinema podem ser adquiridos para se ter em casa. E há a possibilidade
de baixar qualquer filme pela internet. Os preços dos DVDs são acessíveis a
qualquer um, principalmente nos magazines espalhados pelos shoppings, onde se
pode comprar discos a 9,90. Os cinéfilos têm seus filmes preferidos nas
prateleiras de seus lares. O caráter fugidio desapareceu e a interferência no
tempo é total. Se, antes, o espectador era um Escravo da projeção, hoje ele é
Senhor do que está a ver.
21 abril 2014
A cinefilia, o vento já a levou
André Bazin: o maior crítico de todos os tempos
Para
os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito
surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em
meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando
rápido – ó, tempo, suspende o teu vôo! -, o advento do VHS foi uma surpresa, e
a do DVD, com tantos dreyers e bergmans, minnellis e langs, hawks efellinis,
espalhados por aí, quase um assombro.
Alguém
já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto,
outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram
possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para
isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em
termos de imagem.
Assim,
havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a
inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade.
Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil
lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico,
inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na
Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata
que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de
óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a olho nu.
Se
um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando,
retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes
sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a
impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se
desenrolava na tela – ou no écran, como se dizia então, e ninguém
podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção
e, revólver em punho, ameaçasse o operador.
Mas
a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o
surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica.
Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no
entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O
indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se
tornaram vulgares no sentido de corriqueiras.
Quando
me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia
ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que
então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São
Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando
comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de
sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse
para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar).
E
atualmente ir ao cinema é entrar num festim diabólico onde reinam as pipocas,
as conversinhas fora de hora, os celulares que, atendidos, infernizam o
espectador que queira contemplar o filme. O público de cinema, no Brasil, pelo
menos, se tornou uma espécie de patuléia desvairada. Repito sempre que o ir
ao cinema hoje é uma das fases do shoppear. Não se vai
mais ao cinema, esta a verdade, mas aos shoppings. Até mesmo nas salas ditas
alternativas o público se comporta com apatia e as pessoas gostam mais de
aparecer, porque, na sua grande maioria, pseudo-cinéfilos, pseudo-intelectuais.
Mas vou contar uma história.
Corria
o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal
da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B.
Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser
exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde.
Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura,
alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di
biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de
oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu
itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos,
esperando o horário, com certa expectativa, aliás, que não tenho mais para
quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí,
um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil
pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu,
resolvi ir andando do Flamengo, onde fica este, até Laranjeiras, onde estava
hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de
pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette.
Atualmente, tenho-o em VHS e DVD, que fica guardado, parado.
Não
seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por
exemplo, que ia sempre a Paris para se meter na Cinematheque Française e
ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater em
sua casa e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.
A
cinefilia, como se praticava antigamente, está morta, e bem enterrada
20 abril 2014
Da narrativa cinematográfica
A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.
Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.
Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.
Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.
Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.
Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais,Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.
Narrativa fragmentária. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.
Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois (12). Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. EmApocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.
17 abril 2014
A pulverização do cinema
Apesar
de já ter me referido, aqui, diversas vezes, não custa nada repetir que a
estética do videoclip incorporada à narrativa cinematográfica contemporânea,
principalmente aos produtos oriundos da indústria cultural de Hollywood,
destrói o prazer de ver um filme pela impossibilidade de contemplá-lo
devidamente. Para acompanhar a "velocidade" das mentes internéticas,
a indústria descobriu que a melhor fórmula de envolver o espectador que não
pensa e é apático é aquela baseada nos cortes incessantes e nas tomadas bem
rápidas.
Até
mesmo filmes razoáveis e bons estão estruturados nesta estética, que já foi denominada de estética da
tesourinha. Poucos os realizadores que possuem o conceito de
duração das tomadas com a exatidão e o ritmo desejados pelo grande cinema. Para
ficar num exemplo: Stanley Kubrick possuía um sentido exato da durée do plano. O conceito bem aplicado faz com que o espectador se
envolva no espetáculo, a se tornar, dele, cúmplice. O que não é possível no
cinema "montanha-russa" dos tempos atuais.
