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01 dezembro 2013

O Processo de (des)integração social em quatro filmes brasileiros

Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos
Terra em transe, de Glauber Rocha

O Processo de (des)integração social em quatro filmes brasileiros: “Vidas secas”, “Deus e o diabo na terra do sol”, “Terra em transe” e “Cidade de Deus”

Por Jorge Moreira (Professor, Ph.d, em Wisconsin, Estados Unidos)

Este texto foi inicialmente lido pelo autor na conferencia de  NCCLA (North Central Council of Latin Americanists), realizado em Setembro de 2013m  na University of Wisconsin-Stevens Point.

O Brasil (de acordo aos dados de 2011) é o país com a sexta maior economia do mundo capitalista, e, por sua vez, é um país em que o crescimento das favelas e da violência urbana tem sido uma realidade em desenvolvimento nas suas grandes cidades. O discurso oficial nacional, ideologicamente hegemônico (propagado pelo governo, pela grande média, pelas agências e secretarias de turismo, pelos consulados brasileiros no exterior, pela FIFA ), enfatiza a cara rica e bem-sucedida do país do futebol e da Copa do Mundo de 2014, mas esconde e/ou deixa de mencionar a outra cara da realidade brasileira: a cara da pobreza, da fome, da miséria, fenômenos socioeconômicos que são geradores do processo de migração rural-urbana, e da consequente formação de favelas, do desenvolvimento do narcotráfico e da radicalização da violência nas grandes cidades brasileiras.
Afortunadamente, ainda existem espaços socioculturais, onde pode-se observar a presença de discursos contra-hegemônicos, discursos que questionam o discurso oficial e opõe-se à ideologia da classe dominante (neoliberal e/ou populista e social-democrata) dentro do sistema capitalista brasileiro. Entre esses espaços contra-hegemônicos, se encontra especialmente, o que foi iniciado, faz mais de 40 anos, pela produção cultural do “Cinema Novo”, e que tem sido responsáveis pela elaboração (direta ou indireta) dos discursos de resistência do cinema nacional à dominação capitalista neoliberal e imperialista no Brasil.
                Assim, gostaria ressaltar a importância deste espaço da produção cultural do cinema brasileiro, revisitando quatro exemplos de discursos contra-hegemônicos bem realizados no Brasil. Comentarei quatro filmes que teem sido colocados, por um setor da crítica brasileira e internacional, como símbolos da imprescindível discussão nacional sobre os temas: da concentração da terra e do ingresso nacional; do aumento da migração rural-urbana e do crescimento das favelas, do desenvolvimento da violência e do narcotráfico nas grandes cidades brasileiras. Como sabemos, a representação desta realidade sócio-econômico-cultural pelas narrativas ficcionais (tanto na literatura, no cinema e nas outras artes), foi sistematicamente censurada e reprimida pelo poder da ditatura militar, que durante 21 anos destroçou culturalmente o Brasil.
Os quatro filmes que passarei a comentar são: Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em transe de Glauber Rocha e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Penso que estas quatro representações mostram que o discurso institucional que afirma a realidade da "integração nacional", acaba por ser exatamente o oposto: uma mitologia discursiva elaborada para esconder os graves problemas da corrupção, da fragmentação e da desintegração da identidade nacional por via da dominação, da exploração, da opressão, da discriminação e da exclusão da maioria da população brasileira dos benefícios logrados pelo aumento da riqueza nacional que tem sido produzida pelas classes trabalhadoras do Brasil:
Vidas secas é um filme brasileiro de 1963 dirigido pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos. O roteiro está baseado no romance do mesmo nome do escritor brasileiro Graciliano Ramos. Vidas Secas conta a história de uma família de imigrantes nordestinos que pressionado pela seca e pela miséria,  tem de empreender uma longa caminhada a procura de meios para matar a fome e sobreviver no sertão. O inicio do filme mostra uma família de quatro pessoas caminhando pelo leito de um rio seco: Fabiano, o pai, sinhá Vitória, a mãe, dois filhos menores e um cachorro chamado Baleia. Depois de caminhar por muitas léguas (quilômetros) pelo rio seco, a família chega a um casebre dentro de uma fazenda que parece abandonada.
Quando a chuva chega no sertão, reaparecem as pastagens e o Coronel Miguel, proprietário das terras (uma fazenda) onde se encontra a família de Fabiano, retorna ao local trazendo a sua boiada (cabeças de gado). Quando o coronel descobre que a família está vivendo nas suas terras decide expulsa-los, mas Fabiano fala que é bom vaqueiro e que pode ajudar a cuidar do gado além de realizar vários serviços na fazenda. Vendo a oportunidade de explorar e tirar vantagem do vaqueiro, o proprietário Miguel permite que Fabiano e sua família trabalhem e vivam na fazenda. Fabiano e a família esperam prosperar com o trabalho realizado nas terras do patrão: Sinhá Vitória sonha em possuir uma cama de couro e Fabiano imagina que será capaz de comprar umas cabeças de gado com o dinheiro que sobrar do seu trabalho. Quando Fabiano, depois de meses de trabalho, aparece na casa do patrão pra “acertar” as contas, Fabiano é enganado e roubado pelo coronel Miguel. Assim, ao fim de um quase um ano de labuta e sofrimento, Fabiano e sua mulher se dão conta de que, apesar de todo o trabalho realizado nas terras do coronel, a pobreza continuará sendo a “seca realidade” da família. Quando a seca retorna, Fabiano, a mulher e os dois filhos se encontram, no final do filme, na mesma situação do início do filme: pressionados pela seca e pela miséria, eles terão de emigrar, mais uma vez, na esperança de encontrar uma sorte melhor na vida.
 Neste ponto, gostaria de comentar uma sequência de cenas que me permitirão fazer uma pequena analise sociológica da representação das relações sócio-econômica-cultural, destacando o campo semântico através dos termos (signos) que funcionam como as coordenadas essenciais do filme do Nelson Pereira.
A sequência de cenas destaca a relação de opressão socioeconômica entre o coronel (dono das terras, do gado e de gente) e o vaqueiro Fabiano. Fabiano (o polo dominado e explorado), chega à casa do coronel (o polo dominador e explorador) para “acertar as contas” referentes ao seu trabalho de vaqueiro, mas durante o “acerto das contas”, o coronel paga-lhe menos dinheiro do que era devido. Percebendo a injustiça, o erro, e/ou engano, Fabiano reaciona falando pro coronel que a sua mulher Sinhá Vitoria, que sabe contar, tinha feito as contas, e as contas do patrão estavam erradas, que a quantia de dinheiro que o coronel estava dando-lhe não correspondia ao que ele tinha ganhado. Ai o coronel não gosta do questionamento de Fabiano, fala que as suas contas estão certas, e implicitamente Fabiano fica ameaçado de perder seu trabalho. O vaqueiro aceita o dinheiro que o patrão lhe paga e sai desmoralizado da casa do coronel. Ou seja, dentro das relações de propriedade, de dominação e de exploração estabelecida pelo sistema de propriedade na área rural, o coronel tem direito de abusar de Fabiano, legitimando o nível de opressão que estava já estava implico no início do “acordo” (contrato verbal de trabalho) entre o coronel e o vaqueiro.
Se colocarmos nossa atenção não somente nas imagens em movimento mas no campo semântico do filme Vidas Secas, podemos obter um campo semântico (sem intenção de esgotá-lo)  formado pelos oposições campo/cidade; fome/fartura; pobreza/riqueza; proprietário/não proprietário; dominado/dominador; explorador/explorado; injustiça/justiça social que articuladas permitirão a compreensão da globalidade do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme brasileiro de 1964, escrito e  dirigido pelo cineasta Glauber Rocha. O filme tem sido considerado por parte da crítica nacional e internacional como uma das obras-primas do cinema novo e nacional  e um exemplo fundamental da “Estética da Fome”.
Este filme conta a história do vaqueiro Manuel e sua esposa Rosa que vivem uma vida extremamente dura no sertão, trabalhando para o coronel Morais. Mas Manuel tem um plano: ele quer usar todo os recursos obtidos na futura partilha de gado para comprar um pedaço de terra para ele e Rosa. No entanto, quando Manuel leva o gado para a cidade, alguns animais morrem na estrada. Quando chega o momento da partilha , o coronel Morais diz que não vai lhe entregar nenhuma cabeça de gado , porque as vacas que morreram ao longo do caminho pertenciam a Manuel.   
Inconformado, Manuel questiona a arbitrariedade e a injustiça do coronel Morais contra ele. Mas o coronel Manuel não tolera questionamentos e pegando o chicote, começa a chicotear Manuel. Indignado e cheio de raiva, Manuel se revolta e mata o coronel com seu facão. Logo, Manuel tem que fugir da perseguição dos capangas de Coronel. Manuel e sua esposa abandonam a casa onde moravam e decide se juntar ao grupo religioso liderado pelo profeta negro (o santo Sebastião) que procura encontrar o  caminho do paraíso depois da morte. Ele profetiza que o “Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão”. Incomodados pela presença dos fanáticos de Sebastião, os latifundiários e a igreja católica decidem contratar o jagunço Antônio das Mortes para perseguir e matar a Sebastião e a todos os seus seguidores.  
Mas, antes de Antônio das Mortes chegar ao local para matar Sebastião, Rosa, numa reação contra o santo por haver sacrificado (assassinado) uma criança recém nascida no altar de uma igreja,  assassina Sebastião com o punhal usado para o sacrifício. Agora, Manuel e Rosa ficam sem alternativa, e, mais uma vez, terão que fugir para evitar serem assassinados por Antônio das Mortes. Assim, Manuel e Rosa se juntam ao grupo de cangaceiros liderados por Corisco e sua mulher Dadá .
Não vou continuar narrando o filme, mas existe uma sequência de cenas que eu gostaria de comentá-la sucintamente: 
O vaqueiro Manuel se encontra com o coronel Morais para “acertar as contas” (fazer a partilha das cabeças de gado). Manuel informa-lhe que algumas vacas morreram por mordidas de cobras.  O coronel diz ao vaqueiro que não tem nenhuma conta para acertar porque todas as vacas que foram mordidas de cobra pertenciam a Manuel. Este reage dizendo que as vacas mortas tinham a “marca do ferro”  dele. O coronel  não aceita as evidências e tratando de impor  sua autoridade fala:
”Já disse e está dito. Você não tem direito a vaca nenhuma e a lei está comigo.”
