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01 maio 2014

Entrevista com o blogueiro no Dia do Trabalho

O gerente deste blog no dolce far niente

Entrevista realizada comigo pela crítica paulista Teeh Schwarz há alguns aos atrás. As cervejas foram pagas por ela.
1) Qual foi o motivo do interesse pelo cinema? Como se deu esse envolvimento?

André Setaro - Comecei a me envolver com o cinema desde que comecei a frequentá-lo lá pelos meados do século passado. A primeira vez que entrei numa sala de exibição tinha 6 anos de idade. Naquela época, década de 50, menino de calças curtas (era o tempo das calças curtas para garotos) via muito filmes americanos e chanchadas brasileiras, melodramas mexicanos, além, claro, de desenhos animados tipo Tom & Jerry. Minha formação cinematográfica inicial se dá, portanto, com o cinema de gênero made in Hollywood (os musicais inesquecíveis da Metro, os thrillers, os filmes de guerra, os épicos históricos, e, principalmente, o western, que, na definição do grande crítico francês André Bazin, é o cinema americano por excelência). O cinema brasileiro, com raras e honrosas exceções, produzia quase que somente chanchadas. Com o passar do tempo, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, programado por um grande ensaísta da arte cinematográfica, Walter da Silveira. Foi ele quem, no seu clube, mostrou aos baianos os filmes do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, do realismo poético francês, da escola soviética (Eisenstein, Pudovkhin…), o cinema japonês etc. Tinha por volta de 15 anos quando percebi que o cinema, sobre ser um entretenimento, um espetáculo, era também uma expressão de arte. Fiquei impressionado com A aventura (1959), de Michelangelo Antonioni,La dolce vita, de Federico Fellini, Os 7 samurais, de Akira Kurosawa, O encouraçado Potemkin, de Eisenstein etc. Era já um adolescente cinéfilo antes de penetrar na juventude e, mais tarde, na chamada idade da razão. Há, segundo o filósofo Jean-Paul Sartre, a idade da ilusão e a idade da razão. O rito de passagem de uma a outra é problemática e varia de pessoa a pessoa. Vale ressaltar que me tornei um amante de cinema por meio autodidata. Via os filmes com interesse (os mais importantes mais de uma vez) e lia bibliografia especializada e críticas dos grandes suplementos, principalmente os do eixo Rio-São Paulo. Nasci no Rio, em 1950 (já estou me sentindo velho), mas, desde tenra idade, vim morar em Salvador, ainda que todo ano fosse passar, nas férias, um mês na Cidade Maravilhosa. Anotava, num caderno, todos os filmes que via, ficha técnica completa, cinema onde foi visto o filme, e fazia ligeiros comentários.
Meu envolvimento com o cinema se deu por uma afinidade eletiva, por uma relação de assombro e admiração ou, se se quiser, por um ato de amor à arte cinematográfica. Findo o hoje chamado segundo grau, fiz vestibular para a Faculdade de Direito, onde me formei em 1974, tornando-me um advogado sem futuro. Mas, na faculdade, fiquei responsável pela programação do seu cineclube e redigia comentários sobre os filmes exibidos que eram distribuídos na porta de entrada. Em 1974, comecei a publicar textos sobre cinema no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia e, meses depois, fui convidado para escrever uma coluna diária que se alastrou por 20 anos até que, em 1994, passei a escrever a coluna apenas uma vez por semana. Meu envolvimento com o cinema se dá, assim, pela crítica. Mas, preguiçoso, achava que fazer um filme dava muito trabalho e, naquele tempo, não havia a facilidade do digital. Era tudo muito difícil. Mas, mesmo assim, para aprender alguma coisa, trabalhei como assistente de direção de alguns filmes baianos (Voo interrompido, 1968, de José Umberto, filme underground, do chamado Cinema Marginal), fui ator em O cisne também morre (1982), de Tuna Espinheira e realizei um Super 8 cujo título, esdrúxulo, é Pizzaria Eisenstein (1984).
Frustrado com a experiência como advogado, fui fazer Comunicação (Jornalismo) e, depois, Mestrado em Artes Visuais, cuja dissertação versou sobre cinema: Narrativa e fábula no discurso cinematográfico. Em 1979, entrei para ser professor da área de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde ensino até hoje disciplinas da área como Oficina em Comunicação Audiovisual, Linguagem Cinematográfica, etc. Publiquei Panorama do Cinema Baiano, em 1976, e Alexandre Robatto Filho, um pioneiro do cinema baiano, em 1992, ambos editados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Estou, no prelo, com três livros, que fazem parte de Escritos sobre cinema.
De nada adiantam cursos de cinema se a pessoa não se interessar. Os cursos ajudam e podem ser proveitosos desde que o indivíduo se interesse pela coisa. O que se aplica, aliás, às demais atividades. É importante que se conheça os chamados filmes essenciais, os filmes-faróis da história do cinema, os filmes divisores de água, que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, a exemplo de O encouraçado Potemkin(1925), de Eisenstein, Ladrões de bicicleta (1948), de Vittorio De Sica (para se ter uma idéia da importância do neorrealismo italiano), Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, Oito e meio (1963), de Federico Fellini, a trilogia de Michelangelo Antonioni (A aventura, A noite, O eclipse), Aurora (1927), de Murnau, La passion de Jeanne D’arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, Acossado e O desprezo, ambos de Jean-Luc Godard, entre muitos outros. A citação se faz aqui apressada e de memória.

2) Desde o inicio já pretendia atuar profissionalmente na área? Afinal, muita gente acha isso pouco viável, excentricidade. Inclusive, ainda, atualmente.

André Setaro - Se atualmente o cinema é estudado nas universidades de todo o mundo, antes, porém, a coisa era diferente. O cinema era considerado apenas um entretenimento, um divertissement, um passatempo para os momentos de ócio. Com os estudos efetuados a partir da segunda metade do século passado, principalmente por sociólogos e comunicólogos, verificou-se que o cinema invadiu o imaginário coletivo das pessoas e, por isso, era preciso ser estudado. O cinema mudou hábitos, comportamentos, influenciou o way of life. Assim, quando comecei a escrever diariamente sobre a chamada sétima arte, a ganhar alguma coisa com isso, ainda nos anos 70, e principalmente numa velha província como Salvador, certo dia mostrei a uma tia carrancuda minha coluna impressa no jornal e ela me respondeu: “Você não tem nada para fazer, não?”. Sim, o cinema não era levado a sério profissionalmente, considerado uma utopia, uma excentricidade como você bem frisa na pergunta. Ainda hoje, o profissional da área é marginalizado, inclusive no Brasil.

3) Como cinéfilo, oque acha da qualidade do cinema nacional e sua ‘baixa valorização’ no próprio território?

André Setaro - O nó górdio do cinema brasileiro está no tripé produção-distribuição- exibição. O mercado exibidor brasileiro está completamente tomado pelas multinacionais (os complexos de cinemas Cinemark, Multiplex etc), e é muito difícil para um realizador iniciante encontrar guarida neste mercado. Se a produção de filmes nacionais passa dos 70 por ano, incentivada, principalmente pelas leis de incentivo, que gera a famigerada captação de recursos, a maioria deles, no entanto, não é exibida. O cineasta que consegue exibir seus filmes é aquele que faz parceria, na produção, com as multinacionais. O que adianta produzir um filme se ele não é exibido? A grande platéia do cinema brasileiro se encontra nos festivais que proliferam país afora. O cinema brasileiro está maduro do ponto de vista técnico, mas seus realizadores se subordinam muito ao mercado, porque precisam captar recursos e as empresas apenas se dispõem a doar recursos àqueles filmes que possuem viabilidade e exequibilidade comerciais.
Os filmes brasileiros que são exibidos em boas salas são aqueles cujos produtores entram em parceria com as multinacionais, a exemplo de Luis Carlos Barreto, Daniel Filho, Walter Salles, Cacá Diegues etc
Mas não se pode negar que tecnicamente, na última década, o filme brasileiro tem padrão internacional. Tecnicamente falando, devo ressaltar. Mas não possui a criatividade do passado, principalmente dos anos 60, quando explodiram o Cinema Novo e o Cinema Marginal (dois exemplos de obras-primas: Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla. Os cineastas não se aventuram na busca do novo por impedimento mercadológico. Na época do Cinema Novo, não havia captação, havia mais liberdade de criação.

4) Você diz que Walter da Silveira, de certa forma, foi quem apresentou os filmes internacionais que fogem ao esteriótipo de blockbusters aos soteropolitanos e, inclusive, à você. Mas e quanto as produções nacionais? Quais lhe atingiram?

André Setaro – Conheci o cinema brasileiro nos anos 50 e, nesta época, a maioria dos filmes nacionais era constituído de chanchadadas populares: comédias com Oscarito, Zé Trindade, Grande Otelo, Ankito, Mazzarropi, entre outros. Lembro-me das filas imensas que se formavam nas portas das salas exibidoras. As chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares e, creio, foi a melhor época para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Mas os críticos, a maioria deles, as abominava. Foi preciso que o tempo passasse para que, décadas depois, elas viessem a ser revalorizadas, e atualmente, inclusive, são objeto até de dissertações e teses de mestrados e doutorados. Recordo-me de muitas delas: Marido de mulher boa, Mulheres à vista, O massagista de madame, O batedor de carteiras, Chico Fumaça. As melhores, contudo, eram as dirigidas por Carlos Manga, satíricas e paródicas, a exemplo de O homem do sputnick, com Oscarito, Nem Sansão nem Dalila, também com Oscarito (um gênio!) ao lado de Grande Otelo, e, também com estes, Matar ou correr (paródia do clássico western Matar ou morrer/High Noon, de Fred Zinnemann, com Gary Cooper). Gostei particularmente de De vento em pôpa, também de Manga. Se a chanchada predominava, havia também os filmes da Vera Cruz. O cangaceiro(1953), de Lima Barreto, constituiu-se num grande êxito, assim como Sinhá Moça, de Tom Payne, sobre as tentativas abolicionistas no século retrasado numa cidade de Minas Gerais. E Nelson Pereira dos Santos, a seguir o exemplo do neorrealismo italiano, plantava as sementes do Cinema Novo com seu pioneiro Rio quarenta graus (1955), seguido de Rio Zona Norte (1958). Com a decadência das chanchadas, surgiu o Cinema Novo, que acompanhei, praticamente, filme por filme, a destacar o impacto que me causou a primeira visão de Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, assim como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos.