O
público adolescente e aborrecente, que é o alvo da indústria, não
pensa, não contempla, e faz da ida ao cinema uma das fases do shoppear. O filme é o que menos conta para a platéia de
adolescentes que lotam as salas dos complexos aos sábados. Os espectadores
atendem aos celulares e conversam o tempo todo, riem fora de hora, põem os pés
(as patas) nas cadeiras dianteiras, quando não infernizam quem está na frente
com "toques" infernais, e há, atualmente, uma tendência a se falar
constantemente não somente ao telefone (que virou uma praga) como também com o
amigo(a) ao lado. Sem falar, é claro, na comilança desenfreada (bacias e não
mais saquinhos de pipocas, cheerburgueres, guloseimas gerais).
A
conclusão a que se pode chegar é que o filme "montanha-russa" é
reflexo da mentalidade da platéia, pois a indústria somente se interessa pelo
lucro e, portanto, oferece apenas o que público solicita. E as pessoas que vão
hoje ao cinema não se interessam em espetáculos engenhosos e inteligentes.
Basta que possuam ação, tensão, efeitos especiais mirabolantes. A ausência do
humanismo nos filmes contemporâneos é flagrante. Os personagens não possuem
aquele tão necessário poder de verdade, de convencimento, mas são apenas e
somente marionetes condutoras da ação proposta, títeres robóticos de um cinema
sem alma.
Por
outro lado, nesta crise da cultura contemporânea, há a tendência de se diluir
autores importantes e viscerais, a exemplo do genial Nelson Rodrigues. Como bem
observou a ensaísta de cinema Andrea Ormond em seu blog Estranho
encontro, ao fazer uma análise das adaptações cinematográficas do grande
dramaturgo, a tendência de diluir é uma constante nestes tempos contemporâneos
numa espécie assim de imitação da arte.
A
onda politicamente correta que assola e destrói a liberdade e a criatividade é
outro fator que ajuda muito a crise cultural. Havia uma atitude visceral que
agora se edulcora. Não existem mais autores de visceralidade sedutora como Pier
Paolo Pasolini (principalmente no escatológico "Saló", seu canto de
cisne), Marco Ferreri ("A comilança"), entre muitos outros que
vingaram no pretérito. Uma tendência dessa diluição crítica pode ser encontrada
como exemplo em "Beleza americana", de Sam Mendes, uma visão
aparentemente crítica, porém dentro de uma vontade de edulcorar que sufoca o
que se pretende ser visceral.
Apesar
da salgalhada desse artigo, há elos comunicantes entre os assuntos abordados,
que refletem bem o fundo do poço a que se chegou no que teimam em chamar
pretensiosamente de contemporaneidade: o comportamento selvagem da platéia das
salas exibidoras, a apatia diante da arte, a ausência de humanismo nos filmes e
na vida, a diluição de temáticas fortes e de autores viscerais em função de uma
apreciação dentro de moldes à la "delicatessen", a transformação do
"transitar na urbis" em shoppings centers com seus imensos fasts
foods.
E
as assim chamadas “salas de arte” não se encontram livres da agitação. Aqueles
que as freqüentam fazem-no mais por festividade, para aparecer, do que,
propriamente, pelo amor ao cinema. A diluição, a falta de base referencial, a
completa ausência da cultura literária, e a proliferação dos “monossílabos” nos
sites da internet, bem que são sintomáticos de ma crise cultural sem
precedentes. O paradoxal em tudo isso se encontra na possibilidade
extraordinária de se obter informações como nunca se viu antes no “quartel de
Abrantes”.
O
que reina é o império do audiovisual. A facilitação da expressão através das
imagens em movimento se, por um lado, democratizou o acesso às câmeras
digitais, por outro, determinou uma enxurrada de inexpressividades, como se
pode observar nas dezenas de eventos que acolhem os pequenos filmes realizados
pelo digital. Antes, o acesso à expressão cinematográfica era muito difícil.
Havia a bitola 16mm, mas os custos, altos, não permitiam que qualquer um
pudesse manipular a câmera, que exigia um mínimo de conhecimento técnico.