Manuel não aceita a autoridade do que foi dito pelo coronel e responde: “Que lei é essa que não protege o que é meu?” O coronel Morais com a “dignidade” supostamente ofendida, retruca. “Tá me chamando de ladrão?” Manuel desabafa: “foi o senhor que falou”. Então o coronel Morais agarra o chicote e começa a chicotear o vaqueiro impondo o seu poder: “Isso é pra você apreender”. Manuel, reage tira seu facão da algibeira e mata o coronel a golpes de facão. Assim, a revolta do vaqueiro Manuel (a diferença do vaqueiro Fabiano) contra a dominação e exploração do coronel Morais acaba na morte do dominador e explorador.
Apesar dos paralelismos de algumas situações e processos comuns (similaridades) aos dois filmes, existem entre Vidas Secas e Deus Diabo na terra do Sol, algumas diferenças que transformam o filme de Glauber, na minha opinião, numa concepção/realização muito mais complexa e profunda (tanto temática quanto formalmente) que o filme Vidas Secas. Enquanto neste, a relação de dominação e exploração se limita a relação entre o coronel Miguel e o vaqueiro Fabiano, entre o policial e Fabiano, em Deus e o Diabo na Terra do Sol a relação de dominação e exploração incluem  não somente a relação entre o coronel Morais e vaqueiro Manuel, mas também as relações de dominação e exploração entre o Santo Sebastião e o povo devoto, entre a igreja e os coronéis de um lado e Sebastião, os cangaceiros e Antônio das Mortes do outro. Incluem também a relação de dominação e exploração entre Corisco, o chefe dos cangaceiros e o vaqueiro Manuel.   
Assim, se colocarmos, nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, podemos obter um campo semântico (sem intenção em esgotá-lo) que se parece ao de Vidas Secas, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; proprietário/não proprietário; dominador/dominado, explorador/explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições tal como conformismo/rebelião; povo/classe média; fanatismo/religião oficial; coronel/jagunço, coronel/cangaceiros, que articuladas às anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Terra em Transe é um filme brasileiro de 1967, também escrito e dirigido por Glauber Rocha. Os filmes Terra em Transe e Deus e o Diabo na Terra do sol são considerados duas obra primas, como os melhores filmes não somente do “Cinema Novo”, mas de toda a história do cinema nacional brasileiro.
O filme (narrado numa forma complexa não linear) conta a história do poeta, jornalista e o jovem político Paulo Martins (Jardel Filho),  num país imaginário (Eldorado) que se encontra dividido entre as forças políticas do senador Porfírio Diaz (um político colonialista / imperialista) vendido à multinacional Explint, e as forças políticas do governador Vieira (um político demagogo e populista).
Depois de abandonar seu amigo Porfirio Diaz, Paulo Martins deixa a capital de Eldorado e vai para a província de Alecrim. Neste local, Paulo começa a acreditar no discurso reformista do político Vieira e com a ajuda de Sara, uma ativista do Partido Comunista, decide trabalhar para eleger Vieira como governador do estado, na esperança de que Vieira usaria o poder conquistado para defender os interesses do povo oprimido ( Felício e camponeses ) do local.
Após a vitória de Vieira, Paulo é atrelado pelo governo populista, mas pouco a pouco toma consciência da demagogia, da corrupção do governador e seus aliados. Pleno de contradições, Paulo começa a agir desesperadamente contra o poder fascista do ex-amigo Porfirio Diaz e contra o populismo do governador Vieira. Para se fortalecer, Paulo Martins faz um pacto político com Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), um empresário, supostamente representante da burguesia nacional, mas Fuentes entra no dilema: apoiar politicamente governador Vieira ou o senador Porfirio Diaz.  
Apesar de sua retórica nacionalista, Júlio Fuentes traciona as forças políticas ligadas a Paulo Martins e se associa ao capital estrangeiro apoiando o golpe militar fascista liderado por Porfirio Diaz. Paulo Martins, ainda tenta convencer o governador Vieira a resistir e lutar contra o golpe militar, mas o governador, covarde, se recusa a usar o poder para tomar uma decisão em benefício do movimento popular progressista.  
O filme Terra em Transe pode ser lido como uma alegoria da história do Brasil e de seu povo durante os anos da crise política que conduziu o país ao golpe militar de 1964 e a subsequente ditadura militar que foi imposta ao Brasil por 21 anos. Assim, a narrativa fílmica trata de representar, através  dos diversos personagens, as diferentes forças e tendências políticas que foram decisivas no Brasil daquele período. O filme faz uma crítica complexa de todos aqueles agentes e forças que participaram do processo político que conduziu o projeto popular ao fracasso, incluindo os vários movimentos da chamada esquerda brasileira, entre os quais se encontrariam os que atualmente estariam sendo representados pelas presidências de Fernando Henrique Cardoso e o PSDB e de Lula da Silva e o PT.
Não vou continuar narrando o filme, mas gostaria de comentar uma sequência de cenas que, na minha opinião, é muito importante para entender o tipo de relações de poder (as relações políticas de caráter populista), que se produzem e reproduzem sistematicamente e que parecem que levarão muitos anos para  serem superadas no Brasil.
A sequência de cenas mostra o governador eleito Vieira (acompanhado por Paulo Martins, seguranças e policiais) descendo o morro de uma favela brasileira para se encontrar com Felício (o líder grupo de agricultores) que, na posição oposta, vem subindo o mesmo morro (acompanhado da  esposa e um grande grupo de agricultores pobres, moradores da favela). Sem grandes efeitos visuais , o poder da sequência está, além da posição espacial dos personagens, na apresentação do espaço e no movimento da câmera: por um lado, a câmara mostra a amplidão do espaço ilimitado da nação brasileira, em oposição ao pequeno espaço restrito onde se processa o diálogo entre o governador e o camponês Felício. O movimento da câmera (aproximando-se e afastando-se dos personagens) ressalta as posições de poder dos dois grupos no espaço da negociação, através de detalhes significativos , como quando o governador Vieira ordena (com um sinal feito com sua cabeça e seu olhar) que os policiais isolem o líder Felício do resto do grupo de agricultores e, assim, enfraquecer o líder na negociação política que virá. Esta sequência também expressa a luta e a contradição de sentimentos latentes em ambos os lados. O jogo entre o claro/escuro da sequência de cenas, também evidencia o desconforto e angústia da confrontação. A colocação do governador Vieira e seu grupo no topo da colina sugere a posição de superioridade e a vantagem inicial que o grupo no poder trata de assegurar antes de enfrentar o grupo de agricultores.
O conteúdo e motivo do (des)encontro é manifestado no diálogo que desmascara a manipulação populista e a falta de caráter do governador e seus colaboradores quando (precisando de votos para ganhar a eleição) prometeram aos moradores da favela a regularização das terra ocupadas. Nesta aliança política, o povo acreditava que Vieira e seu grupo (quando chegassem ao poder) realizariam alguma forma de justiça social que lhes beneficiaria.
A seqüência finaliza quando o poeta Paulo Martins sentindo-se "ofendido" pela força de verdade das palavras de Felício (que questiona a honestidade política do governo), intromete-se no diálogo e começa a ameaçar o agricultor por ter "faltado ao respeito" ao governador. Paulo diz: "respeite o governador, Felício". Para se defender da arrogância de Paulo, a fala de Felício refere-se ao envolvimento do poeta no mesmo tipo de desonestidade política. Felício fala: "Dr. Paulo, o senhor prometeu ... Dr. Paulo” ... “Dr. Paulo, Você era meu amigo”... "Irritado com a verdade das palavras de Felício, Paulo, recorrendo à violência que o poder legitima, derruba e golpeia o líder dos agricultores, negando na fala, a promessa que tinha sido feita anteriormente, ao povo agricultor. "Eu não lhe prometi nada” , diz Paulo.
Se colocarmos, a nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Terra em Transe, podemos obter um campo semântico (sem intenção em esgotá-lo)  que se parece ao de Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; ; proprietário e não proprietário; dominador e dominado, explorador e explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições tal como arte/política; honestidade/corrupção; capital estrangeiro/nacional; imperialismo/nacionalismo: sociedade civil/ditadura militar; violência do estado/violência ante estado; populismo/neofascismo; povo, classe média, classe dominante; que articuladas as anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global e mais completa da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
Cidade de Deus é um filme brasileiro dirigido por Fernando Meirelles. O roteiro está baseado no romance do mesmo nome do escritor brasileiro Paulo Lins. O filme concentra-se no processo de crescimento da marginalidade social nas favelas brasileiras e nas guerras que se desenvolvem entre as quadrilhas rivais e as forças armadas do Brasil, pelo domínio e controle do trafico de drogas na “Cidade de Deus", uma favela do Rio de Janeiro. O filme é narrado numa forma não linear e utiliza diferentes técnicas de edição e  tomadas de câmera.
Baseado na realidade , o filme Cidade de Deus conta a história de três gerações de delinquentes que vivem na favela ao longo de quase 30 anos, entre os anos sessenta e oitenta. A realização do filme  foi condicionada pelas relações de poder que sustentam o submundo marginal: os cineastas tiveram que buscar a aprovação e cooperação do chefe da favela para filmar na sua área de influencia, além de proporcionar condições de segurança adequadas para realizar as filmagens .
Desde uma perspectiva sócio-histórica, o filme Cidade de Deus representa acontecimentos que ocorreram num grande período de tempo, durante a vigência da ditadura militar que assolou o Brasil por 21 anos. O filme inicia-se com a primeira geração de bandidos formados por 3 jovens desempregados (Cabeleira, Alicate e Marreco, conhecidos como “o trio ternura”) que assaltam o caminhão de gás para obter dinheiro, mas é com a geração de Bené (irmão mais jovem do assassinado Cabeleira) e seu amigo Dadinho/Zé Pequeno que  a Cidade de Deus torna-se famosa pela produção  de criminosos terríveis ligados ao trafico de drogas. O jovem Buscapé (irmão mais jovem do assassinado Marreco), o narrador da história, procura evitar o trabalho criminoso, tornando-se um fotógrafo profissional para um jornal da cidade. À medida que o tempo passa, a Cidade de Deus se converte no espaço do tráfico de cocaína, do homicídio, da delinquência juvenil, da corrupção policial e da venda das armas  moderníssimas produzida por Israel e pelos EUA. As armas que são vendidas pelos policiais aos bandidos são os frutos da ajuda militar dos EUA à ditadura militar brasileira.