5) Você cita que as “chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares” e que a maioria dos crítico as abominava. Porque você acha que algo que atinge o popular com tanto sucesso, acaba por causar essa repulsa nos que se propoem à falar sobre cinema? Afinal, isso tem certa continuidade quanto aos tempos atuais: as obras ‘meneghelianas’ e os contínuos ‘Didi e não sei lá quem mais’, atraem o grande público, mas quem realmente se considera um amante de cinema, as repudia. Sei que em volta disso está a qualidade tanto das produções, como o enredo em si, mas além disso, pode ser, de alguma forma, preconceito?

André Setaro - A crítica, principalmente na sua fase áurea, caracterizava-se pelo elitismo, a eleger os filmes que possuíam temas nobres como as expressões máximas da arte do filme ou, então, aqueles que influíam na renovação da linguagem cinematográfica (Eisenstein, Orson Welles, Godard etc) e os movimentos também de renovação (expressionismo alemão dos anos 10 e 20, a escola soviética da década de 20, a escola documentarista inglesa, o realismo poético francês, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa etc). Os filmes mais populares (à exceção de um Chaplin e poucos), ou popularescos, eram, de imediato, colocados de escanteio. Até mesmo uma boa parte do cinema made in Hollywood (e de alto nível, Billy Wilder, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, Robert Aldrich, George Cukor…) não era considerada, excetuando-se um John Ford, um William Wyler, entre poucos. Foi preciso que o revisionismo crítico praticado pela revista francesa Cahiers du Cinema descobrisse o valor de certos cineastas americanos, dando-lhes o relevo e o status que mereciam (Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Nicholas Ray…).
Mas se, naquela época, as chanchadas eram ridicularizadas, o passar do tempo se encarregou de pô-las em seu devido lugar. Sérgio Augusto, por exemplo, jornalista e notável crítico de cinema, publicou um livro, Este mundo é um pandeiro, no qual faz uma exegese da importância da chanchada para o cinema brasileiro. E há teses e dissertações de mestrados e doutorados que contemplam as chanchadas como seus objetos de investigação e de estudo.
Há, sim, ainda a responder o questionamento anterior, preconceito em relação ao cinema mais popular. Andrea Ormond, do site Estranho Encontro, procura, por exemplo, através de uma investigação crítica achar atributos em muitos dos filmes que foram rotulados pejorativamente de pornochanchadas. A crítica, e aqui faço uma mea culpa porque também a exerço há mais de trinta anos, é, na maioria dos casos, arrogante e dona da verdade. Tem complexo de superioridade e de autoridade. É necessário mais humildade e mais generosidade. Foi o que aprendi em seu exercício. Muitos filmes dos trapalhões são toscos e simplistas, porém há alguns mais elaborados, mas a crítica os joga na vala comum do esquecimento sem, ao menos, ter o cuidado de observar um por um. Se, por um lado, há este preconceito, como afirmei anteriormente, é o tempo o crítico supremo que irá julgar a permanência de determinadas obras cinematográficas.

6) Quanto à descoberta de o cinema como uma “expressão de arte”, e o encantamento por gênios como Kurosawa e Fellini, o que exatamente acredita que diferencia suas obras das dos demais profissionais? Pois uma vez ouvi dizer que Kurosawa “sente seus filmes enquanto outros os vêem”, e se me fosse permitido encaixar alguém mais em tal posição, incluiria Truffaut (excepcionalmente por Jules et Jim e Baisers volés).

André Setaro – Há, cara Teeh, assim é se me parece, como diria Luigi Pirandello, três espécies de cineastas: o autor, o estilista, e o artesão. O cineasta-autor possui um universo ficcional próprio e um estilo particular, pessoal, uma, por assim dizer, marca registrada. O veículo cinematográfico é um veículo para suas idéias e pensamentos, e, nos filmes de um cineasta-autor, há constantes temáticas e constantes estilísticas, isto é, um tema que perpassa todos os filmes e uma maneira muito própria de manipular a linguagem cinematográfica. Ingmar Bergman, por exemplo, cineasta-autor, utiliza-se do cinema como um conduto para o seu pensamento e a sua visão de mundo. São autores realizadores como Federico Fellini, François Truffaut, Charles Chaplin, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais (para mim, o maior cineasta vivo), Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Howard Haws, Hitchcock, Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, entre muitos e muitos outros. Já o cineasta-estilista não tem um universo ficcional próprio, mas possui um estilo particular de se expressar estilisticamente, a exemplo de Steven Spielberg (o que tem a ver Parque dos dinossauros com A lista de Schinder?), John Frankenheimer, James Cameron, Sidney Lumet etc. O cineasta-artesão não tem nem universo ficcional nem estilo, mas sabe contar uma história com fluência narrativa, embora não se possa, a investigar a filmografia de um cineasta-artesão, verificar, nela, constantes temáticas nem estilísticas, pois não as possui. Em relação à sua pergunta, gosto muito de François Truffaut, principalmenteJules et Jim, que considero o seu melhor filme. Em relação a Beijos roubados/Baisers volés, considero-o simplesmente poético e encantador. De Truffaut gosto praticamente de toda a sua obra (há filmes menores, evidentemente), principalmente os citados e As duas inglêsas e o amor/Les deux anglaises et le continent, Um só pecado/Le peau douce,Os incompreendidos/Les quatre cents coups, A noite americana/La nuit americaine, et caterva. Tenho particular admiração por Jean-Luc Godard (da primeira fase: seu Acossado/A bout de souffle, 1959, é uma obra-prima) e Jacques Demy (Les parapluies de Cherbourg, Peau d’âme, Les demoiselles de Rochefort…).

7) E as semelhanças encontradas no neorrealismo italiano e o Cinema Novo? E quanto ao Cinema Marginal?

André Setaro - O neorrealismo italiano se caracterizou pelo despojamento estilístico e pela preocupação em retratar o drama do homem comum e as contradições da sociedade em que vivia. O brado “descer às ruas” de Cesare Zavattini, um dos principais teóricos e roteiristas neorrealistas, significava que os realizadores deviam abandonar os estúdios fechados para que fossem filmar in loco, isto é, nas ruas, abandonando os artifícios dos estúdios e a apreender a realidade em sua essência vital. A problemática social é um dos pontos importantes e a maneira pela qual os realizadores a colocam cinematograficamente, inclusive com a utilização de atores não-profissionais. Ao contrário do herói tradicional do cinema americano, o homem apresentado nos filmes neorrealistas é um não-herói, a diferir, também, do anti-herói da nouvelle vague, cujo maior exemplo talvez esteja no personagem de Michel Poiccard interpretado por Jean-Paul Belmondo em Acossado (A bout de souffle, 1959), de Jean-Luc Godard.
O Cinema Novo também tinha os mesmos pressupostos básicos do neorrealismo: abordagem do drama do homem brasileiro, as contradições de uma sociedade injusta e desigual, filmagens in loco etc. Como exemplo pode ser citado Rio 40 graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos. Vários dos filmes do Cinema Novo são exemplos desses pressupostos: Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Os fuzis (1963), de Ruy Guerra. Já o Cinema Marginal não tem tais pressupostos. É um cinema anárquico, quase autodestrutivo, que experimenta muito a linguagem cinematográfica, um cinema que proclama o caos e pergunta pela saída de uma situação aparentemente fechada. Veja O bandido da luz vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, O anjo nasceu (1970), de Júlio Bressane, Meteorango Kid, o herói integalático (1969), de André Luiz Oliveira etc.



30 abril 2014

Um curso de cinema com Walter da Silveira

Walter da Silveira e Nelson Pereira dos Santos
O tempo, que nunca suspende o seu voo, traz consigo surpresas e, por vezes, impressiona pelo seu ritmo veloz. Lembro-me de um curso de cinema que tomei, ainda jovem, em 1968, e ainda estudante secundarista, ministrado por Walter da Silveira e Guido Araújo, há 41 anos (já?) que teve duração de um ano e foi o único de tal nível nestas quatro décadas que já evaporaram na passagem do tempo. Mas vale recordar, pois faz parte da História do Cinema na Bahia. Vários de seus alunos se tornaram realizadores cinematográficos e críticos. Não fosse o curso talvez não tivessem se apaixonado pelo registro das imagens em movimento.
O sonho de Walter da Silveira era implantar, na Universidade Federal da Bahia, um curso de cinema. Quando do reinado de Edgard Santos, chegou, inclusive, a publicar na imprensa artigos sugerindo a sua criação. Não sei se um curso de graduaçã, mas, talvez, a inclusão de disciplinas na grade programativa de uma Escola de Belas Artes, por exemplo. Em fins de 1967, no reitorado de Roberto Santos, o ensaísta conversou nesse sentido com o diretor do Departamento Cultural da UFBA - assim se chamava nesta época, Professor Valentin Calderon de la Barca, que passou a mensagem ao reitor que, ao contrário de seu pai, o mitológico Edgard, achou a idéia viável e exequível. Resolveu instituir um curso de cinema livre, com a duração de um ano. Não se exigia diploma universitário, mas havia um teste e um módulo de não sei quantos alunos. Estudante do Colégio Estadual da Bahia, o saudoso Central, ainda por fazer 18 anos, consegui passar e o frequentei, oportunidade na qual travei conhecimento com Walter da Silveira durante o ano letivo - já o conhecia do Clube de Cinema da Bahia de vista e de chapéu.