Filma-se
hoje como antigamente se fazia poesias. Se, antes, as pessoas, que queriam se
expressar, faziam-no pelos versos, e, quando publicados em suplementos
literários ou revistas, sentiam-se revigorados, atualmente é o filme o móvel
expressivo da nova geração. Bom que assim seja, mas o tempo, sempre implacável,
se encarregará de reter o que presta e devolver, à lixeira do esquecimento, as
tolices feitas.
16 abril 2014
Robert Mulligan: evocação e sentimento
![]() |
| O preço de um prazer (1963), de Robert Mulligan: a sensibilidade e o apuro no trato de questões intimistas |
A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.
Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.
A lembrança que se tem de
O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de
adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem
(Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades
diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O’Brien,
Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma
sophisticated comedyque causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se,
vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock
Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana
sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que
descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se
apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram
compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do
filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu
compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.
Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehiclepara Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.
O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.
Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.
Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.
O touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue:À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.
Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.
Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.
Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.
E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.
Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.
Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.
“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."
13 abril 2014
"Sol sobre a lama", de Palma Neto/Alex Viany
João Palma Neto, antigo feirante da Água de
Meninos, sindicalista, marinheiro de longo curso, quando vê A grande feira (1961), de
Roberto Pires, não gosta da maneira pela qual o filme aborda a questão da
gigantesca feira e decide bancar um outro filme como resposta ou réplica. Com o
dinheiro de sua poupança (naquela época não há a famigerada captação de
recursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queiroz para a produção de Sol sobre a lama. Com eles, funda a Guapira Filmes (Schindller se associa
a Iglú, empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia na Tela, para poder realizar os filmes da Escola Baiana de Cinema e há o
surgimento, nesta época, de outras empresas - mas assunto para outro tópico).
Corre o ano de 1962 e a idéia de Palma é que a fita seja colorida, e com
recursos mais sofisticados. Escreve a história, baseada em suas experiências
(diz-se que o personagem Valente, interpretado por Geraldo D’El Rey é ele
próprio), e confia o roteiro ao carioca Alinor Azevedo (que tem a assinatura
nos roteiros de alguns excelentes filmes como Assalto ao trem pagador, e Cidade ameaçada, ambos de
Roberto Farias, Um ramo para Luísa,
de J.B.Tanko, entre outros.) Alinor faz o screenplay
de Sol sobre a lama
com outro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinema brasileiro perde,
pois morre num desastre automobilístico. Ambicioso, pretensioso, João Palma
Neto quer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água de Meninos (que, como
numa premonição, é incendiada, um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, e
seus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim, acanhada, a princípio,
embora hoje imensa.). Não vê, Palma Neto, nenhum diretor em Salvador capaz de
desenvolver as imagens em movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinor e
Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está a lançar Tocaia no asfalto, e Glauber
Rocha está já no Rio, a lançar o Cinema Novo e a preparar a produção de Deus e o diabo na terra do sol.
Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiroem Hollywood. De volta
ao Brasil, adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmes e a
escrever nas páginas dos jornais. Um crítico, inclusive, chega a taxá-lo de
"inimigo número 1 do cinema made
in Hollywood", apesar de, nesta meca, ter permanecido por
muito tempo a gozar de suas delícias.
A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neorrealismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.
Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.
O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.
Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”
A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheiro e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguinha e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.
Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiro
A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neorrealismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.
Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.
O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.
Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”
A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheiro e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguinha e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.