O ritmo acelerado do filme, facilmente consegue a atenção de um público jovem, apesar de sua extensão e diversidade de personagens e das histórias entrelaçadas. O filme começa mostrando as galinhas vivas sendo cortadas e cozinhadas para o almoço da banda do Zé Pequeno. Uma galinha foge e é perseguido pelos bandidos armados da quadrilha de Zé Pequeno (Dadinho). Durante a perseguição da galinha, eles encontram com o fotógrafo Buscapé, que acredita que a banda quer matá-lo. Então, num longo flashback, o filme representa as memorias do fotógrafo desde muitos anos atrás: ao tempo em que ele, Dadinho e Bené ainda eram crianças. Neste tempo, o grupo de três jovens ladrões, Alicate (irmão de Buscapé) , Cabeleira ( o irmão de Bene ) e Marreco , conhecido como Trio Ternura , aterroriza as empresas locais com vários ataques a mão armada. Como um moderno Robin Hood, eles compartilham dinheiro e tanques de gás roubados com os moradores da favela, que por sua vez, lhes protegem. Vários meninos idolatram o Trio. Um dos meninos, chamado Dadinho (futuro Zé pequeno) convence o Trio Ternura a roubar um motel. A banda concorda com o plano, com a condição de que não devem matar ninguém. Enquanto o Trio Ternura está assaltando os casais amorosos sem tiros, Dadinho(Zé Pequeno ), decide unilateralmente matar os ocupantes do motel. O assalto termina em chacina e chama a atenção da polícia e as consequências trágicas para o Trio Ternura: Cabeleira é assassinado pela polícia ao tentar fugir com sua namorada, Alicate é assassinado por Dadinho e Marreco entra pra igreja.
O tempo passa e alguns anos depois, enquanto Buscapé se junta a um grupo de jovens (da classe média carioca do bairro da Tijuca), que gostam de fumar maconha, Dadinho muda o seu nome para Zé Pequeno e, com seu amigo de infância Bené, estabelece um poderoso centro de distribuição de drogas. Zé Pequeno, na ambição de ser o único fornecedor de drogas da favela, inicia a guerra para assassinar os competidores inimigos. Consegue eliminar a todos os bandos inimigos, com exceção do bando de Cenoura, um amigo do seu sócio Bené.  Quando Bené decide abandonar o negócio da droga e é assassinado na sua festa de despedida, Zé Pequeno, decide prolongar a guerra e exterminar o bando de Cenoura. A guerra fica ainda mais trágica, quando Zé Galinha (um ex-exímio atirador do exército brasileiro) decide entrar para o bando de Cenoura para vingar o assassinato de dois familiares e a violação de sua noiva por Zé Pequeno. A luta se transforma numa guerra de extermínio quando Tio Sam, fornece (diretamente para os bandos inimigos de Zé Pequeno e Cenoura) as moderníssimas armas produzidas por EUA e Israel.
Não vou continuar resumindo o roteiro do filme, mas vou comentar sucintamente duas sequências de cenas que nos que permite associar o aumento da violência e das guerras nas favelas brasileiras à ditadura, a corrupção militar e ao imperialismo dos EUA e Israel.
A primeira sequência de cenas mostra na boca do Zé Pequeno ao Tio Sam tratando de vender-lhe  um pesado baú cheio de armas moderníssimas. Zé pequeno pergunta-lhe pela arma AR-15 que lhe havia encomendado. Tio Sam não tem a arma desejada por Zé Pequeno mas trata de enrolar e vender-lhe os outros tipos de armas tão mortíferas quanto a desejada por Zé Pequeno. Este se reta com a enrolação do vendedor,  expulsa Tio Sam da sua boca de fumo, apropriando-se das armas sem pagar-lhe um tostão por elas. 
A seguinte sequência de cenas mostra Tio Sam dentro de uma viatura policial explicando para o chefe dos policiais como as armas  foram tomadas por Zé Pequeno. O diálogo revela a relação entre eles, levando o espectador a  tomar consciência de que Tio Sam é apenas o mediador da venda de armas, o verdadeiro fornecedor das armas (produzidas por EUA e Israel) é a policia militar, já que as armas são tomadas da ajuda militar dos EUA à ditadura brasileira. A sequência finaliza com o chefe dos policiais assassinando o vendedor Tio Sam.
Quase no final, o filme apresenta Buscapé olhando os dois conjuntos de imagens que conseguiu  fotografar, sem ser visto: o primeiro conjunto de fotos mostra quando os policiais recebem dinheiro de Zé Pequeno em troca da sua liberdade; o segundo conjunto mostra o corpo de Zé Pequeno cravado de balas de revólver.
Dividido entre os dois conjuntos de fotos, Buscapé revela seu dilema: por segurança pessoal, vai publicar somente a foto do Zé Pequeno assassinado, mas num monólogo interior questiona: “Zé Pequeno já não vai chatear mais... e a policia? Em poucas palavras, ficando livre do poder dos bandidos, quem nos livrará  do poder dos militares? Chico Buarque cantava numa música: “Chame o ladrão”.
Assim, se colocarmos, nossa atenção não somente nas imagens em movimento, mas no campo semântico do filme Cidade de Deus, podemos obter um campo semântico (sem intenção de esgotá-lo)  que tem paralelismos ao de Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, mas  que  vai além das oposições campo e cidade (sertão e mar); fome e fartura; pobreza e riqueza; proprietário e não proprietário; dominador e dominado; explorador e explorado; injustiça e justiça social. Podemos incluir oposições como honestidade e corrupção polical; estrangeiro e nacional; imperialismo e nacionalismo: sociedade civil e ditadura militar; violência do estado e violência antiestado; populismo/neofascismo; marginal/povo/classe média/ classe dominante; desemprego/tráfico de drogas; guerra/paz;  que articuladas as anteriores permitirão uma compreensão ainda mais global e mais completa da realidade nacional e do processo de migração rural/urbana, do crescimento populacional nas cidades, do nascimento das favelas, e do crime organizado.
                Para finalizar, gostaria de destacar que a representação da realidade nacional brasileira pelo discurso artístico contra hegemônico influenciado pela literatura nordestina, pelas ciências sociais e pela crítica marxista da sociedade capitalista quase que desapareceu da produção cultural, devido à censura, à perseguição pela ditadura militar que foi imposta ao Brasil pelo golpe de 1964.
Porem ainda existem brasileiros que sabem que um discurso artístico (cinema, literatura, teatro) e crítico influenciado pela estética marxista deve responder a algumas questões: como a arte deve refletir a sociedade? Como a arte deve se constituir numa crítica da sociedade? Como a arte deveria prever uma sociedade utópica ideal e emergente? E este discurso era contra o discurso hegemônico e oficial da classe dominante do Brasil.
O declínio e ofuscação dos discursos críticos influenciado pela estética marxista está relacionado com a proliferação das ditaduras de direita (de corte neofacista) implantadas no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Chile durante os anos 60 e 70 da nossa história latino americana.  Como sabemos, um dos objetivos fundamentais da implantação de ditaduras de direita impostas pelo imperialismo de EUA  foi destruir o discurso marxista, o discurso revolucionário, mesmo que  para isso tivesse que destruir os agentes (sujeitos humanos) portadores desse discurso.
                Assim, durante os anos de vigência das ditaduras, os militares prenderam, sequestraram, torturaram e assassinaram a dezenas de milhares de militantes políticos, de estudiosos das ciências sociais, de investigadores científicos, de pedagogos, intelectuais e artistas cujo pensamento eram influenciados pelo marxismo.
Os militares estabeleceram o medo e o horror na nossa cotidianidade, queimando livros, invadindo campus universitário, censurando obras teatrais, filmes nacionais, poemas e letras da música popular brasileira(MPB). Por outro lado, para destruir aos simpatizantes do discurso marxista, tiveram de fazer uso não somente das metralhadoras e das balas, mas também de grandes somas de dinheiro para captação de professores e estudantes, para concessões de bolsas de estudo, para a criação de programas de pós graduação, para fundar novas cátedras e financiar novos editoriais para livros, revistas e jornais com seus  suplementos culturais, e seus programas televisivos como o da TV Globo.  Assim, podemos afirmar que enquanto alguns intelectuais marxistas revolucionários, como o cineasta Glauber Rocha, por exemplo, tiveram que fugir do Brasil para conseguir sobreviver no exilio, outros intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso, recebiam financiamento da fundação Ford e da CIA para fundar centro de estudos, publicar revistas e captar intelectuais de esquerda para a defesa do reformismo social democrata.  (Vejam o artigo do jornalista Sebastião Nery sobre o envolvimento de FHC com a CIA, em  http://tribunadaimprensa.com.br/?p=29078).
Dessa forma, os órgãos de espionagem como a CIA  e as montanhas de dólares dos EUA, foram usados para neutralizar a dissidência, captar consciências críticas e fabricar o consenso  requerido para continuar com a dominação e exploração capitalista neoliberal e imperialista.
                Durante e depois do período da ditadura militar, apareceram os discursos inócuos do estruturalismo, do pós-estruturalismo e do pós-modernismo. E enquanto estas suas ideias e ideologias foram muito bem recebidos no Brasil capitalista neoliberal, o discurso marxista foi completamente marginalizado do país, ao longo de varias décadas, por quase 40 anos. Dado que os discursos pós-estruturalista e pós-modernista, celebravam a “fragmentação”, a “dispersão”, os “micro relatos” e os “micro poderes”, estes discursos foram instrumentalizados para ajudar o discurso hegemônico a se posicionar dogmaticamente contra o discurso marxista resultante  do estudo e da investigação da “totalidade do modo de produção capitalista” com suas articuladas relações sociais fundadas na “dominação”, na “exploração” e  “opressão” do capitalismo imperialista (globalização).
Por isso, é necessário e urgente que as novas gerações possam ver ou rever os filmes brasileiros sobre a nossa realidade econômico social como os quatro mencionados.  Acredito que estes filmes poderão ajudar a tomar consciência da existência de discursos culturais alternativos que foram cancelados pela ditadura militar: discursos culturais contra-hegemônicos que ajudarão a aumentar o conhecimento e a resistência dos brasileiros tanto à globalização capitalista neoliberal, como às políticas culturais propagadoras da ideologia populista, reformista e pós-moderna,  como por exemplo, a propaganda do Governo e da FIFA em torno a realização da Copa Mundial de 2014 no país do futebol. Chegou a hora de que as novas gerações de brasileiros possam promover mais uma vez (“levanta, sacode a poeira e dar volta por cima”), um  pensamento político, sócio-econômico-cultural de corte transformador do Brasil: o pensamento dialético  marxista-revolucionário.