Eis que chega, no cais soteropolitano, um navio que vinha da Tchecoslováquia, trazendo, nele, Guido Araújo e sua esposa tcheca, Ludmila. Guido tinha passado neste país mais de 10 anos e conheceu Ludmila porque ela, estudante de Letras, se especializara na língua portuguesa. O criador das jornadas baianas (que já se encontra na trigéssima-sexta edição e acontecendo nesta semana em Salvador) tinha ido à Tchecoslováquia como uma espécie de prêmio por seu trabalho como assistente de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus e Rio zona norte - na verdade, segundo os créditos dos filmes, fora continuísta. Nelson pediu a Guido que levasse Rio zona norte para um festival internacional. E Guido foi ficando até se estabelecer em Praga, onde trabalhou em programas de rádio, entre outros afazeres na área cultural. Vale ressaltar, que Barravento, de Glauber Rocha, que ganhou o principal prêmio do Festival de Karlovy Vary, foi Guido quem o inscreveu.

Na chegada de Guido, estavam no cais a esperá-lo, além de Walter da Silveira, com o qual tinha relações de amizade, Ney Negrão e sua esposa, na época, a advogada Ronilda Noblat, Walter Pinto Lima, entre outros. Quem sabe bem dessa história é Waltinho. Desempregado, Guido precisava arranjar um trabalho e Walter da Silveira o colocou no Departamento Cultural da UFBA. A partir da entrada de Guido neste setor da universidade é que tem início a estruturação do Curso Livre de Cinema, através da criação do Grupo Experimental de Cinema (GEC)

Com duração de um ano, o curso foi dado à noite, às 20 horas, sempre às terças e quintas, na Casa da França que, depois que saiu do guarda-chuva da UFBa, veio a morrer lentamente na Mouraria, e o espaço deu lugar a Biblioteca Central, que no reitorado de Luiz Fernando Macedo Costa, construído um prédio grande no campus de Ondina, para lá se transferiu. E a Faculdade de Comunicação (Facom) passou a ocupar o antigo prédio da Casa da França.

Walter da Silveira ensinava às terças, História e Estética do Cinema, e Guido Araújo, às quintas, Teoria e Prática. Fui colega de muitas pessoas que se tornaram, depois, cineastas, como André Luiz de Oliveira, que fez Meteorango Kid entre outros, José Umberto (O anjo negro), José Frazão (Akpalô, O último herói do gibi, O mistério do Colégio Brasil... - por falar nele, onde anda Frazão?), e pessoas que estudaram, depois, cinema, a exemplo de Geraldo Machado, Jairo Farias Goes, etc. Vou parar por aqui para não omitir nomes. E Ney Negrão, que também tomou o curso.

Uma noite inesquecível foi quando Walter da Silveira levou Glauber Rocha para fazer uma palestra. O cineasta estava filmando em Milagres O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que ganharia, no ano seguinte, um prêmio importante em Cannes. Glauber fez uma radiografia brilhante da situação do cinema brasileiro, lamentou que o governo do Estado lhe negou até uma kombi, não recebendo da administração Luiz Viana Filho um centavo sequer, respondeu perguntas. Estávamos em maio e Glauber estava com um casaco preto de couro.

Em 1969, por motivos de saúde, Walter não pôde mais dar aulas. Um câncer lhe corroía o corpo efêmero. Morreu aos 55 anos em novembro de 1970. Mas o Curso Livre de Cinema continuou por muitos anos comandando, apenas, por Guido Araújo.


27 abril 2014

Psicologia da recepção

Com o advento das novas tecnologias, dos novos suportes, a recepção das imagens em movimento tomou novos contornos. Se, há poucas décadas, elas apenas podiam ser contempladas dentro das salas escuras dos cinemas, e mediante o pagamento de ingressos, atualmente as imagens em movimento fazem parte do cotidiano do homem, e não seria exagero afirmar que ele nasce a vê-las através da televisão sempre ligada no hospital onde é dado à luz.

As imagens, portanto, estão em todos os lugares - em casa, na televisão, nos shoppings, nos anúncios em movimento - e a sala exibidora, que era dona da exclusividade delas, é mais um local onde são apresentadas.

Para ficar apenas no cinema, este tinha, em anos passados, uma total exclusividade. E a recepção das imagens em movimento causava, naquele que as via pela primeira vez, certo assombro, certa estupefação. É célebre um texto do escritor russo Gorki quando relata a sua primeira impressão ao entrar para ver um filme. Por causa da planificação, dos cortes, e neófito neste tipo de recepção, conta que o que viu foram pessoas despedaçadas, cabeças, pernas estraçalhadas, enfim, uma sucessão de fragmentos das partes do corpo humano e das coisas. O que era apenas um filme romântico se tornou, para ele, uma manifestação de terror.

Nunca me esqueço da primeira vez que fui ao cinema. As imagens também se me afiguraram deformadas até que consegui focá-las adequadamente na sua dimensão espacial.

Iniciada a minha trajetória de cinéfilo nos anos 50, em Salvador, onde moro até hoje, naquela época não havia sequer televisão. Imagens em movimento somente podiam ser vistas dentro das salas exibidoras. Se a Tv no Brasil surgiu em 1950, graças aos esforços de Assis Chateaubriand, na Bahia ela foi somente instalada em novembro de 1960, uma década depois, portanto.

Poucas os soteropolitanos que compraram o caro aparelho, privilégio de uma classe média mais alta. Mas as imagens eram ruins e sempre havia defeitos, como o ajuste do horizontal e vertical, que era de difícil colocação. Não existia videotaipe e os programas, a exceção de desenhos animados e seriados, eram todos produzidos na região. O que de certa forma era importante para o incentivo dos profissionais da área, mas os baianos ficavam sem ver os grandes programas televisivos do eixo Rio-São Paulo, que fizeram história.

Aqueles que se formaram cinematograficamente antes do advento do VHS e do DVD, ao tomar conhecimento destes, o espanto se deu pela possibilidade de se ter em casa os seus filmes preferidos, mas o assombro já tinha se manifestado quando do conhecimento do espetáculo cinematográfico. Mas a nova geração que nasceu, com o VHS e o DVD, não foi assombrada, por assim dizer, pelas imagens em movimento. Não teve a oportunidade de sentir a magia do cinema nem se assombrar com este, nem se assombrar na sua primeira vez dentro da sala escura.

Se, naquela época, muitos se assombraram, os filmes também permaneciam nos cinéfilos por vários meses. Alguns deles chegaram a viver de determinados filmes, a exemplo do crítico carioca Paulo Perdigão, que, força de expressão, passou a vida a ver Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens, chegando, inclusive, a ir aos Estados Unidos para entrevistar o grande diretor e trazer, na bagagem, um punhado da terra onde se deram as locações da citada obra, um western realmente inesquecível.

Isto quer dizer que o impacto da obra cinematográfica era imenso. E o espetáculo cinematográfico tinha duas características essenciais: ser fugidio e não se poder, nele, intervir na sua temporalidade. Fugidio porque um filme era lançado e levava apenas uma semana em cartaz, excetuando-se os de sucesso que dobravam e num período de cinco anos (prazo de validade do certificado de censura) eram reprisados. A grande maioria dos filmes, no entanto, ficava uma semana e se, por acaso, o cinéfilo estivesse doente ou viajando podia perdê-lo para sempre. Há obras importantes que, estreadas em Salvador, por estar doente (gripe, sarampo, catapora, coqueluche as doenças clássicas da época), ou em viagem, perdi-as para sempre, reencontrando agora, algumas, em DVD.

Esta característica do filme ser fugidio é importante. Na maioria das vezes, os filmes lançados em cinema de primeira linha, saiam destes e circulavam pelos poeiras (salas de segunda categoria) e, depois, pelos cinemas de bairro para fazer carreira no interior até que as cópias se desgastassem nesse interregno de cinco anos. Aconteceu de ter perdido o relançamento de Rastros de ódio (The seachers), de John Ford, e vim a saber que estava em cartaz em Jequié. Tomei um ônibus em direção a esta cidade baiana e consegui vê-lo na última sessão. De volta à rodoviária, por causa de um atraso na projeção (geralmente os filmes partiam, as luzes se acendiam), perdi o ônibus e tive que dormir num banco da rodoviária. Mas estava feliz: tinha visto Rastros de ódio.

Impossível acontecer fato semelhante nos dias atuais. E a impossibilidade de se intervir no tempo é outra característica do cinema de antigamente. O espectador, sentado na poltrona, era um escravo do tempo cinematográfico. Intervir no tempo somente seria possível se ele fosse à cabine de projeção e ameaçasse, com uma arma, o operador para parar a exibição.

Atualmente as coisas mudaram. Grandes filmes da história do cinema podem ser adquiridos para se ter em casa. E há a possibilidade de baixar qualquer filme pela internet. Os preços dos DVDs são acessíveis a qualquer um, principalmente nos magazines espalhados pelos shoppings, onde se pode comprar discos a 9,90. Os cinéfilos têm seus filmes preferidos nas prateleiras de seus lares. O caráter fugidio desapareceu e a interferência no tempo é total. Se, antes, o espectador era um Escravo da projeção, hoje ele é Senhor do que está a ver.


21 abril 2014

A cinefilia, o vento já a levou

André Bazin: o maior crítico de todos os tempos

Para os que nasceram na era do vídeo, e, agora, do disquinho mágico, nada muito surpreendente. Mas para aqueles, como eu, que nasceram em priscas eras, em meados do século passado (1950, para ser mais preciso), com o tempo passando rápido – ó, tempo, suspende o teu vôo! -, o advento do VHS foi uma surpresa, e a do DVD, com tantos dreyers e bergmansminnellis e langshawks efellinis, espalhados por aí, quase um assombro.