09 abril 2014
"Nasce uma estrela" reinventa o CinemaScope
A Warner lançou no
mercado um DVD duplo - já há algum tempo e parece que está esgotado - contendo a versão restaurada de Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), de George Cukor, com
interpretações inexcedíveis de Judy Garland e James Mason. Quando do lançamento
do filme nos anos 50, a
Warner, por achar excessivo um musical com três horas de duração, cortou 27
minutos, desfigurando, com isso, esta obra-prima. Há pouco mais de dez anos, um
abnegado pesquisador do American Film
Institut pediu ajuda à Academia de Artes e Ciências de Hollywood a fim de que
esta solicitasse à Warner uma permissão para que o pesquisador desse uma busca
nos depósitos da companhia. Atendido ao pedido, este começou a procurar e
acabou por encontrar os 27 minutos cortados. Estragados, precisou restaurá-los,
ficando três minutos apenas em fotos fixas pela impossibilidade de revivê-los
no celulóide. Esse DVD duplo, portanto. é uma preciosidade, pois o resgate de
um filme extraordinário, que assinala a maior interpretação de Judy Garland no
cinema. Ela, na época, estava profundamente depressiva - sempre dependendo de
álcool e barbitúricos e, para conseguir trabalhar no filme, fez um esforço
enorme para se livrar das drogas. Tem um desempenho maravilhoso como Vicky
Lester, a cantora que, descoberta por Norman Mailer (James Mason, soberbo),
ator famoso de Hollywwod, e que se apaixona por ela, ascende ao estrelato
enquanto Mailer, derrotado pelo alcoolismo, vê a sua decadência. Enquanto ela
sobe, ele cai. É a segunda versão - e a melhor - dessa história - a primeira,
dos anos 30, foi feita por William Wellman, com qualidades inegáveis já que
este diretor era um especialista, mas a terceira, de Frank Pierson, com Barbra
Streisand, de 1975, é um lixo.
O cinemascope, que a
Fox introduzira em 1953 em
O Manto Sagrado (The Robe), mas que já havia sido
inventado pelo francês Henri Chrétien há algumas décadas, não tinha ainda sido
utilizado com um propósito estético e linguístico determinado até que Cukor
fizesse Nasce uma Estrela. O cineasta
revolucionou o cinemascope e mostrou uma utilização extraordinária de sua
amplitude retangular em função do tecido dramatúrgico. O que pode ser
verificado no número no qual Garland conta a sua trajetória - um dos maiores e
melhores da história do cinema, que dura 18 minutos e foi, na versão anterior,
cortado pela Warner, mas que na cópia do DVD está completamente restaurado. É
preciso, porém, que a versão do DVD contemple toda a extensão da tela anamórfica,
ou, então, seja formatado. Tudo em
A Star is Born é uma promoção do encantamento,
da beleza, apesar do tom trágico do final. É um filme sobre a mise-en-scène e, também, sobre o drama
do alcoolismo, que se estende, aqui, para o drama da própria condição humana.
Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistosem vídeo. Já obras que
exploram grandes espaços, têm muitos planos gerais e de conjunto são
prejudicadas na fita magnética. E existe o problema do filme originariamente
filmado em
cinemascope. Como sentir 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, na pequenez do
aparelho doméstico? É simplesmente impossível. Neste caso, tem-se, apenas, uma
idéia do filme.
Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistos
Se não fosse pelo
aparelho de DVD, o cinema do pretérito somente poderia ser visto em cinematecas. E como
aqui na Bahia não existem estas, o baiano ficaria a ver navios. Se, por um
lado, a visão de um filme em digital não se pode comparar à sua contemplação na
sala escura de um cinema, por outro, o cinéfilo tem a oportunidade de ver
em DVD - em alguns casos - quase toda a
obra de um realizador importante, de estudá-la, de repetir as cenas, as
seqüências, etc. Há, no mercado, quase três dezenas de fitas de Alfred
Hitchcock. A nova geração, sem o advento do vídeo, estaria condenada a
desconhecer grandes e imprescindíveis clássicos do cinema. Além do DVD, uma
perspectiva se abre com as televisões a cabo e por assinatura que possuem
canais especializados em filmes bons e importantes, funcionando como
verdadeiras cinematecas. Já passou o tempo em que se faziam sacrifícios
memoráveis para se ver um filme por acaso perdido no circuito.
06 abril 2014
O lobo de Wall Street
The Wolf of Wall Street
Comentário crítico do Professor Jorge Moreira sobre o último filme de Scorsese.