27 novembro 2013

Odete Lara

Entre todas as atrizes brasileiras, a que mais me fascina é Odete Lara, talvez porque este fascínio venha da infância, quando ainda em tenra idade comecei a ver seus filmes e me fixei, garoto, na sua forte personalidade, na sua extraordinária presença, e na sua singular beleza de mulher. 

Quando comecei a ir ao cinema, em meados dos anos 50, a maioria dos filmes brasileiros que via era constituída de chanchadas. A primeira impressão forte de Odete Lara, apesar de meus 8 anos, veio de Absolutamente certo (1957), deliciosa comédia de costumes dirigida por Anselmo Duarte, que considero, sem medo de errar, um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos. Odete num número musical, nos estúdios da televisão onde o personagem principal, Zé Lino, interpretado por Anselmo Duarte vai pela primeira vez se apresentar para fazer um teste.

Não perdi, desde então, Odete Lara de vista. E a vi no papel de Júlia em Uma certa Lucrécia, de Fernando de Barros (1957), em Dona Xepa, de Darcy Evangelista, Moral em concordata (1959), de Fernando de Barros, e, de repente, Esse Rio que eu amo (1960), de Carlos Hugo Christensen, quando, pela primeira vez, recebo uma Odete Lara colorida dentro do cartão postal da ex-Cidade Maravilhosa. Evidentemente que, naquela época, não tinha em mente os diretores dos filmes citados, ainda que, num caderno colegial, fosse de anotar os filmes vistos. 

O menino que se queria já um adolescente vivia lendo em Cinelândia sobre a sua grande atriz, e esperando o seu próximo filme. Que vieram: Cacareco vem aí (1960), de Carlos Manga, Na garganta do diabo (1960), de Walter Hugo Khoury, Dona Violante Miranda (1960,. de Fernando de Barros, e o desconhecido Sábado a la noche. Interessante observar que Odete Lara fazia um filme atrás do outro, sem parar, considerando que somente em 1960, quatro longas metragens.

Mas Odete ainda se revelar mais em Mulheres e milhões (1961), thriller de Jorge Ileli, onde tem mais oportunidade de mostrar os seus encantos. E, principalmente, em 1962, quando domina a cena de quase todas as sequências de As sete Evas, de Carlos Manga. A seguir: Bonitinha mas ordinária (1963) de J. P. de Carvalho.

Mas quero aqui apenas registrar a minha predileção por Odete Lara entre todas as atrizes brasileiras de todos os tempos. E não fazer a sua filmografia. Mas é preciso registrar a Odete Lara essencial, e ela se encontra, perfeita e acabada, em Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khoury, um dos grandes momentos do cinema brasileiro, Copacabana me engana (1968), obra de estréia na direção de Antonio Carlos Fontoura que viria a lhe dirigir depois em A rainha diaba (1973). E a Odete Lara enfurecida, em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), de Glauber Rocha, que, vestida de roxo, esfaqueia com quase duas dezenas de golpes de faca Hugo Carvana em momento antológico do cinema brasileiro.

Sim, Odete Lara é única, ainda que tantas as belas e boas atrizes que o Brasil possui. 

Publicado originariamente no site Mulheres do Cinema Brasileiro, de Adilson Marcelino

24 novembro 2013

Apenas um cinéfilo


Comecei a escrever comentários sobre cinema de maneira mais sistemática em agosto de 1973, quando fui contratado pelo jornal Tribuna da Bahia para uma coluna diária sobre os lançamentos dos filmes em exibição na cidade. Tinha, nesta ocasião, 23 anos, mas, antes, já escrevia acerca das coisas da sétima arte bissextamente no suplemento cultural, de papel azul, do Jornal da Bahia, e uma experiência no Jornal da Cidade, uma publicação que saía aos domingos e que dedicava uma página inteira ao cinema. De tipo tabloide, o Jornal da Cidade, que não teve vida longa, significou, na verdade, a minha estréia como comentarista.

Na Tribuna da Bahia, entre 1974 e 1994, vinte anos, portanto, tive uma coluna diária, de sol a sol, inclusive quando, nos anos 80, foi implantada uma edição aos domingos. A partir de meados dos anos 90, por injunções jornalísticas internas e, também, pela indisposição com o cinema contemporâneo, que já dava sinais de esgotamento, passei a escrever apenas uma vez por semana.

Assim, a tomar como ponto de partida o ano de 1973, tenho 40 anos como colunista de cinema na Tribuna da Bahia. Mas, durante estas décadas, publiquei textos em revistas e outras jornais. De vez em quando, no suplemento cultural de A Tarde, na extinta Revista da Bahia, e, entre outros trabalhos, elaborei alguns verbetes para a Enciclopédia do Cinema Brasileiro (organizada por Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda para a editora do Senac), entre outras publicações e participações em eventos e seminários vinculados ao estudo da arte do filme. Em 1979, ingressei, como professor da área de cinema, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, que ainda se chamava Escola de Biblioteconomia e Comunicação, a reunir, num único prédio, os dois departamentos.

O cinema, disse uma vez Orson Welles, morreu em 1962, e seu último filme foi O homem que matou o facínora (The man who shoot Liberty Valance), de John Ford. O realizador de Cidadão Kane falou isso a Peter Bogdanovich, que o entrevistava para um livro. Espantado com a resposta, Welles disse que o apogeu do cinema vai de 1912 até 1962, cinquenta anos. E acrescentou: um apogeu maior que a Renascença, que teve apenas trinta e oito anos. O cinema, portanto, para Welles, a partir de 1962, entra numa fase de perigeu. O que concordo plenamente.