Alguém já disse que foi pelo assombro que o homem começou a filosofar, mas, isto, outra história. Acontece que, antigamente, as imagens em movimento somente eram possíveis de ser contempladas no escurinho das salas exibidoras, havendo, para isso, de se pagar um ingresso. A televisão, naquela época, era muito ruim em termos de imagem.

Assim, havia duas características no que diz respeito à psicologia da recepção: a inacessibilidade e a impossibilidade de o espectador intervir na temporalidade. Na primeira, quando dentro do cinema, e sala enorme, com quase dois mil lugares, verdadeiros palácios, a imagem que se via na tela era algo mágico, inacessível. Lembro-me que havia um senhor que vendia fotogramas de filmes na Praça da Piedade (aqui em Salvador), e que também oferecia para compra uma lata que, devidamente furada, continha, em uma de suas extremidades, uma lente de óculos que permitia ver os fotogramas com mais nitidez do que a olho nu.

Se um determinado filme era exibido e, por acaso, estivesse doente ou viajando, retirado de cartaz, podia perdê-lo para sempre, excetuando-se os grandes sucessos que sempre eram recolocados. E, na segunda característica, a impossibilidade de intervenção na temporalidade. Projetado o filme, este se desenrolava na tela – ou no écran, como se dizia então, e ninguém podia pará-lo, retrocedê-lo, avançá-lo, salvo se entrasse na cabine de projeção e, revólver em punho, ameaçasse o operador.

Mas a inacessibilidade e a temporalidade se tornaram favas contadas com o surgimento do VHS e do DVD. Há, inclusive, creio, uma perda da aura cinematográfica. Se os disquinhos funcionam como o resgate do cinema, por outro lado, no entanto, perdeu-se a magia do espetáculo, visto em comunhão numa platéia. O indivíduo hoje já nasce vendo imagens em movimento e, por isso, elas se tornaram vulgares no sentido de corriqueiras.

Quando me contaram que, nos Estados Unidos, inventaram um aparelho pelo qual se podia ver filmes, que ficavam dentro de uma caixinha, não acreditei. Era o vídeo que então estava inventado e restrito ao território de Tio Sam. Precisei, como São Thomé, ver para crer, o que aconteceu em torno da metade dos anos 80, quando comprei o meu primeiro aparelho de VHS, um Sharp, que me deu muito trabalho de sintonizar. E as cópias eram péssimas. Precisou-se esperar que o DVD surgisse para que o cinema recebesse uma punhalada nas costas (na região pulmonar).

E atualmente ir ao cinema é entrar num festim diabólico onde reinam as pipocas, as conversinhas fora de hora, os celulares que, atendidos, infernizam o espectador que queira contemplar o filme. O público de cinema, no Brasil, pelo menos, se tornou uma espécie de patuléia desvairada. Repito sempre que o ir ao cinema hoje é uma das fases do shoppear. Não se vai mais ao cinema, esta a verdade, mas aos shoppings. Até mesmo nas salas ditas alternativas o público se comporta com apatia e as pessoas gostam mais de aparecer, porque, na sua grande maioria, pseudo-cinéfilos, pseudo-intelectuais. Mas vou contar uma história.

Corria o ano de 1973. Estava no Rio de Janeiro a passar as férias de julho. O jornal da época era o Jornal do Brasil, com seu excelente Caderno B. Neste, tomei conhecimento que Ladrões de bicicleta ia ser exibido na Cinemateca do Museu de Arte Moderna numa única sessão pela tarde. Conhecia muitos filmes, nesta ocasião pré-vídeo, de ouvi dizer e de leitura, alguns importantes com muitas informações. Era o caso de Ladri di biciclette, de Vittorio De Sica, que nunca tinha visto por falta de oportunidade e, também, porque nunca foi exibido em Salvador durante o meu itinerário existencial (depois passou algumas vezes). Assim, fiquei a postos, esperando o horário, com certa expectativa, aliás, que não tenho mais para quase nada. Chovia fino. Entrei na sala da saudosa Cinemateca. Mas, quando saí, um toró se abateu sobre a cidade, que ficou completamente engarrafada. Difícil pegar um táxi. Depois de algum padecimento embaixo da marquise do museu, resolvi ir andando do Flamengo, onde fica este, até Laranjeiras, onde estava hospedado. Cheguei encharcado e, no outro dia, com febre alta, ameaçado de pneumonia. Mas estava feliz por ter visto Ladri di biciclette. Atualmente, tenho-o em VHS e DVD, que fica guardado, parado.

Não seria mais possível um sacrifício tal para ver um filme. Tenho um amigo, por exemplo, que ia sempre a Paris para se meter na Cinematheque Française e ficar o dia todo vendo obras clássicas. Hoje tem um home theater em sua casa e há anos que não viaja. Viajava somente para ver filmes.

A cinefilia, como se praticava antigamente, está morta, e bem enterrada



20 abril 2014

Da narrativa cinematográfica

A construção de uma narrativa cinematografia obedece a diversos critérios assim como um projeto arquitetônico corresponde a determinadas opções. Há uma construção narrativa que se pode considerar simples e outra que se desenha como complexa. Dois tipos de estruturas, portanto, mas que se deve ter em conta e ressaltar que a simplicidade ou a complexidade são noções exclusivamente inerentes ao como do discurso e não à sua coisa. Isto quer dizer: pode haver histórias intrincadíssimas mas de estrutura simples, elementar, e, pelo contrário histórias lineares, com começo, meio e fim e progressão dramática tradicional mas que se tornam intrincadas por uma disposição particular dos segmentos narrativos.Dentre as narrativas de estruturas simples estão: a linear, a binária e a circular.

Narrativa linear. Percorrida por um único fio condutor que se desenvolve de maneira seqüencial do princípio ao fim sem complicações ou desvios do caminho traçado. A narrativa de estrutura linear é a de mais fácil leitura e é concebida de modo a respeitar todas as fases do desenvolvimento dramático tradicional. O esquema que se obedece é aproximadamente o seguinte: a) introdução ambiental; b) apresentação das personagens; c) nascimento do conflito; d) conseqüências do conflito; e) golpe de teatro resolutório. Este esquema da narrativa linear repete ao pé da letra o que era a estrutura base do romance psicológico do século XIX. Incluem-se nesse tipo de narrativa aquela nas quais o elemento poético e metafórico é reduzido ao mínimo e os motivos de interesse residem exclusivamente na fábula (story), excetuando-se os eventuais casos de erosão dentro do referido esquema - que se constituem uma exceção à regra.


Narrativa binária. Este tipo de narrativa é percorrido por dois fios condutores a reger a ação como só acontece nos casos de narrativas paralelas baseada na coexistência de duas ações que podem entrecruzar-se ou manter-se distintas. Garantia certa de tensão dramática, a binária é empregada em fitas de ação - thrillers, westerns, etc - porque valoriza o paralelismo e o simultaneismo, fornecendo, assim, amplas possibilidades de impacto. Exemplo clássico da narrativa binária está em David Wark Griffith (Intolerância, 1916, O lírio partido, 1918, Broken blossoms no original). A linguagem cinematográfica tomou impulso com a descoberta da ação paralela e da inserção de um plano de detalhe no plano de conjunto.


Narrativa circular. Este tipo de narrativa tem lugar quando o final reencontra o início de tal modo que o arco narrativo acaba por formar um círculo fechado. É menos frequente e mais ligada a intenções poéticas precisas com um propósito de oferecer uma significação da natureza insolúvel do conflito de partida e denota a desconfiança em qualquer tentativa para superar a contradição assumida como motor dramático do filme. A significação implícita a este gênero de escolha estrutural poderia ser: "as mesmas coisas repetem-se". Em A faca na água (Noz W Wodzie, Polônia, 62), o primeiro longa metragem de Roman Polansky, assim como também em O fantasma da liberdade (Le fantôme de la liberté, 74) de Luis Buñuel, e Estranho Acidente (Accident, 68), de Joseph Losey, para ficar em três exemplos, as coisas que se observam no início voltam a surgir no final, a despeito das tentativas registradas pela narrativa para se libertar delas e da sua influencia nefasta. A construção das obras citadas obedece e exprime a visão do mundo de seus autores do que, propriamente, à matéria da fábula, que pode se apresentar tranquila e jocosa e destituída de relevância maior.


Dentre as narrativas de estrutura complexa estão: a estrutura de inserção, a estrutura fragmentada e a estrutura polifônica.

Narrativa de inserção. Consiste numa justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes cujo objetivo é gerar uma espécie de representação simultânea de acontecimentos subtraídos a qualquer relação de causalidade. Os segmentos narrativos individuais interatuam entre si, produzindo, com isso, uma complicação ao nível dos significantes que potencializa o sentido global do discurso. A contínua intervenção do flash-back pode provocar um entrelaçamento temporal que esvazia a noção do tempo cronológico em favor do conceito de duração. Por outro lado, as frequentes deslocações espaciais conferem aos lugares uma unidade de caráter psicológico mas não de caráter geográfico. Na narrativa de inserção, a realidade é vista de modo mediatizado, isto é, a realidade é refletida pela consciência do protagonista ou pela do realizador omnisciente. Seguem esta narrativa de inserção filmes como 8 ½ (Otto e mezzo, 64), de Federico Fellini, A guerra acabou (La guerre est finie, 66), Providence, entre outros trabalhos de Alain Resnais,Morangos Silvestres (Smulstronstallet, 57) de Ingmar Bergman, etc. Nestes exemplos, o receptor/espectador é posto diante de um desenvolvimento narrativo que não é lógico mas puramente mental: o velho Professor Isaac contempla a própria infância (Bergman), o cineasta Guido (Marcello Mastroianni) no cemitério conversa com seus pais já falecidos (Fellini), a projeção do desejo de um escritor moribundo (John Gielgud) imaginando situações (Resnais). O desenvolvimento puramente mental determina, por sua vez, um jogo de associações visuais e emotivas que cria um universo fictício exclusivamente psicológico.