Atualmente,
me parece que existem poucas dúvidas que o cineasta Martin Scorcese é um dos
grandes conhecedores do universo cinematográfico estadounidense, isto é, de um conjunto de elementos, instrumentos, e técnicas que são fundamentais para a produção
e realização fílmica nos EUA. Desde esta perspectiva, o filme The Wolf of Wall Street, é mais uma prova da grande capacidade e habilidade de Scorcese para dirigir filmes de
sucesso dentro da grandiosa escala ampliada de produção da industria cultural e
do entretenimento do capitalismo estadunidense.
Um dos
âmbitos onde se pode observar essas qualidades
está na elaboração dos elementos da forma fílmica do filme The Wolf of Wall Street. Como ilustração
desta capacidade podemos mostrar dois elementos da forma fílmica que são
sabiamente explorados por Scorcese neste filme: 1) o uso destacado do comentário
voice-over do protagonista Jordan
Belford (algumas vezes Jordan até aborda
a própria câmera de cinema narrando diretamente suas façanhas na
construção de uma companhia de investimento corrupta e voraz) funciona
eloquentemente para destacar o abuso de poder (sem limites) e a arrogância
(extrema) do capitalista Belford que o personagem representa; 2) o ritmo
frenético do filme trata de duplicar a estonteante velocidade da circulação
do dinheiro e do capital via especulações e apropriações indevidas, dentro do
mercado de capitais e do sector financeiro dos EUA.
A
história do protagonista Belford (adaptada do livro autobiográfico de Jordan
Belford) evoca a forma da novela picaresca espanhola, um género literário
da maior importância na história da literatura ocidental, pois tem funcionado
para expressar, entre muitas outras coisas, a luta de indivíduos das classes
subalternas para medrar nas sociedades
divididas hierarquicamente em diferentes classes sociais.
O filme contem um conjunto de características
que pode-se associar ao género comédia
grotesca, do qual procura obter a
risada superficial e fácil de espectador
pouco exigente. Mas se analisarmos o filme de Scorcese desde a
perspectiva de uma ideologia contra
hegemónica, muito dessa alegria de primeira impressão se desmancharia
porque, entre outras coisas, também é
possível observar que o filme de Scorcese celebra, gratuitamente, a
honestidade duvidosa e muito questionada
pela sociedade, do U.S. Federal Bureau
of Investigation (FBI).
Fundada e
dirigida pelo poderoso Edgard Hoover (considerado hoje como um dos mais
corruptos ex-funcionários dos EUA), a representação do FBI como o espaço do
exercício da eficiência, da honradez, da honestidade e da justiça é
simplesmente ridícula. Para os que estão
bem informados sobre a história das instituições ligadas à Secretaria de Justiça
dos EUA, nada poderia provocar (contra a
apologia de Scorcese) mais risadas. Sem ir muito longe, poderíamos perguntar a
Scorcese, quais são (foram) os
resultados das investigações do FBI
sobre os escandalosos assassinatos de John F. Kennedy, do seu irmão
Robert Kennedy, de Martin Luther King Jr., de Malcom X, por exemplo.
Mas o objetivo de Scorcese de criar um estilo e
tonalidade de comédia grotesca no filme é parcialmente frustrado, na minha
opinião, pelas cenas de violência explicita cometidas por Jordan Bedford e
associados contra os subalternos: 1) contra o empregado homossexual que é
acusado de roubar 20.000 dólares da casa do patrão; 2) contra a segunda esposa
de Belford, quando este trata de raptar a filha para tirar vantagens do jogo destrutivo de poder entre ele e a
esposa no negócio (business) do divórcio
entre eles. No geral, o filme
mostra, direta ou indiretamente, a crueldade e a violência psicológica dos
dominadores contra todos os subalternos.
Mesmo que
Scorcese trate de amortizar a violência do protagonista contra a mulher e o homossexual (coisa difícil para um
diretor viciado em ganhar muito dinheiro com a frequente exibição da violência
dos seus filmes), o espectador ainda poderá deduzir que o uso da violência
explicita pelo protagonista contra estes dois tipos de subalternos, não pode
ter sido um fato ocasional ou casual. Muito pelo contrário, o espectador poderá
deduzir que a violência implícita e explícita do personagem é uma das vias
“normais” para a acumulação e concentração do capital pelo capitalista estadounidense,
ou seja, é uma das vias preferidas para
centralizar a riqueza humana nas
mãos dessa minoria exploradora e absolutamente inescrupulosa.