Acontece que se o cinema teve a sua primeira projeção oficial em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris, e os seus inventores proclamados foram os Irmãos Lumière, ainda que muitos pesquisadores em outros países estivessem prestes a conseguir a projeção de filmes, o fato é que a linguagem cinematográfica ainda não havia sido descoberta. Havia o cinema sido inventado, e a possibilidade de se projetar, numa superfície plana, imagens em movimento. Mas tudo era registrado com a câmera parada, plano fixo, não se sabia que ela poderia se movimentar. A descoberta dos elementos determinantes da linguagem cinematográfica foi sendo feita aos poucos. Assim, o americano David Wark Griffith, em 1914/1915, considerado o pai da narrativa cinematográfica, é o realizador que soube reunir e sistematizar, com eficiência dramática, os elementos da linguagem que foram sendo inventados entre 1895 e 1915, vinte anos, portanto, para a construção de uma linguagem.

Se Griffith, com O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914), e Intolerância (Intolerance, 1916), contribui com um impulso importante para o desenvolvimento da narrativa, a linguagem, no entanto, ainda tinha muito o que conquistar. Pode-se dizer que a linguagem cinematográfica foi sendo enriquecida e construída durante a primeira metade do século passado e que adquiriu, por assim dizer, uma cristalização em meados dos anos 60 ou, como quer Orson Welles, em 1962.

A era dos grandes inventores de fórmulas, dos grandes inventores do cinema, já acabou. Atualmente o cineasta se utiliza de uma linguagem já configurada e resta, a ele, articular os seus elementos com remota possibilidade de inventá-la. Ou reinventá-la como fez Jean-Luc Godard, na prodigiosa década de 60, em Acossado (A bout de soufflle), Uma mulher é uma mulher (Une femme est une femme), O demonio das onzes horas (Pierrot, le fou), entre outros, ou Alain Resnais em Hiroshima, mon amour e O ano passado em Marienbad. Alguns ensaístas da arte do filme chegam a dizer que este último é, a rigor, o derradeiro filme de invenção da história do cinema.

O cinema perdeu o seu status político. Com a crise dos anos 70, a perda de público para as outras opções de lazer, e a descoberta do filão infanto-juvenil por Hollywood, o cinema se infantilizou tematicamente. Os filmes atuais oriundos da indústria cultural são obras quase matemáticas na construção de seus sentidos e de seus efeitos. Os personagens, destituídos, de alma, são como títeres ou marionetes movidos pelo ritmo da ação.

Se, antigamente, ia ao cinema todos os dias, hoje sou muito seletivo. Vou de vez em quando para ver obras de algum realizador que venha a me interessar. Mas nunca com a constância do passado. A crise, patente, se reflete, creio, em todas as artes.

Se encontrasse, jovem, quando iniciei a minha carreira de comentarista, o cinema que se vê atualmente, não teria sido um escrevinhador das coisas da sétima arte. O cinema contemporâneo é medíocre demais para atrair pessoas e as tornar fiéis, criar a habitualidade, a cinefilia. Até o jornalismo cultural, que tinha alguma substância, vive atualmente muito restrito (quando existe) sem a disponibilidade para acolher textos copiosos. Tudo é feito através de colunas curtas, que sejam rapidamente absorvidas. Há quem disse que a nova geração não lê, mas escaneia com os olhos.

A decadência dos grandes suplementos culturais, e a emergência do império do audiovisual, determinaram a falência da crítica de cinema impressa. Com as exceções de alguns (raros e poucos) críticos (e que podem assim ser chamados) do sul do país, a crítica cinematográfica praticamente desapareceu dos jornais diários. Mas, por outro lado, ela está a se frutificar na internet, com a explosão dos blogs, dos sites, que acolhem verdadeiras revistas eletrônicas de cinema.

Mas o que se pode observar, sempre se tendo em vista as exceções de praxe, é que o chamado crítico de cinema que atua no espaço virtual se caracteriza por um fervor excessivo pelo cinema, uma espécie assim de cedeefismo pelo objeto. Se, por um lado, demonstra conhecimento do assunto que aborda, por outro lhe falta uma cultura humanística, uma visão crítica do mundo, um background. O sujeito deixou de ser importante nas últimas décadas para dar lugar ao estudo das estruturas.

Existem, grosso modo, quatro tipos de críticos de cinema: o ensaísta, que se caracteriza pela erudição e desenvolve sua análise do filme com os recursos de sua memória, a realizar um discurso sobre um objeto determinado, mas livre para o exercício de seu pensamento sem a camisa-de-força da metodologia acadêmica; o ensaísta deve ter sempre uma visão de mundo e uma visão de cinema; já o crítico propriamente dito possui uma maneira própria de fazer a sua exegese, a apresentar, sempre, um conhecimento da arte do filme em sua linguagem e em sua estética; o comentarista é aquele que discorre sobre a obra cinematográfica segundo as suas impressões; o resenhista, por sua vez, é apenas um orientador como guia de consumo.

Sobre poderem contribuir para o enriquecimento do pensamento cinematográfico, as dissertações e teses acadêmicas estão presas à já citada camisa-de-força metodológica. Se o analista tem bagagem, o estudo tem valor, mas, caso contrário, amarga ao leitor o desprazer do acompanhamento de suas linhas. As dissertações e teses, contudo, não se configuram como críticas de filmes, e se apresentam mais como estudos analíticos de determinados aspectos do filme ou deste em relação a alguma abordagem sociológica, semiótica, antropológica, histórica, etc.

Ensaístas de cinema foram Paulo Emílio Salles Gomes, Walter da Silveira, Francisco Luiz de Almeida Salles, Davi Arriguci Jr (embora este último seja mais ligado à literatura), entre muitos outros. Críticos, e com C maiúsculo, Antonio Moniz Vianna, Rubem Biáfora, José Lino Grunewald, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Ely Azeredo, entre tantos!

Na minha trajetória de colunista sempre me considerei um comentarista, ainda que, vez por outra, tenha assumido a crítica. Fazer uma coluna diária de jornal é uma tarefa que não dá margem a um pensamento mais cristalizado e maduro acerca do que se viu, pois há a pressa de se ver o filme e bater o texto para a entrega imediata. O fator psicológico também influi e já aconteceu de ter incorrido em erro de apreciação por não estar bem quando da visão de um filme (uma dor de cabeça, uma gripe, uma indisposição qualquer, uma consumição, etc)  e, pelos ossos do ofício, ter de elaborar um comentário para a coluna do dia seguinte.

20 novembro 2013

Mostra completa de Walter Pinto Lima em São Paulo

Chico Drummond se ajoelha frente a Antonio Conselheiro interpretado pelo ator baiano Carlos Petrovich
O Cine Olido (Av. São João, 473 - São Paulo), entre os dias 19 e 26 de novembro, homenageia, com a projeção de toda a sua filmografia, o realizador baiano José Walter Pinto Lima, cineasta, artista plástico e gestor cultural. É uma grande oportunidade de se conhecer o seu pensamento cinematográfico, a sua maneira de ver o mundo, estando no mundo das imagens em movimento. Walter Lima pensa em cinema desde os anos 60, quando acompanhou as filmagens do clássico O carroceiro, de Ney Negrão, e participava ativamente do Geiciba, grupo de estudos sobre a arte do filme fundado em 1965. Realizou, em sua trajetória, vários curtas, e foi pioneiro na criação do vídeo-experimental com Brasilienses (em parceria com o saudoso Carlos Vasconcelos Domingues), registrado no já desaparecido U-Matic. Tem dois longas: Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão e Um vento sagrado, este último um documentário sobre Agenor Miranda Rocha (Pai Agenor), um dos mais importantes nomes do candomblé no país. Com fotografia de Mario Cravo Neto, o filme é resultado de pesquisas realizadas pelo diretor ao longo de três anos em São Paulo, Salvador e Roma. É de ressaltar que Walter Lima, quando à frente da Coordenação da Imagem e Som, promoveu, para os cinéfilos baianos, uma excelente programação cinematográfica na Sala Walter da Silveira e Cinema do Museu, oferecendo aos soteropolitanos as últimas novidades do cinema contemporâneo e a exibição de clássicos e filmes-faróis (retrospectivas de grandes nomes da cinematografia etc). Em 2005, criou o Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual (que passou a se chamar Cine Futuro), mas que, inexplicavelmente, pela inércia dos patrocinadores da dita cultura, não pôde ser realizado no ano em curso já no ocaso, criando, com isso, imensa lacuna na programação cinematográfica dos baianos interessados em ver um cinema mais criativo e alternativo. Entre os seus curtas, O alquimista do som, documentário feito em 1978, sobre Walter Smetak, um dos poucos registros que se tem sobre a figura do grande músico e instrumentista que está, em 2013, fazendo o seu centenário. Publico abaixo um comentário que escrevi quando do lançamento de Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, no circuito nacional.

Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, de José Walter Lima, sobre ser um filme genuinamente baiano, não corrompe a sua baianidade com propostas desvinculadas de suas raízes culturais, pois é uma obra que incursiona no universo de Canudos e de seu líder máximo. O discurso cinematográfico de José Walter Lima, porém, vincula-se mais a um cinema de poesia (na tradição glauberiana e, mesmo, pasoliniana), caracterizando-se por ser um filme mais voltado para a retórica do que para a fabulação. Na sua estrutura narrativa, materiais de origens diversas se conjugam com esta finalidade. Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões aproveita, em grande parte de sua narrativa, um material dramático e ficcional realizado há duas décadas, que é complementado por imagens tomadas recentemente. O que poderia dar ao filme uma feição desconjuntada resultou no oposto, tornando-se, no discurso poético, um elemento a mais da sua produção de sentidos, considerando que, no cômputo geral, há um passado (a história do Conselheiro e a sua luta desesperada) e um outro passado (um pretérito que se espraia como um pretérito do próprio cinema baiano). A presentificação do filme vem da montagem contemporânea. E o filme de José Walter Lima, justamente por não se ater a uma linguagem discursiva dentro dos moldes tradicionais da narrativa, toma um voo poético e retórico que retoma, em certo sentido, o cinema declamatório de um Glauber Rocha. As torrentes verbais da fala do Conselheiro são transpostas de um tempo passado para suscitar um impacto nos tempos atuais, um impacto de uma guerra sem fim que se tornou um ponto de referência na História do Brasil: a guerra de Canudos, tantas vezes estudada por pesquisadores, como adaptada para o cinema e televisão e até mesmo assunto principal de um livro de Mario Vargas Llosa.
Por ser um tema conhecido, e talvez mesmo batido, os prognósticos poderiam estar contra o filme de José Walter Lima, mas, surpreendentemente, o realizador baiano sai pela tangente da mesmice (como fizera Sergio Rezende emA guerra de Canudos, uma superprodução que se perdeu no próprio tempo, ou os inúmeros documentários que apreciam Canudos em sua caturrice cinematográfica) para, fugindo da caturrice, situar-se como obra que promove o discurso à condição de mola propulsora da narrativa fílmica. O espectador que o contempla deve fazê-lo com os olhos de um espectador que ouve um discurso sendo proclamado e, ao mesmo tempo, contempla imagens pictóricas. A diegese perde, nesse particular, a condição de univocidade para se diluir num passado quase marienbático.
Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, segundo longa metragem de José Walter Lima, não é uma obra cinematográfica para ser apreciada por quem procura os modelos tradicionais da narrativa fílmica. É um filme que se situa em outros parâmetros de construção, rasgando o evoluir dramático griffithiano (de David Wark Griffith, pai da narrativa clássica com O nascimento de uma nação/The birth of a nation, 1914), para se situar como filme-poema, discurso apoteótico, e barroco, em torno de Antonio Conselheiro. 
O filme começou a ser rodado há mais de vinte anos, mas circunstâncias de ordem econômica determinaram-lhe a paralisação. Somente no ano retrasado, o autor resolveu tentar solucionar os obstáculos, para, aproveitando o material já filmado, dar a seu trabalho um acabamento final. Inconcluso há décadas atrás, Walter Lima precisou filmar novas cenas com a finalidade de concluir o longa. Várias dificuldades, porém, se interpuseram, como o fato de vários atores já terem morrido durante o período, inclusive Carlos Petrovich, que faz o papel principal, o de Antonio Conselheiro. E Álvaro Guimarães, o Moreira César, entre outros.
Na apreciação de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, nota-se diferenças na qualidade da fotografia, pois o desgaste pelo tempo tirou as características originais da iluminação de Vito Diniz (que também já faleceu). Há, portanto, um contraste entre o que foi filmado no pretérito e o que foi filmado no presente. À primeira vista, o fato poderia prejudicar a uniformidade da obra, constituindo-se num defeito de estrutura, todavia o default se transforma em estética. Mas o discurso apoteótico, no entanto, não enfatiza verossimilhanças no corpus estrutural, mas solicita, inclusive, a fragmentação de sua narrativa que pode ser lida em três níveis: a história em si de Antonio Conselheiro massacrado pelas tropas do exército; a collage de fragmentos diversos numa perspectiva mais de retórica do que de lógica; e, também, num subtexto, a exaltação da memória como elo não perdido e, por extensão, a memória de um tempo que excede o da ação para se encontrar um tempo da história do próprio processo de criação cinematográfico do cinema baiano.
A utilização do cinema de animação na descrição das batalhas, por exemplo, dá uma idéia da estrutura de Antonio Conselheiro, o taumaturgo dos sertões, como uma estrutura fragmentária, e, com isso, desloca o centro nevrálgico do discurso da opacidade em função da transparência. O autor não se intimida com a urgência do brado, e, no seu filme, a estrutura da fragmentação dá o tom da irrealidade para que a retórica prevaleça sobre os conflitos básicos e se estabeleça uma poética: a poética que é específica do cinema. O tênue limite que separa o documentário da ficção se parte, estilhaça-se, e, por assim dizer, explode na narrativa do filme, mais acentuada de um propósito poético-retórico do que propriamente descritivo.
O espectador que não está acostumado a um cinema de poesia pode até recusar, a princípio, as diretrizes da mise-en-scène de Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertões. E não seria, por acaso, um filme dentro do filme? Há, neste particular, uma metalinguagem que se faz sentir na história de Canudos e no processo de criação do filme. Na evocação do mitológico Conselheiro, José Walter Lima procede a uma espécie de delírio de imagens e sons. E confirma, neste tour de force, a assertiva de que o cinema é uma estrutura audiovisual.
Há muitas décadas no batente cinematográfico, José Walter Lima é um homem de mil instrumentos, pois, além de realizador, é produtor cultural e cinematográfico (é o principal organizador do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual), acaba de produzir, em parceria, um filme internacional, Ilha Dawson, do chileno Miguel Littin, exerceu, durante muito tempo, a coordenação do DIMAS da Fundação Cultural do Estado da Bahia e, justiça se lhe faça, na sua melhor fase. No campo estritamente cinematográfico, o de fazer filmes, escreveu vários roteiros com seu amigo e parceiro Carlos Vasconcelos Domingues (de saudosa memória) e realizou, soloO alquimista do som (documento raro sobre o músico de vanguarda Walter Smetak), Nós, por exemplo, entre outros. O filme sobre Canudos começou como uma proposta de média metragem, O império do Belo Monte, que se estendeu como um longa.
Não se poderia deixar de destacar a contribuição de Carlos Vasconcelos Domingos, parceiro de José Walter Lima na elaboração do roteiro e no acompanhamento das filmagens primeiras. Seria, de fato, o co-diretor do filme não tivesse a morte ceifado-lhe a vida. No elenco, Carlos Petrovich, um dos atores baianos mais consagrados, faz o personagem título, com a sua pachorra habitual; Harildo Deda, outro ator marcante da história do teatro baiano. Mas muitos dos intérpretes já desapareceram, a começar mesmo do principal, Petrovich. Assim como Álvaro Guimarães (o autor de Caveira, my friend, no papel de Moreira César), Wilson Mello, Haydil Linhares. Entre outros, comparecem o sempre talentoso Bertrand Duarte (o padre de O homem que não dormia e O Superoutro, de Edgar Navarro), Leonel Nunes, Chico Drummond, Passos Neto, Iami Rebouças, Ari Barata, Júlio Goes, Jorge Gaspari, Alberto Luiz Viana, Nilson Mendes, Antonia Adorno. A fotografia do material filmado há vinte anos é de Vito Diniz (grande iluminador da maioria dos filmes baianos pós-ciclo), complementada pela luz de Pedro Semanovchi.
Há, também, em Antonio Conselheiro, o taumaturgo do sertão, uma plástica da imagem que desenvolve a temática por meio de uma profusão de cores, de grafites, de desenhos, de materiais diversos, em suma, aos termos da ação propriamente dita. A montagem, como já foi referida, segue o princípio da collage. E o espírito do Conselheiro permanece vivo nas imagens compostas pelo cineasta José Walter Lima.
Eis a programação completa:
17h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES 
21.11 | QUINTA
17h00 ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO
19h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO

22.11 | SEXTA
17h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
19h00 UM VENTO SAGRADO

23.11 | SÁBADO
15h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO
17h00 UM VENTO SAGRADO
19h00 ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO

24.11 | DOMINGO
15h00 O ALQUIMISTA DO SOM BRASILIENSES | SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
17h00 UM VENTO SAGRADO