Narrativa fragmentária. Estrutura-se pela acumulação desorganizada de materiais de proveniência diversa, segundo um procedimento análogo ao que, em pintura, é conhecida pelo nome de colagem, A unidade, aqui, não é dado pela presença de um fio narrativo reconhecível, porém pelo ótica que preside à seleção e representação dos fragmentos da realidade. Se, neste caso, da narrativa fragmentária, a intenção oratória do cineasta prevalece sobre a fabulatória, mais acertado seria considerar o filme como um ensaio do que um filme como narrativa. A expectativa de fábulas, no entanto, encontra-se presente no homem desde seus primórdios e o cinema, portanto, desde seu nascedouro possui uma irresistível vocação narrativa. Poder-se-ia, então, ainda que esta irrefreável expectativa do receptor diante de um filme, falar de um cinema-ensaio ao lado de um cinema-narrativo. O exemplo de, novamente Alain Resnais, Meu tio da América (Mon oncle d'Amerique) vem a propósito, assim como Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela (Deux ou trois choses que je sais d'elle, 66) de Jean-Luc Godard - um minitratado sobre a reificação que ameaça o homem na sociedade de consumo, La hora de los hornos (68), de Fernando Solanas - obra nascida como ato político que utiliza documentos, entrevistas, cenas documentais e trechos com o objetivo de proporcionar a tomada de consciência revolucionária por parte do espectador.

Narrativa polifônica. Estrutura-se pelo número de ações apresentadas que confere uma feição coral à narrativa, impedindo-a de afirmar-se de um ponto de vista que não seja o do realizador-narrador. Os acontecimentos que se entrelaçam são múltiplos, dando a impressão de um afresco, que se forma pelas situações captadas quase a vol d'oiseau. Utilizando-se desse tipo de narrativa complexa, o cineasta capta de maneira sensível, se capacidade houver, o clima social de uma determinada época, como fez Robert Altman em Nashville (1975). Neste filme, vinte e quatro histórias se entrecruzam para compor um mosaico revelador da realidade dos Estados Unidos durante a década de 70. Outro exemplo do mesmo Altman é Short cuts. (Short cuts, EUA, 91).As estruturas examinadas são todas elas do tipo fechado, segundo as coordenadas estabelecidas por René Caillois (12). Porque, assim fechadas, estas estruturas servem de suporte à narrativas concluídas do ponto de vista de seu desenvolvimento, não importando o seu significado poético. Existem, no entanto, casos de estruturas abertas, nas quais a conclusão do discurso é deixada em suspenso ou então prolongada para além do filme. O que caracteriza a obra cinematográfica como um trabalho em devir, um filme que busca ainda o seu desfecho ou, então, como um texto que se oferece à meditação do espectador. EmApocalypse now (1978), de Francis Ford Coppola, o cineasta apresenta três finais todos igualmente legítimos e solidários com o contexto narrativo. Já em Dalla nube nulla ressitenza (81), de Jean-Marie Straub, formado por blocos de sequências fixas, a solução final é deixada ao subsequente trabalho de reflexão do espectador/receptor. Trata-se de uma obra que faz uma reflexão, por meio de representações dialogais, sobre a passagem da idade feliz do Mito para a idade infeliz da História.O caráter aberto da narração, todavia, em nada desfalca a contextualidade orgânica do discurso, contextualidade que se mantém íntegra apesar da suspensão da fábula. A solidariedade estrutural, ressalte-se, constitui a conditio sine qua non de qualquer discurso cinematográfico que pretenda considerar-se artístico.

17 abril 2014

A pulverização do cinema

Apesar de já ter me referido, aqui, diversas vezes, não custa nada repetir que a estética do videoclip incorporada à narrativa cinematográfica contemporânea, principalmente aos produtos oriundos da indústria cultural de Hollywood, destrói o prazer de ver um filme pela impossibilidade de contemplá-lo devidamente. Para acompanhar a "velocidade" das mentes internéticas, a indústria descobriu que a melhor fórmula de envolver o espectador que não pensa e é apático é aquela baseada nos cortes incessantes e nas tomadas bem rápidas.

Até mesmo filmes razoáveis e bons estão estruturados nesta estética, que já foi denominada de estética da tesourinha. Poucos os realizadores que possuem o conceito de duração das tomadas com a exatidão e o ritmo desejados pelo grande cinema. Para ficar num exemplo: Stanley Kubrick possuía um sentido exato da durée do plano. O conceito bem aplicado faz com que o espectador se envolva no espetáculo, a se tornar, dele, cúmplice. O que não é possível no cinema "montanha-russa" dos tempos atuais.

O público adolescente e aborrecente, que é o alvo da indústria, não pensa, não contempla, e faz da ida ao cinema uma das fases do shoppear. O filme é o que menos conta para a platéia de adolescentes que lotam as salas dos complexos aos sábados. Os espectadores atendem aos celulares e conversam o tempo todo, riem fora de hora, põem os pés (as patas) nas cadeiras dianteiras, quando não infernizam quem está na frente com "toques" infernais, e há, atualmente, uma tendência a se falar constantemente não somente ao telefone (que virou uma praga) como também com o amigo(a) ao lado. Sem falar, é claro, na comilança desenfreada (bacias e não mais saquinhos de pipocas, cheerburgueres, guloseimas gerais).

A conclusão a que se pode chegar é que o filme "montanha-russa" é reflexo da mentalidade da platéia, pois a indústria somente se interessa pelo lucro e, portanto, oferece apenas o que público solicita. E as pessoas que vão hoje ao cinema não se interessam em espetáculos engenhosos e inteligentes. Basta que possuam ação, tensão, efeitos especiais mirabolantes. A ausência do humanismo nos filmes contemporâneos é flagrante. Os personagens não possuem aquele tão necessário poder de verdade, de convencimento, mas são apenas e somente marionetes condutoras da ação proposta, títeres robóticos de um cinema sem alma.

Por outro lado, nesta crise da cultura contemporânea, há a tendência de se diluir autores importantes e viscerais, a exemplo do genial Nelson Rodrigues. Como bem observou a ensaísta de cinema Andrea Ormond em seu blog Estranho encontro, ao fazer uma análise das adaptações cinematográficas do grande dramaturgo, a tendência de diluir é uma constante nestes tempos contemporâneos numa espécie assim de imitação da arte.

A onda politicamente correta que assola e destrói a liberdade e a criatividade é outro fator que ajuda muito a crise cultural. Havia uma atitude visceral que agora se edulcora. Não existem mais autores de visceralidade sedutora como Pier Paolo Pasolini (principalmente no escatológico "Saló", seu canto de cisne), Marco Ferreri ("A comilança"), entre muitos outros que vingaram no pretérito. Uma tendência dessa diluição crítica pode ser encontrada como exemplo em "Beleza americana", de Sam Mendes, uma visão aparentemente crítica, porém dentro de uma vontade de edulcorar que sufoca o que se pretende ser visceral.

Apesar da salgalhada desse artigo, há elos comunicantes entre os assuntos abordados, que refletem bem o fundo do poço a que se chegou no que teimam em chamar pretensiosamente de contemporaneidade: o comportamento selvagem da platéia das salas exibidoras, a apatia diante da arte, a ausência de humanismo nos filmes e na vida, a diluição de temáticas fortes e de autores viscerais em função de uma apreciação dentro de moldes à la "delicatessen", a transformação do "transitar na urbis" em shoppings centers com seus imensos fasts foods.

E as assim chamadas “salas de arte” não se encontram livres da agitação. Aqueles que as freqüentam fazem-no mais por festividade, para aparecer, do que, propriamente, pelo amor ao cinema. A diluição, a falta de base referencial, a completa ausência da cultura literária, e a proliferação dos “monossílabos” nos sites da internet, bem que são sintomáticos de ma crise cultural sem precedentes. O paradoxal em tudo isso se encontra na possibilidade extraordinária de se obter informações como nunca se viu antes no “quartel de Abrantes”.

O que reina é o império do audiovisual. A facilitação da expressão através das imagens em movimento se, por um lado, democratizou o acesso às câmeras digitais, por outro, determinou uma enxurrada de inexpressividades, como se pode observar nas dezenas de eventos que acolhem os pequenos filmes realizados pelo digital. Antes, o acesso à expressão cinematográfica era muito difícil. Havia a bitola 16mm, mas os custos, altos, não permitiam que qualquer um pudesse manipular a câmera, que exigia um mínimo de conhecimento técnico.

Filma-se hoje como antigamente se fazia poesias. Se, antes, as pessoas, que queriam se expressar, faziam-no pelos versos, e, quando publicados em suplementos literários ou revistas, sentiam-se revigorados, atualmente é o filme o móvel expressivo da nova geração. Bom que assim seja, mas o tempo, sempre implacável, se encarregará de reter o que presta e devolver, à lixeira do esquecimento, as tolices feitas.


16 abril 2014

Robert Mulligan: evocação e sentimento

O preço de um prazer (1963), de Robert Mulligan: a sensibilidade e o apuro no trato de questões intimistas
A começar do princípio, não se podia prognosticar o futuro Mulligan em Vencendo o medo (Fear strikes out, 57), uma tentativa biográfica do jogador de beisebol Jim Piersall, interpretado por Anthony Perkins, que se ajusta ao papel, pois o biografado era homem extremamente neurótico, cheio de tiques, manias, e o filme desvenda uma explicação meio freudiana e mostra a causa do desequilíbrio do jogador na infância difícil, dominada por pai severo e rude (Karl Malden). Ainda no cast: Norman Moore.

