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21 fevereiro 2013

Do melodrama, este marginal

William Holden e Kim Novak em Férias de amor (Picnic, 1955), de Joshua Logan

Todos os grandes filmes são melodramáticos! Há um preconceito arraigado contra o melodrama por parte das mentes ditas intelectualizadas que precisa ser desmontado, desfeito. Hitchcock, em "Marnie", elevou o melodrama à condição de obra de arte. Há momentos de melodrama nas cenas entre o protagonista e Susan Alexander em "Cidadão Kane". Os importantes filmes de Vicente Minnelli, o estilista mais sofisticado do cinema, são melodramas, como Assim estava escrito (The bad and the beautiful, 1953), "Deus sabe quanto amei" ("Some came running", 1958), "Adeus às ilusões" ("The sandpiper", 1964), entre muitos outros. "Casablanca" e ..."E o vento levou" são momentos sublimes de grande melodrama. Infeliz do filme que não tenha inserido nele elementos melodramáticos! Talvez o cinema brasileiro não tenha se firmado como indústria por causa da virose cinemanovista, que tinha preconceito com o melodrama.
E as novelas atuais, se são melodramáticas, estão longe, entretanto, do dramalhão. Aliás, a partir de "Beto Rockfeller" (1969), a dramaturgia nacional televisiva se afastou do dramalhão, cujo modelo vinha do México. Ainda hoje este país conserva elementos do dramalhão como se pode ver nas novelas importadas e dubladas pela SBT. Um bom realizador sempre evita cair no dramalhão, levando o melodrama para o patético ou o trágico ou, simplesmente, deixando-o apenas no tom exato. Douglas Sirk fez excelentes melodramas: "Palavras ao vento" ("Written on the wind"), "Tudo que o céu permite", "Imitação da vida", etc. E se, em Hithcock, a quintessência melodramática se encontra em "Marnie", quando encontra o sublime, em quase todos os seus filmes sempre há uma, por assim dizer, história de amor com elementos melodramáticos. Há algo mais belo do que a poética de um Jacques Demy? Que, em Os guarda-chuvas do amor alcança a sublimidade, fugindo do dramalhão, para se situar na tragédia do amor e da existência?
Como definir o melodrama: Drama melado? Drama açucarado? E o que é o drama? Todo filme é um drama, considerando que drama é ação, cadeia de acontecimentos. Assim, até a comédia é um drama. Filmes de minha preferência, como "Férias de amor" ("Picnic", 1955), de Joshua Logan, com William Holden e Kim Novak, são melodramas. Adoro, portanto, um melodrama. Já o clichê se instaura quando uma certa mesmice se repete sem haver densidade poética, mas, apenas, repetição de ganchos narrativos. Até mesmo um filme inovador, que traumatizou toda uma geração, como Hiroshima, mon amour, é, também, um melodrama.
Se o cinema de Godard, entre outros, revolucionou a linguagem do cinema na década de 60, também, por um lado, foi contraproducente, pois implantou na mentalidade cinefílica e atávica a mania da desconstrução, que se espraia, como metástase, até mesmos nos estudos acadêmicos da área das humanidades. Hitchccok já dizia que com o melodrama é mais fácil se alcançar o sublime. Sublime que ele alcançou com o citado Marnie e que Chaplin conseguiu chegar em Luzes da cidade (City light, 1930), um trágico-sublime, poderia dizer.
E "Crepúsculo dos deuses" ("Sunset boulevard", 1950), de Billy Wilder, por acaso não contém uma carga melodramática respeitável? Usa-se, no entanto, a expressão melodrama no sentido pejorativo quando em relação ao cinema e ao teatro ou, mesmo, à literatura. As grandes narrativas do cinema são sempre de estrutura simples, linear ou binária ou, ainda, circular. Há, por outro lado, grandes filmes que fogem a este esquema: "Morangos silvestres" ("Smultronstallet", 1957), de Ingmar Bergman, "Oito e meio" ("Otto e mezzo", 1964), de Federico Fellini, entre muitas outros. O importante é o talento do realizador, sua capacidade de pensar cinematograficamente. Assim como faz Clint Eastwood em seus filmes.
O preconceito ao melodrama se acentua nos últimos decênios com a falência múltipla das aspirações idealistas e o estabelecimento de uma estética baseada no realismo tout court ou, mesmo, no naturalismo. O público, diante de uma realidade cada vez mais pragmática e consumista, não aceita mais o intimismo, os filmes que idealizavam e estilizavam a vida e os homens. Um filme é bom, para a maioria dos pseudo-cinéfilos que frequentam as salas alternativas, quando diz coisas nobres e belas, desconhecendo eles que um filme é bom quando sabe dizer e toda a questão se encontra no como e não na coisa em si. A natureza nobre de um tema condiciona o espectador a achar que determinada obra cinematográfica é boa. Ledo e ivo engano!
A nova geração ri de certas sequências com alguma carga melodramática. Assim, quando James Stewart e Kim Novak, frentes ao mar, que bate, furioso, nos rochedos, se beijam apaixonadamente com a ênfase sendo dada pela partitura de Bernard Herrmann, o público ri numa confissão completa de ignorância e ausência de sensibilidade. Em outros casos, como o princípio da autoridade está patente, caso de "Casablanca', a geração fim-de-mundo, esta da estética do vídeo-clip, finge gostar para não ficar "out".
É todo um processo de reeducação que se tem que colocar aliado às mudanças culturais, ao espírito da época, ou, se se quiser, ao "l'esprit du temps".