26.11 TERÇA
17h00 NÓS, POR EXEMPLO METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO

FICHAS TÉCNICA E SINOPSES

NÓS, POR EXEMPLO
(Brasil, 1979, 10min, DVD). Dir.: José Walter Lima. Com Edgar Navarro, Marcia Vergner, Michel Argouges
+ 14 anos
Caminhando pelas ruas, um jovem protesta. Em seu apartamento, reflete sobre a alienação do homem tomado pelo desejo de consumo e propriedade. Grávida, sua companheira o avisa de que um perigo o espreita.
| Dia 19, 17h
| Dia 21, 19h
| Dia 23, 15h
| Dia 26, 17h
METEORANGO KID – HERÓI INTERGALÁTICO
(Brasil, 1969, 80min, DVD). Dir.: André Luiz Oliveira. Com Antonio Luiz Martins, Sonia Dias, José Wagner
+ 16 anos
Estudante universitário vaga sem destino pelas ruas de Salvador. Durante a viagem, atravessa a cidade tendo delírios libertários. Meteorango Kid – Herói intergalático é um dos principais representantes do cinema baiano de vanguarda dos anos 1960 e 1970. Em diálogo com as tendências artísticas da época – como a Tropicália e a contracultura – o filme revela os impasses da arte e do jovem brasileiro durante os anos de chumbo.
| Dia 19, 17h
| Dia 21, 19h
| Dia 23, 15h
| Dia 26, 17h
ANTÔNIO CONSELHEIRO – O TAUMATURGO DO SERTÃO
(Brasil, 2010, 86min, Blu-ray). Dir.: José Walter Lima. Com Carlos Petrovich, Harildo Deda, Leonel Nunes
+ 14 anos
A Guerra de Canudos e o embate entre dois de seus mitológicos personagens, Antônio Conselheiro, líder da comunidade, e o Coronel Moreira César, responsável por coordenar as tropas militares durante o massacre.
| Dia 19, 19h
| Dia 21, 17h
| Dia 23, 19h
O ALQUIMISTA DO SOM
(Brasil, 1978, 11min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Documentário sobre o músico Anton Walter Smetak (1913-1984). Nascido na Suíça, Smetak mudou-se para o Brasil em 1937, radicando-se em Salvador. Pesquisador de sons, criador de instrumentos musicais, escritor e escultor, também lecionou na Universidade Federal da Bahia. Foi professor de nomes importantes para a música brasileira, como Tom Zé.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
BRASILIENSES
(Brasil, 1984, 28min, DVD) Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Um vídeo-ensaio sobre aspectos diversos da cultura brasileira.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
SANTE SCALDAFERRI – A DRAMATURGIA DOS SERTÕES
(Brasil, 1999, 26min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Videoarte sobre o pintor, ator, gravurista, cenógrafo e professor Sante Scaldaferri (1928). Formado na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, Scaldaferri foi assistente da arquiteta Lino Bo Bardi. No cinema, trabalhou como cenógrafo em produções do Cinema Novo e como ator em filmes de Glauber Rocha.
| Dia 20, 17h
| Dia 22, 17h
| Dia 24, 15h
UM VENTO SAGRADO
(Brasil, 2001, 90min, DVD). Dir.: José Walter Lima.
+ 14 anos
Documentário sobre a trajetória de Agenor Miranda Rocha (Pai Agenor), um dos mais importantes nomes do candomblé no país. Com fotografia de Mario Cravo Neto, o filme é resultado de pesquisas realizadas pelo diretor ao longo de três anos em São Paulo, Salvador e Roma.
| Dia 22, 19h
| Dia 23, 17h
| Dia 24, 17h

17 novembro 2013

Nicholas Ray: o lirismo de um homem ferido

Nicholas Ray - cujo verdadeiro nome era Raymond Nicholas Kienzie - nasceu em Wisconsin em 1911. Se vivo estivesse, estaria com 102 anos. Mas morreu em 1979, aos 67, vitimado pelo excesso de álcool e cigarro. Fumava sem parar: um atrás do outro. Resultado: um virulento câncer no pulmão matou-o. Wim Wenders, seu amigo, registrou, em Nick's movie, os últimos suspiros de Nicholas Ray. Sua esposa, que esteve presente na abertura da mostra a ele dedicada, afirmou, em entrevista, que Wenders foi cruel com Ray ao registrar os derradeiros momentos do marido.
Formado pela Universidade de Chicago, em Arquitetura, chegou a trabalhar com o famoso Frank Lloyd Wright, um dos mais célebres arquitetos do século passado. Foi na casa dele, uma mansão suntuosa, que Alfred Hitchcock, em Intriga internacional, filmou a sequência na qual James Mason e seus capangas se reúnem nos momentos finais do filme e Cary Grant consegue se infiltrar. O aprendizado no trabalho com Wright deu a Ray o gosto pela plástica da imagem, pelo sentido da composição do enquadramento, pela disposição dos objetos e pessoas em cena. Um fotograma de um quadro fílmico em Ray, se porventura em cinemascope, não pode ser destruído pela exibição televisiva no horrendo full screen (tela cheia).

Raymond Nicholas Kienzie iniciou suas atividades artísticas quando já estourada a Segunda Guerra Mundial, fazendo programas de rádio para a CBS. Interessado pelo teatro, montou várias peças, nesse período, em colaboração com John Houseman (que fazia parte do Mercury Theatre de Orson Welles, produtor eficiente e soberbo ator). Assistente de direção de Elia Kazan em Laços humanos (A tree growns in Brooklin, 1945), aprendeu com o grande diretor de atores a maneira de lhes fazer emergir uma personalidade forte em cena. Em seguida, dirigiu para a televisão, em 1946, Sorry, wrong number - adaptação de uma obra teatral que inspirou logo o filme de Anatole Litvak Uma vida por um fio (1948), com Barbara Stanwick e Burt Lancaster. Dore Schary, o novo poderoso chefe de produção da RKO, insuflado por John Houseman, deu-lhe a direção de Amarga esperança (They live by night, 1948), que focaliza o drama de jovens sem esperança com um clima lírico que fizera habitual em sua obra. É então que Nicholas Ray se associa a Humphrey Bogart , que, convertido em produtor, é dirigido por Ray em uma de suas melhores criações: o advogado de O crime não compensa (Knock on any door, 1949), melodrama de denúncia social transcendido por uma penetrante descrição de ambientes e comportamentos. 

No silêncio da noite (In a lonely place, 1950), novamente uma associação com Humphrey Bogart, dá a Raymond Nicholas Kienzie a fama de um diretor acima da média no circuito hollywoodiano ao introduzir no relato uma reflexão sobre o próprio cinema. Bogart faz um roteirista amargurado com as engrenagens da indústria que, após alguns filmes de sucesso, entra em crise criativa. A estrutura narrativa toma a forma de um autêntico film noir, mas a concepção do próprio roteiro e a montagem permitem uma transgressão ao gênero. Contracenando com Bogart, Gloria Grahame, que viria a ser esposa de Ray.

Outra pérola do film noirCinzas que queimam (On Dangerous Ground, 1952) mostra o calvário de um detetive particular (Robert Ryan), que, desiludido com a escória reinante na cidade, é designado para investigar a morte de uma mulher no interior. E se apaixona, no intricado do enredo, por uma mulher cega (interpretada por Ida Lupino, que também foi diretora de filmes). Ward Bond (ator fordiano por excelência também está presente), assim como Ed Begley. Filme fascinante que não se esquece de maneira assim tão fácil.

Johnny Guitar (1953) é um western sui generis e, para muitos, o melhor filme de Nicholas Ray. O mais insólito e, talvez, o mais característico dos filmes deste diretor, constitui, para certa parte dos exegetas de Ray, uma continuação ideal deNo silêncio da noite: a história de um homem violento que deseja deixar de sê-lo e de uma mulher moralmente mais forte do que ele. Este contexto, dentro de uma fábula de evidente intenção antimaccarthista, permitiu ao autor desenvolver alguns de seus temas prediletos: a obsessão da violência, a inquietude da adolescência, a onipresença da morte, sem esquecer precisos matizes autobiográficos. Através de uma construção dramática inusitada - um plano-sequência inicial de 40 minutos de duração em um cenário único, a sala de jogos, expõe e enfrenta os personagens principais, Ray buscou um certo clima de exasperação lírica em todos os recursos de sua mise-en-scène, na estilização dos gestos e movimentos dos atores, no preciosismo dos diálogos, no insólito da cor (cujos defeitos técnicos foram utilizados habilmente com fins expressivos) e do cenário. Servido por uma admirável corte de intérpretes (entre os quais Sterling Hayden e Joan Crawford). E, finalmente, popularizado por um tema musical de grande êxito, Johnny Guittar foi um western feérico por excelência, que teve o mérito especial de inventar seu próprio gênero.

O lirismo do homem ferido se espraia em todos os filmes de Nicholas Ray, às vezes com mais intensidade, outras vezes com menos. Em Horizonte de glórias (Flying leathernecks, 1951), o cineasta abandona o cinema noir e o western para localizar a sua ação num campo de batalha. É a guerra o espaço onde os conflitos explodem. É bem de ver que Ray, ainda que trabalhando no cinema de gêneros, transcendendo-o para, nele, apor a sua marca, o seu pensamento, a sua visão de mundo, a sua filosofia de vida. O palco é o conflito do Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial. John Wayne é um major que assume o comando de um esquadrão de caças e encontra enormes resistências de seus comandados, entre eles Robert Ryan.

Antes de Johnny Guitar, Nicholas Ray incursionou num western em 1952 que não tem a notoriedade deste, mas é admirável: Paixão de bravo (The lusty men). Robert Mitchum (um ator de rara presença e personalidade cênica) fica machucado num rodeio e resolve voltar para a sua cidade natal. Arranja trabalho num rancho e se torna amigo de seu patrão, mas não estava no programa que se apaixonasse por Susan Hayward. Estabelece-se, então, o conflito e Ray injeta, nele, o seu constante lirismo do homem ferido. Também no elenco um ator coadjuvante, mas de extraordinário desenvolvimento interpretativo: Arthur Kennedy.

A filmografia de Nicholas Ray ainda revela muitas surpresas.  Em 1955, realiza o antológico Juventude transviada (Rebel without a cause), o primeiro longa de James Dean, que viria, depois, fazer ainda dois filmes (Vidas amargas, de Elia Kazan, e Assim caminha a humanidade, de George Stevens, antes de sua morte prematura num acidente automobilístico.