Mulligan, após Vencendo o medo, passa três anos a esperar a oportunidade de dirigir o seu segundo longa, ainda que, neste interregno, tenha trabalho muito em episódios e seriados da televisão americana. É um cineasta oriundo da tv, mais liberto das normas pétreas dos estúdios, assim como Sidney Lumet, que com mais de 80 anos dirigiu um dos melhores filmes de 2008: Antes que o diabo saiba que você está morto (Before the devil knows you're dead). O filme que se segue a Fear strikes out é A taberna das ilusões perdidas (The rate race, 1960), baseado em peça de Garson Kanin, com Tony Curtis e Debbie Reynolds.

A lembrança que se tem de O grande impostor (The great impostor, 1961) é muito boa, ainda que memória de adolescente que nunca mais teve a oportunidade de revê-lo. A vida de um homem (Tony Curtis) que, durante a sua existência, adotou perto de vinte identidades diferentes, saindo ileso de todas as confusões. Além de Curtis, Edmond O’Brien, Karl Malden, e música do grande maestro Henry Mancini. Neste mesmo ano, 61, uma sophisticated comedyque causou enorme sucesso de bilheteria, mas que, crê-se, vista hoje, não se sustentaria: Quando setembro vier (Come september), com Rock Hudson (o queridinho das comédias românticas), Gina Lollobrigida (a italiana sensual), Walter Slezak, Sandra Dee, Bobby Darin. Rock é um milionário que descobre que seu caseiro transformou sua belíssima villa na Itália em hotel. Mas ele se apaixona por uma das hóspedes, a sensual Lollobrigida. As canções foram compostas (e cantadas) por Bobby Darin. Recorda-se que o primeiro plano do filme, em cinemascope, colorido, mostra um imenso avião que, abrindo seu compartimento de bagagens, faz sair, dele, um Rolls Royce de prata. O script é perfumaria de Stanley Shapiro.

Rock Hudson é convidado para estrelar Labirinto de paixões (The spiral road, 1961), que tem, ainda, Gena Rowlands (a atriz estupenda e esposa de John Cassavetes), Burl Ives, entre outros menos votados. Na verdade, um melodrama, que viu-se no Rio, no poeira Politeama, quando este saudoso cinema, que ficava no Largo do Machado, passava programa duplo, um vehiclepara Rock Hudson. No máximo, uma direção eficiente do ponto de vista artesanal.

O grande Mulligan põe sua manga de fora no ano seguinte, em 1963, em O sol é para todos (To kill a mockinbird, 1962), filme que deu o Oscar de melhor ator a Gregory Peck no papel de um advogado humanista que defende um negro. A ação se localiza numa cidadezinha de Alabama em 1920, racista e preconceituosa. O negro é injustamente acusado de violentar uma branca. Tudo é contado pelo ponto de vista do casal de filhos do advogado e há um tom evocativo que Mulligan viria a adotar em outros de seus filmes. Com Mary Badham, Rosemary Murphy. Baseia-se num livro escrito por Herman Lee, amiga de Truman Capote.

Em 1963, Mulligan resolve fazer um filme in loco em Nova York: O preço de um prazer (Love with the proper stranger, 1963). Cineasta oriundo da televisão, como já aqui se referiu, com os talentosos Frankenheimer, Lumet, há, neste filme, um enfoque que se pretende menos hollywoodiano e com certa influência do neo-realismo italiano (Hitchcock, o grande Hitchcock, o mestre dos mestres, já fizera uma experiência quase neo-realista em O homem errado (The wrong man, com Henry Fonda como o músico que é confundido com um assassino e, no final, quando a polícia descobre o verdadeiro culpado, e os dois se encontram face a face, Fonda tem pena do homicida, porque sabe que vai passar pelo mesmo calvário que ele.) Mas O preço de um prazer é sobre uma caixeira do Macy’s, que não é outra senão a sublime Natalie Wood, que engravida depois de passar uma noite com um estranho (Steve McQuenn). Ela, então, pede sua ajuda para encontrar um médico para que realize um aborto. A partitura é de Elmer Bernstein e a fotografia (em expressivo preto e branco), de Milton Krasner.

Ainda em 1965, Mulligan, apesar de já ter demonstrado ser um realizador acima da média, fora notado apenas por alguns exegetas da crítica francesa, e certos hermeneutas americanos como Andrew Sarris e Peter Bogdanovich, mas, neste ano, realiza O gênio do mal (Baby, the rain must fall), aproveitado o astro (McQuenn) do filme anterior, que, aqui, é um homem que sai da prisão, volta para a mulher (Lee Remick) e tenta ganhar a vida como guitarrista e cantor. Mas o xerife da cidade (Don Murray) vem a se apaixonar por ela, criando, com isso, o conflito básico. O afamado Glenn Campbell aparece no conjunto no qual McQuenn toca.

touch mulliganiano está acesso com sensibilidade e a devida evocação na obra que se segue:À procura do destino (Inside Daisy clover, 1966), cujo tratamento temático é avançado para a época. Mulligan procura fazer de sua personagem principal, uma estrela juvenil problemática de Hollywood, o protótipo de todas as atrizes que tiveram problemas na sua trajetória (de Judy Garland a Marilyn Monroe): o patrão tirânico, o marido homossexual, a avó psicótica. Com Natalie Wood, em seu esplendor na relva, Robert Redford, Christopher Plummer, colhendo os louros como o Capitão Trapp de A noviça rebelde/The sound of music, e a sempre inexcedível Ruth Gordon.

Subindo por onde se desce (Up the down staircase, 1967) é também um filme in loco, que procura enfocar a problemática de uma professora de escola de periferia de Nova York, Sandy Dennis, obra que procura sempre um tom realista no desenvolvimento de sua narrativa. Ainda que não seja um grande filme, lembra Sementes da violência, de Richard Brooks, com Glenn Ford e Sidney Poitier.

Os anos 60 se aproximam do fim e Maio de 68 se anuncia. Mas Mulligan, alheio ao que se passa, se refugia no western, mas western de primeira linha, um de seus melhores filmes: A noite da emboscada (The stalking moon, 1969), com Gregory Peck, militar do exército que, prestes a se aposentar, encontra, desamparados, uma mulher (Eva-Marie Saint) e seu filho, fruto de uma relação com apache violento, e decide transportá-los a lugar seguro, mas o índio, ao tomar conhecimento, resolve perseguí-los. A perseguição, num desenvolvimento que faz lembrar, tal a tensão, um thriller eletrizante, em nenhum momento faz aparecer o apache. Tudo é tensão, atmosfera, clima. Uma direção de brilhantismo indiscutível.

Em 1970, porém, volta-se aos jovens contestadores, apoiando-se num argumento bem de acordo com sua época contestatória e faz uma espécie de documento sociológico em O caminho da felicidade (The pursuit of happiness). Michael Sarrazin é um rebel withou a cause que, com seu carro, para escapar de pagar o estacionamento, mata um operário e vai para trás das grades, mas foge e, com sua namorada (Barbara Hershey) empreendem uma fuga alucinante que parece não ter fim num autêntico road movie.

E vem Houve uma vez um verão (Summer of ’42, 1971), obra delicada e feita com sensibilidade sobre a iniciação sexual de um adolescente (Gary Grimes) que, num verão de 1942, quando os Estados Unidos entram em guerra, seduz a esposa (Jennifer O’Neil, carioca de nascimento, que Howard Hawks, por causa deste filme, aproveitaria em seu derradeiro western, Rio Lobo, ao lado de John Wayne) de um oficial que está ausente envolvido no conflito bélico de então. Mulligan conduz o relato com extrema finesse e o filme é uma mostra da vacuidade de certas mulheres que, deixadas sozinhas por circunstâncias alheias à sua vontade, ficam ao relento do desejo e das paixões. Há um tom evocativo que o cineasta repete com plena consciência de suas possibilidades poéticas, principalmente quando a partitura é de um maestro como Michel Legrand. E a fotografia de Robert Surtees é um assombro.

Talvez não exista um filme que trata da maldade embutida na infância do que A inocente face do terror (The other, 1972). Ambientado em Connecticut, em 1935 – e novamente aquele atmosfera de evocação tão peculiar a Mulligan, dois garotos gêmeos se deparam com a maldade e a perversidade. A mise-en-scène do realizador atesta o seu vigor, a sua singularidade, a sua marca no cinema americano. Mas o melhor, por incrível que possa parecer, ainda estaria por vir: Jogos do azar, testamento do cineasta, uma obra de densidade exemplar, um pulsar envolvente, magistral, cinema puro na sua procura de decifrar e fazer ver a beleza possível de uma mise-en-scène. O intérprete principal de Jogos de azar (The nickel ride, 1974) é Jason Miller, que viria, neste mesmo ano, a fazer um padre em O exorcista, de William Friedkin.

Encerra-se esta breve homenagem a Robert Mulligan com as palavras de Carlos Reichenbach, que fecha com chave de ouro a trajetória desse importante realizador, destacando, o Comodoro, a beleza de um filme como The nickel ride.