Se
comparo o filme The Wolf of Wall Street
com o documentário Inside Job,
poderia afirmar que depois de assistir Inside
Job e constatar (mesmo reconhecendo limitações ideológicas deste documentário)
o papel obsceno e destrutivo das
autoridades do governo e dos representantes do capital financeiro nos
EUA, eu não teria a menor necessidade de
assistir The Wolf of Wall Street, pois o filme de Martin Scorcese não
acrescenta ou ensina nada de significativo sobre o tema da apropriação indevida
do dinheiro dos investidores pelos lobos de Wall Street.
Assim, o
filme The Wolf of Wall Street poderia
ser identificado como mais uma narrativa de Scorcese para monumentalizar um
bando de indivíduos sociopatas, psicopatas, mafiosos e criminosos que tem
assegurado a riqueza, o sucesso e a glória
pela utilização da voracidade e violência animalesca do dominador, do egoísmo
sem limite do explorador e do individualismo feroz do opressor. Mas o filme de
Scorcese também poderia ser identificado
como mais uma impotente narrativa
incapacitada para denunciar o sistema capitalista, como o maior responsável
pela produção destes monstros funcionais na reprodução da nossa atual
sociedade. E uma das evidèncias dessa impotência do filme é a sua incapacidade
de apresentar sequências de cenas (nem
sequer uma sequència em todo o filme) mostrando o resultado destrutivo das
ações de tipos como Jordan sobre as vítimas deste sistema baseado nesta
gigantesca apropriação fraudulenta. Assim, o filme, fica reduzido a exibir
exclusivamente um dos polos da luta social, escondendo, anti-dialeticamente, a situação
do polo oprimido da luta de classes dentro do capitalismo.
O
poder político de indivíduos como Jordan Belford e o poder de sua psicologia
individualista sobre a sociedade somente poderiam ser denunciados se o filme também
mostrasse o ponto de vista das vítimas dessas operações ilegais que são
premiadas pelo capitalismo. Assim, o filme de Scorcese é incapaz não somente de mostrar o ponto de vista das vítimas que foram prejudicadas diretamente
pela ações de Jordan Belford e seus associados como também é incapaz de mostrar
o gigantesco prejuízo que eles causam direta e indiretamente a milhões e
milhões de trabalhadores desempregados, explorados e oprimidos pelo sistema
capitalista nos EUA.
Em sínteses,
me parece necesseario afirmar que acabo cansado e aborrecido de assistir a esse
tipo de filmes. Eles apresentam e narram o sucesso de indivíduos inescrupulosos
(verdadeiras excrescências sociais) mas não se preocupam em denunciar o tipo de
sistema económico-social que produzem e promovem estes tipos de excrescências a
mais alta posição hierárquica dentro da sociedade capitalista. Em poucas
palavras, o filme The Wolf of Wall Street
apresenta a psicologia individual como base explicativa para a absurda atuação
desses indivíduos na sociedade, mas é incapaz de apresentar os fatores sociais,
econômicos e políticos que explicariam porque estes personagens são produtos bem sucedidos do sistema
capitalista.
Assim a
ausência, no filme de Scorcese, de cenas mostrando o funcionamento de um
sistema social fundado na propriedade privada dos meios de produção e de vida (cujo
objetivo e móvel fundamental é produzir lucros, juros, dinheiro e riqueza para
esta classe de proprietários) impede que o espectador compreenda que é devido a
lógica do sistema capitalista que determina e demanda a existência e
funcionamento bem sucedido desta classe de indivíduos nos EUA. Somente através
da falta de denuncia do sistema socioeconómico capitalista (fundado na divisão
de classes sociais e na exploração, opressão e exclusão da maioria dos seres
humanos da riqueza social), tipos inumanos como Jordan Belford (o protagonista
de filme) podem também ser bem sucedidos e glorificados num filme como The Wolf of Wall Street.
Assinar:
Comentários (Atom)