Jean-Luc Godard, num dos seus escritos no Cahiers du Cinema chegou a afirmar numa crítica a um filme desse cineasta: "O cinema é Nicholas Ray!" E o próprio disse que "o cinema é a melodia do olhar." Nicholas Ray é um dos mais importantes realizadores do cinema americano de todos os tempos. A revisão de seus filmes surge, portanto, como programa obrigatório para todos os cinéfilos que se prezam. 

Em 1955, Nicholas Ray realiza um de seus filmes mais admirados e que causou sensação entre os jovens dos anos 50, principalmente pelo aparecimento do ator emblemático James Dean, que, com sua morte prematura, viria a se tornar um mito ainda hoje celebrado. O filme, Juventude transviada (Rebel without a cause), reflete a angústia de toda uma geração de jovens, os rebeldes sem causa do título original, e seu argumento gira em torno de Jim Stark (Dean), um jovem que é obrigado a se transferir para outra cidade por ter sido expulso da universidade onde estudava. Atraído por uma jovem vizinha, Judy (Natalie Wood), entra na universidade local, mas não tarda em demonstrar, com os colegas mais rebeldes, seu comportamento inconformista. Provocado, Jim, apesar dos conselhos do pai, homem bonachão e dominado pela esposa, dispõe-se a um duelo de honra e, com seu rival, dois carros em alta velocidade precisam frear diante de um abismo. Durante o duelo, seu antagonista, Buzz (Corey Allen) acaba por cair no abismo e, em consequência, vindo a morrer. Os pais de Jim tentam impedi-lo que se apresente à polícia e ele se refugia com Judy em uma vila abandonada descoberta pelo jovem Plato (Sal Mineo). Há, na sequência em que os jovens estão na vila, um triângulo amoroso sui generis travado apenas pela troca de olhares que se configura numa expressão maior do cinema de Ray. 

Nicholas Ray concebe a ideia desse filme através da leitura de uma série de recortes de jornais sobre adolescentes inconformistas e, também, influenciado pelo mal-estar social muito em voga naquela época. Juventude transviada é considerado o mais completo e explícito sobre os problemas da adolescência entre as obras dedicadas ao assunto. Sua tonalidade peculiar se deve, principalmente, à excepcional identificação entre Jim Stark e seu intérprete, James Dean, arisco, de uma sensibilidade à flor da pele, e desamparado, "ambos desgarrados  pelo conflito entre o desejo de se entregar e o temor da entrega", como declara o próprio Nicholas Ray.

Jim Stark é o protótipo do adolescente solitário e difícil cujo drama nasce de uma inocência fundamental, levada até às últimas consequências, e que resulta na impossibilidade de aceitar os compromissos impostos por certa civilização, por uma determinada forma de viver. O êxito alcançado por Vidas amargas (East of Eden), de Elia Kazan, baseado em parte do romance de John Steinbeck, com a rica e complexa caracterização desse personagem, converte James Dean em símbolo de toda uma geração, originando um culto quase idolátrico que ainda perdura. Construído segundo uma linha dramática de uma sensibilidade de tragédia clássica e apoiado numa apresentação simples e direta de seus caracteres, Rebel without a cause se desenrola em um clima febril, delirante, específico dos filmes de Ray dessa etapa, que se resolve em várias sequências culminantes, momentos fortíssimos dentro da sua estrutura narrativa: a lição do planetário, que dá uma das chaves para a compreensão da obra; a chicken run, absurda prova de valor que se consuma como uma cerimônia pagã; a penosa e violentíssima explicação de Jim a seus pais; a admirável cena de amor na vila e o desolador desenlace. O emprego pela primeira vez do Cinemascope permite a Ray estimulantes experiências de composição, tendentes a dar uma ênfase lírica a certos gestos dos intérpretes. A sinceridade e honradez  extremas de seu enfoque fazem com queJuventude transviada não haja perdido, com o tempo, a sua atualidade, ainda que Ray aborde um delicado problema social em termos mais poéticos do que analíticos.

Alguns filmes que não tive a oportunidade de ver estão fora dessa trajetória de Ray (por exemplo: Fora das grades, entre outros). E também não há um propósito de esgotar a ficha filmográfica de Nicholas Ray. Mas, depois de Rebel without cause, o filme que mais se destaca é Delírio de loucura (Bigger than life, 1956), com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau, Christopher Olsen. Mason (sempre um ator impecável, fleumático) faz um professor que descobre sofrer de uma rara doença e aceita se tratar com uma droga ainda em experiência científica. Há uma recuperação e regressão na doença, mas o problema maior é que ele se vicia nela e seu comportamento familiar se torna insuportável com reações imprevisíveis. Ray também aqui adere ao Cinemascope, tela larga, cujo primeiro filme nesse processo anamórfico data de três anos antes: O manto sagrado (The rope, 1953). Bigger than life é uma obra de grande impacto no qual Ray desenvolve o violento enfrentamento dos impulsos espontâneos do indivíduo e das estruturas coletivas da vida norte-americana.

O filme a seguir é Quem foi Jesse James? (The true story of Jesse James, 1957), com Robert Wagner, Jeffrey Hunter, Hope Lange, Agnes Moorehead, John Carradine. É a história de Jesse James e sua trajetória como um dos mais temidos, ao lado do irmão, bandidos do oeste. Há, no filme, uma aguda análise do processo de conversão de um personagem pacífico e não contaminado que se transforma, de repente, condicionado pelo meio social, em um herói violento. Ray propõe, com claridade meridiana, sua concepção da violência revolucionária como única forma válida de se opor à violência impune da sociedade constituída.

Nesse mesmo ano de 1957, Amargo triunfo (Bitter victory), com Richard Burton, Curd Jürgens, Ruth Roman, Christopher Lee. Oficial recebe condecoração por bravura, mas a honraria se converte em insulto, porque o capitão que a indicou tem um affair com a esposa do oficial condecorado. Jornada tétrica (Wind across the everglades, 1958), com Burl Ives, Christopher Plummer, Peter Falk, tem sua ação localizada no século XIC. Nunca vi este filme, mas as críticas são entusiásticas. 

A bela do bas-fond (Party girl, 1958), com Robert Taylor, Lee J. Cobb, Cyd Charisse (as pernas mais bonitas de toda a história do cinema), John Ireland, Corey Allen, tem o galã Taylor como um advogado manco (um homem ferido) que é ligado a um chefe mafioso, mas ao se apaixonar por uma bailarina (Charisse) tenta sair do esquema de corrupção. O que não é nada fácil.

O filme que mais aprecio de Nicholas Ray, entre muitos outros, evidentemente, éSangue sobre a neve (The savage innocents, 1960). Adaptado do romance Top of the world, de Hans Ruesch, pelo próprio autor ao lado do italiano Franco Solinas, a ação se passa no gélido Ártico e mostra a vida de um esquimó (Anthony Quinn) com sua mulher (Yoko Tani). Há alguns momentos que fazem lembrar a obra-prima de Robert Flaherty Nanuk, O esquimó (Nanook of the North, 1922), filmado, este, in loco, ainda no período da estética da arte muda. The savage innocents tem um registro documental do dia-a-dia do personagem: seu modo de habitar, sua necessidade de caçar para trazer o alimento no fim do dia. E que se constitui, na verdade, num autêntico discurso sobre o pensamento selvagem, a dialética da Natureza e a corrupção da civilização em uma das mais claras e transparentes expressões das concepções morais do autor, tanto de um ponto de vista emocional e dramático, quanto no exercício estrito da mise-en-scène cinematográfica. Ray não conseguiu, para este filme, recursos nos Estados Unidos. A produção é uma parceria entre a França, Itália e Reino Unido. Peter O'Toole tem uma ponta.

No regresso a Hollywood, sem trabalho, o produtor Samuel Bronston o convidou para dirigir um épico histórico tão ao feitio da época: O rei dos reis (King of kings, 1961), quase três horas de projeção. Apesar de a crítica, na época, ter fechado os olhos para o filme, e, hoje, revisto, tem alguns defensores entusiásticos. Trata-se da história de Jesus Cristo do nascimento até a ressurreição. Quem o interpreta é Jeffrey Hunter (o acompanhante de Etahn Edwards em Rastros de ódio/The seachers, de John Ford). Há close ups magníficos de seus olhos azuis. Novamente utilizando com sabedoria o Cinemascope, para alguns críticos que viram grandeza em King of kings, Ray amplia, aqui, os limites de seu mundo e depura as suas constantes expressivas.

Gosto muito de outra superprodução de Bronston dirigida por Ray: 55 dias em Pequim (55 days at Peking, 1963), canto de cisne de Nicholas Ray, com Charlton Heston, Ava Gardner, David Niven, Flora Robson, John Ireland, Harry Andrews, e o próprio Nicholas Ray no papel do embaixador. Estrangeiros são constrangidos e cercados durante a revolta dos Boxers, A única saída para eles é ser liderado por um valente e obstinado membro da Marinha norte-americana e pelo embaixador britânico. O filme, na época, foi malhadíssimo pela crítica.

Eis, portanto, a trajetória de um grande diretor de cinema. Nada existe hoje que se lhe possa comparar.