“É curioso notar que outros cineastas da mesma geração, como Robert Mulligan, por exemplo, que não foram tão incensados pela crítica no começo, acabaram realizando uma obra menos pretensiosa e muito mais coerente. No caso de Mulligan, o sucesso popular e o prestígio em Hollywood, só veio a acontecer no meio da carreira, com Houve uma vez no verão (Summer Of 42) e A inocente face do terror (The other), ambos de 72, embora ele já tivesse realizado filmes mais notáveis como Fear strikes out (Vencendo o medo - 57), To kill a mockingbird (O Sol é para todos - 63), Baby, the rain must fall (título deslumbrante, burramente "traduzido" como O gênio do mal - 64), Inside daisy clover (À Procura de um destino - 66), Up the down staircase (Subindo por onde se desce - 67) e The pursuit of happiness (uma ode radical ao inconformismo, lançada no Brasil com o título de O caminho da felicidade - 70). É verdade que, após o sucesso com os dois filmes citados acima e o fim de sua parceria com o produtor Alan Pakula - que também se tornou diretor de cinema, mas num estilo mais cool e menos arrojado que Mulligan - sua obra caiu em desgraça. Embora tenha produzido e dirigido o filme mais anticomercial de Hollywood, The nickel ride (Jogos de azar - 74) - um drama chumbo grosso e depressivo sobre viciados em jogo, fotografado inteiramente com iluminação vertical onde mal se vê os olhos do atores - encerrou a carreira com uma péssima adaptação ianque de Dona Flor E Seus Dois Maridos e o chorumela Clara´s heart."

13 abril 2014

"Sol sobre a lama", de Palma Neto/Alex Viany

João Palma Neto, antigo feirante da Água de Meninos, sindicalista, marinheiro de longo curso, quando vê A grande feira (1961), de Roberto Pires, não gosta da maneira pela qual o filme aborda a questão da gigantesca feira e decide bancar um outro filme como resposta ou réplica. Com o dinheiro de sua poupança (naquela época não há a famigerada captação de recursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queiroz para a produção de Sol sobre a lama. Com eles, funda a Guapira Filmes (Schindller se associa a Iglú, empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia na Tela, para poder realizar os filmes da Escola Baiana de Cinema e há o surgimento, nesta época, de outras empresas - mas assunto para outro tópico). Corre o ano de 1962 e a idéia de Palma é que a fita seja colorida, e com recursos mais sofisticados. Escreve a história, baseada em suas experiências (diz-se que o personagem Valente, interpretado por Geraldo D’El Rey é ele próprio), e confia o roteiro ao carioca Alinor Azevedo (que tem a assinatura nos roteiros de alguns excelentes filmes como Assalto ao trem pagador, e Cidade ameaçada, ambos de Roberto Farias, Um ramo para Luísa, de J.B.Tanko, entre outros.) Alinor faz o screenplay de Sol sobre a lama com outro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinema brasileiro perde, pois morre num desastre automobilístico. Ambicioso, pretensioso, João Palma Neto quer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água de Meninos (que, como numa premonição, é incendiada, um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, e seus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim, acanhada, a princípio, embora hoje imensa.). Não vê, Palma Neto, nenhum diretor em Salvador capaz de desenvolver as imagens em movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinor e Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está a lançar Tocaia no asfalto, e Glauber Rocha está já no Rio, a lançar o Cinema Novo e a preparar a produção de Deus e o diabo na terra do sol.

Palma chama o conceituado crítico carioca, e também cineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano, Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente da revista O Cruzeiro em Hollywood. De volta ao Brasil, adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmes e a escrever nas páginas dos jornais. Um crítico, inclusive, chega a taxá-lo de "inimigo número 1 do cinema made in Hollywood", apesar de, nesta meca, ter permanecido por muito tempo a gozar de suas delícias.

A maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a sua extenuante pesquisa que se transforma, em 1959, no livro Introdução ao Cinema Brasileiro, editado pelo Instituto Nacional do Livro (várias vezes reeditada, uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta, apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejam sob a influência do neorrealismo italiano, possuindo um certo pioneirismo na abordagem da problemática social brasileira, é fraco, não sustenta bem uma narrativa. O fiasco total, e canto de cisne desesperado, está, muitos anos depois, em A noiva da cidade, cujo roteiro original é de autoria de Humberto Mauro. O filme, no entanto, um anti-musical, é indefensável.

Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e acha que Alex Viany é o realizador ideal para o desenvolvimento imagético de Sol sobre a lama. Quando chega a Salvador, Viany, homem genioso, está fascinado pelo cinema japonês, e tenta, no comando direcional, dar um tom nipônico do ponto de vista cinematográfico à baianidade que se requer de Sol sobre a lama. Realizado em 1963, mas somente lançado (em noite de festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, o resultado final, contudo, não agrada Palma. A briga com Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versões de Sol sobre a lama. A versão do diretor e a versão do produtor.

O argumento gira em torno da tentativa feita por burgueses gananciosos para acabar com a Feira de Água de Meninos. A complicar a situação, e, com isso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu ancoradouro, a impedir qualquer abastecimento. Os feirantes, desesperados, lutam pela abertura do ancoradouro para fazer voltar o abastecimento. Dois líderes se apresentam para solucionar o problema. Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grande interpretação) propõe a ação violenta (uma espécie de Chico Diabo de A grande feira) dos feirantes para que invadam, na raça, o ancoradouro, reabrindo-o. Outro líder, no entanto, Valente (Geraldo D'El Rey, Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e o Manoel de Deus e o diabo na terra do sol), que vende material de construção, é a favor de acertos conciliatórios com poderosos políticos e a uma campanha na imprensa local em favor da volta à normalidade. Uma ação, portanto, junto aos poderes constituídos para a resolução do conflito.

Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estudo sociológico sobre cinema brasileiro intitulado Brasil em tempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedade através de alguns filmes nacionais representativos, dá importância na sua análise a Sol sobre a lama e escreve: “Em vez de malhado superficialmente, o filme deveria ter sido discutido mais abertamente, pois condensa toda uma tática errada, premissas sociológicas falsas e idealistas que caracterizam um longo período da vida da sociedade brasileira. Sol sobre a lama pode ser considerado como um dos mais significativos testemunhos de toda uma política que fracassou.”

A fotografia é de Ruy Santos (que dois anos depois viria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapoã, Onde a terra começa, baseado em conto de Máximo Gorki, com Irmã Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geraldo D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, Milton Gaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, Carlos Lima, Garibaldo Matos, Doris Monteiro (a cantora que trabalha com Viany em Agulha no palheiro e, na certa, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha, Lídio Silva. Com música de Pixinguinha e Vinicius de Morais. O teatrólogo João Augusto funciona como diretor da segunda unidade.

09 abril 2014

"Nasce uma estrela" reinventa o CinemaScope

A Warner lançou no mercado um DVD duplo - já há algum tempo e parece que está esgotado - contendo a versão restaurada de Nasce uma Estrela (A Star is Born, 1955), de George Cukor, com interpretações inexcedíveis de Judy Garland e James Mason. Quando do lançamento do filme nos anos 50, a Warner, por achar excessivo um musical com três horas de duração, cortou 27 minutos, desfigurando, com isso, esta obra-prima. Há pouco mais de dez anos, um abnegado pesquisador do American Film Institut pediu ajuda à Academia de Artes e Ciências de Hollywood a fim de que esta solicitasse à Warner uma permissão para que o pesquisador desse uma busca nos depósitos da companhia. Atendido ao pedido, este começou a procurar e acabou por encontrar os 27 minutos cortados. Estragados, precisou restaurá-los, ficando três minutos apenas em fotos fixas pela impossibilidade de revivê-los no celulóide. Esse DVD duplo, portanto. é uma preciosidade, pois o resgate de um filme extraordinário, que assinala a maior interpretação de Judy Garland no cinema. Ela, na época, estava profundamente depressiva - sempre dependendo de álcool e barbitúricos e, para conseguir trabalhar no filme, fez um esforço enorme para se livrar das drogas. Tem um desempenho maravilhoso como Vicky Lester, a cantora que, descoberta por Norman Mailer (James Mason, soberbo), ator famoso de Hollywwod, e que se apaixona por ela, ascende ao estrelato enquanto Mailer, derrotado pelo alcoolismo, vê a sua decadência. Enquanto ela sobe, ele cai. É a segunda versão - e a melhor - dessa história - a primeira, dos anos 30, foi feita por William Wellman, com qualidades inegáveis já que este diretor era um especialista, mas a terceira, de Frank Pierson, com Barbra Streisand, de 1975, é um lixo. 

O cinemascope, que a Fox introduzira em 1953 em O Manto Sagrado (The Robe), mas que já havia sido inventado pelo francês Henri Chrétien há algumas décadas, não tinha ainda sido utilizado com um propósito estético e linguístico determinado até que Cukor fizesse Nasce uma Estrela. O cineasta revolucionou o cinemascope e mostrou uma utilização extraordinária de sua amplitude retangular em função do tecido dramatúrgico. O que pode ser verificado no número no qual Garland conta a sua trajetória - um dos maiores e melhores da história do cinema, que dura 18 minutos e foi, na versão anterior, cortado pela Warner, mas que na cópia do DVD está completamente restaurado. É preciso, porém, que a versão do DVD contemple toda a extensão da tela anamórfica, ou, então, seja formatado. Tudo em A Star is Born é uma promoção do encantamento, da beleza, apesar do tom trágico do final. É um filme sobre a mise-en-scène e, também, sobre o drama do alcoolismo, que se estende, aqui, para o drama da própria condição humana. 

Por pensar em Nasce uma estrela, há filmes que podem ser vistos em DVD sem perder, por assim dizer, a sua 'aura'. E outros que, no disquinho, são maltratados, perdem a sua integridade, havendo interferência no espaço da totalidade de seus enquadramentos. A experiência de se estar numa sala escura, e de ver um filme na tela grande, é fundamental. Quando se assiste ao DVD, há, no processo de comunicação entre a emissão e a recepção, 'ruídos indesejáveis - a pequenez da tela, pessoas que passam, o telefone que toca, um familiar que pergunta, que fala etc. No 'texto' imagético propriamente dito, há os problemas da diminuição e da preparação psicológica daquele que vê o vídeo. Numa sala escura, o espectador prepara-se para ela. É verdade que existem os aficionados mais atentos - como este comentarista - que, por respeito à obra cinematográfica e porque acha que toda atenção é pouca, não assistem ao vídeo em sala de estar familiar, reservando-se para a calada da noite, quando todos estão nos braços de Morfeu. E podem ficar, sozinhos, a fruir o espetáculo. Mas como se ia dizendo, há filmes que satisfazem em vídeo e outros que são destruídos. Exemplos: filmes realizados em planos fechados e que se passam em interiores podem ser vistos em vídeo. Já obras que exploram grandes espaços, têm muitos planos gerais e de conjunto são prejudicadas na fita magnética. E existe o problema do filme originariamente filmado em cinemascope. Como sentir 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, na pequenez do aparelho doméstico? É simplesmente impossível. Neste caso, tem-se, apenas, uma idéia do filme. 


Se não fosse pelo aparelho de DVD, o cinema do pretérito somente poderia ser visto em cinematecas. E como aqui na Bahia não existem estas, o baiano ficaria a ver navios. Se, por um lado, a visão de um filme em digital não se pode comparar à sua contemplação na sala escura de um cinema, por outro, o cinéfilo tem a oportunidade de ver em  DVD - em alguns casos - quase toda a obra de um realizador importante, de estudá-la, de repetir as cenas, as seqüências, etc. Há, no mercado, quase três dezenas de fitas de Alfred Hitchcock. A nova geração, sem o advento do vídeo, estaria condenada a desconhecer grandes e imprescindíveis clássicos do cinema. Além do DVD, uma perspectiva se abre com as televisões a cabo e por assinatura que possuem canais especializados em filmes bons e importantes, funcionando como verdadeiras cinematecas. Já passou o tempo em que se faziam sacrifícios memoráveis para se ver um filme por acaso perdido no circuito. 

06 abril 2014

O lobo de Wall Street

The Wolf of Wall Street

Comentário crítico do Professor Jorge Moreira sobre o último filme de Scorsese.
Atualmente, me parece que existem poucas dúvidas que o cineasta Martin Scorcese é um dos grandes conhecedores do universo cinematográfico estadounidense, isto é,  de um conjunto de elementos,  instrumentos, e  técnicas que são fundamentais para a produção e realização fílmica nos EUA. Desde esta perspectiva, o filme The Wolf of Wall Street,  é mais uma prova da grande capacidade e  habilidade de Scorcese para dirigir filmes de sucesso dentro da grandiosa escala ampliada de produção da industria cultural e do entretenimento do capitalismo estadunidense.
Um dos âmbitos onde se pode observar essas qualidades  está na elaboração dos elementos da forma fílmica do filme The Wolf of Wall Street. Como ilustração desta capacidade podemos mostrar dois elementos da forma fílmica que são sabiamente explorados por Scorcese neste filme: 1) o uso destacado do comentário voice-over do protagonista Jordan Belford (algumas vezes Jordan até aborda  a própria câmera de cinema narrando diretamente suas façanhas na construção de uma companhia de investimento corrupta e voraz) funciona eloquentemente para destacar o abuso de poder (sem limites) e a arrogância (extrema) do capitalista Belford que o personagem representa; 2)  o ritmo frenético do filme trata de duplicar a estonteante velocidade da circulação do dinheiro e do capital via especulações e apropriações indevidas, dentro do mercado de capitais e do sector financeiro dos EUA.
A história do protagonista Belford (adaptada do livro autobiográfico de Jordan Belford) evoca  a forma da novela picaresca espanhola, um género literário da maior importância na história da literatura ocidental, pois tem funcionado para expressar, entre muitas outras coisas, a luta de indivíduos das classes subalternas para medrar nas  sociedades divididas hierarquicamente em diferentes classes sociais.
O filme contem um conjunto de características que pode-se associar ao género comédia grotesca, do qual procura obter  a risada superficial e fácil de espectador  pouco exigente. Mas se analisarmos o filme de Scorcese desde a perspectiva de uma ideologia contra hegemónica, muito dessa alegria de primeira impressão se desmancharia porque, entre outras coisas, também é  possível observar que o filme de Scorcese celebra, gratuitamente, a honestidade  duvidosa e muito questionada pela sociedade, do  U.S. Federal Bureau of Investigation (FBI). 
Fundada e dirigida pelo poderoso Edgard Hoover (considerado hoje como um dos mais corruptos ex-funcionários dos EUA), a representação do FBI como o espaço do exercício da eficiência, da honradez, da honestidade e da justiça é simplesmente  ridícula. Para os que estão bem informados sobre a história das instituições ligadas à Secretaria de Justiça dos EUA, nada poderia  provocar (contra a apologia de Scorcese) mais risadas. Sem ir muito longe, poderíamos perguntar a Scorcese,  quais são (foram) os resultados das investigações do FBI  sobre os escandalosos assassinatos de John F. Kennedy, do seu irmão Robert Kennedy, de Martin Luther King Jr., de Malcom X, por exemplo.
Mas  o objetivo de Scorcese de criar um estilo e tonalidade de comédia grotesca no filme é parcialmente frustrado, na minha opinião, pelas cenas de violência explicita cometidas por Jordan Bedford e associados contra os subalternos: 1) contra o empregado homossexual que é acusado de roubar 20.000 dólares da casa do patrão; 2) contra a segunda esposa de Belford, quando este trata de raptar a filha para tirar vantagens  do jogo destrutivo de poder entre ele e a esposa no negócio (business) do divórcio  entre eles.  No geral, o filme mostra, direta ou indiretamente, a crueldade e a violência psicológica dos dominadores contra todos os subalternos.
Mesmo que Scorcese trate de amortizar a violência do protagonista contra a  mulher e o homossexual (coisa difícil para um diretor viciado em ganhar muito dinheiro com a frequente exibição da violência dos seus filmes), o espectador ainda poderá deduzir que o uso da violência explicita pelo protagonista contra estes dois tipos de subalternos, não pode ter sido um fato ocasional ou casual. Muito pelo contrário, o espectador poderá deduzir que a violência implícita e explícita do personagem é uma das vias “normais” para a acumulação e concentração do capital pelo capitalista estadounidense, ou seja, é uma das vias preferidas para  centralizar a riqueza  humana nas mãos dessa minoria exploradora e absolutamente inescrupulosa.
Se comparo o filme The Wolf of Wall Street com o documentário Inside Job, poderia afirmar que depois de assistir Inside Job e constatar (mesmo reconhecendo limitações ideológicas deste documentário) o papel obsceno e destrutivo das  autoridades do governo e dos representantes do capital financeiro nos EUA,  eu não teria a menor necessidade de assistir The Wolf of Wall Street,  pois o filme de Martin Scorcese não acrescenta ou ensina nada de significativo sobre o tema da apropriação indevida do dinheiro dos investidores pelos lobos de Wall Street.
Assim, o filme The Wolf of Wall Street poderia ser identificado como mais uma narrativa de Scorcese para monumentalizar um bando de  indivíduos sociopatas,  psicopatas, mafiosos e criminosos que tem assegurado a riqueza, o sucesso e a  glória pela utilização da voracidade e violência animalesca do dominador, do egoísmo sem limite do explorador e do individualismo feroz do opressor. Mas o filme de Scorcese também poderia ser  identificado como  mais uma impotente narrativa incapacitada para denunciar o sistema capitalista, como o maior responsável pela produção destes monstros funcionais na reprodução da nossa atual sociedade. E uma das evidèncias dessa impotência do filme é a sua incapacidade de apresentar sequências  de cenas (nem sequer uma sequència em todo o filme) mostrando o resultado destrutivo das ações de tipos como Jordan sobre as vítimas deste sistema baseado nesta gigantesca apropriação fraudulenta. Assim, o filme, fica reduzido a exibir exclusivamente  um dos polos  da luta social,  escondendo, anti-dialeticamente, a situação do polo oprimido da luta de classes dentro do capitalismo.
      O poder político de indivíduos como Jordan Belford e o poder de sua psicologia individualista sobre a sociedade somente poderiam ser denunciados se o filme também mostrasse o ponto de vista das vítimas dessas operações ilegais que são premiadas pelo capitalismo. Assim, o filme de Scorcese  é incapaz não somente de mostrar  o ponto de vista das  vítimas que foram prejudicadas diretamente pela ações de Jordan Belford e seus associados como também é incapaz de mostrar o gigantesco prejuízo que eles causam direta e indiretamente a milhões e milhões de trabalhadores desempregados, explorados e oprimidos pelo sistema capitalista nos EUA.
Em sínteses, me parece necesseario afirmar que acabo cansado e aborrecido de assistir a esse tipo de filmes. Eles apresentam e narram o sucesso de indivíduos inescrupulosos (verdadeiras excrescências sociais) mas não se preocupam em denunciar o tipo de sistema económico-social que produzem e promovem estes tipos de excrescências a mais alta posição hierárquica dentro da sociedade capitalista. Em poucas palavras, o filme The Wolf of Wall Street apresenta a psicologia individual como base explicativa para a absurda atuação desses indivíduos na sociedade, mas é incapaz de apresentar os fatores sociais, econômicos e políticos que explicariam porque estes personagens  são produtos bem sucedidos do sistema capitalista.

Assim a ausência, no filme de Scorcese, de cenas mostrando o funcionamento de um sistema social fundado na propriedade privada dos meios de produção e de vida (cujo objetivo e móvel fundamental é produzir lucros, juros, dinheiro e riqueza para esta classe de proprietários) impede que o espectador compreenda que é devido a lógica do sistema capitalista que determina e demanda a existência e funcionamento bem sucedido desta classe de indivíduos nos EUA. Somente através da falta de denuncia do sistema socioeconómico capitalista (fundado na divisão de classes sociais e na exploração, opressão e exclusão da maioria dos seres humanos da riqueza social), tipos inumanos como Jordan Belford (o protagonista de filme) podem também ser bem sucedidos e glorificados num filme como The Wolf of Wall Street.