20 fevereiro 2013

O surrealismo no cinema


O cineasta, quando realiza um filme, traduz o real, e, no cinema, há, basicamente, quatro modos de representação da realidade: (1) o realismo e suas variadas vertentes (neo-realismo, realismo poético, realismo socialista...); (2) o idealismo (também conhecido como intimismo cujo apogeu se dá com a idade de ouro do cinema americano - anos 30 e 40); (3) o expressionismo (Alemanha nos anos 10 e 20); e (4) o surrealismo, que tem em Luis Buñuel a sua maior expressão. O grande público está mais acostumado com o realismo e o intimismo. Um filme surrealista sempre deixa nele uma impressão de confusão, pois habituado a ver tudo mastigado, com uma explicação racional e lógica para as artimanhas do enredo. Vamos ver aqui em rápidas pinceladas o que vem a ser o surrealismo no cinema.
O surrealismo parte de uma atitude revolucionária em filosofia, cujo verdadeiro objetivo não consistiria em interpretar o mundo, mas, sim, em transformá-lo. Na forma exposta por seu principal animador, André Breton, o surrealismo revela forte influência do materialismo dialético, dele retirando sua "lógica da totalidade". Assim como o sistema social constitui um todo e nenhuma de suas partes pode ser compreendida separadamente, a arte não deve ser o reflexo de uma parcela de nossa experiência mental (a parcela consciente), mas uma síntese de todos os aspectos de nossa existência, especialmente daqueles que são mais contraditórios.
O surrealismo tenciona apresentar a realidade interior e a realidade exterior como dois elementos em processo de unificação, e nisto está sua capacidade de passar do estático para o dinâmico, de um sistema de lógica a um modo de ação, o que é uma característica da dialética marxista. O cinema se revelou como o instrumento ideal para a conquista da supra-realidade, pois a câmera é capaz de fundir vida e sonho, o presente e o passado se unificam e deixam de ser contraditórios, as trucagens podem abolir as leis físicas, etc.
Quando Buñuel apresentou, em Paris, O Anjo Exterminador (1961), o exibidor lhe solicitou que escrevesse alguma coisa para colocar na porta da sala de exibição. Buñuel rabiscou o seguinte: "A única explicação racional e lógica que tem este filme é que ele não tem nenhuma". Noutra ocasião, ao ganhar o Leão de Ouro de Veneza por A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1966), lhe perguntaram o significado da caixinha de música que um japonês carrega quando no quarto com Catherine Deneuve. O cineasta respondeu que não sabia. Assim, o espectador não pode racionalizar dentro de determinada lógica nos filmes surrealistas. É claro que os significados existem, amplos, dissonantes e insólitos. E por que os convidados aristocráticos de O Anjo Exterminador, ainda que não haja nenhum obstáculo que lhes impeçam de sair, não conseguem evadir-se da mansão? Um recurso surreal para a análise da condição humana, um laboratório criado para se investigar pessoas numa situação-limite.
Excetuando-se alguns ensaios vanguardistas e sua fugidia presença em comédias de Buster Keaton, Jerry Lewis, Jim Carrey, em filmes de Carlos Saura (Mamãe Faz Cem Anos, etc), Jean Cocteau (O Sangue de um Poeta/Le sang d'un poete), entre poucos outros, o surrealismo cinematográfico está inteiramente contido em Un Chien Andalou (1928) e L'Age D'Or (1930), ambos do espanhol Luis Buñuel, com colaboração de Salvador Dali. A cena inicial do primeiro é famosíssima: o próprio Buñuel, após contemplar uma enorme lua prateada no céu, afia uma navalha e corta pelo meio o globo ocular de uma mulher que está sentada. No segundo, vemos um cão ser arremessado pelos ares, uma vaca deitada sobre a cama, um bispo e uma árvore em chamas sendo despejados por uma janela, situações de delírio erótico, baratas numa mão que toca pianola, etc.
A ambiguidade do termo surrealismo pode sugerir transcendência, predomínio da imaginação sobre a realidade. Seria pura imaginação de Séverine sua ida ao bordel todas as tardes? A rigor, isso não importa, A significação é mais ampla, conecta-se mais ao discurso do modo de tradução do real. O surrealismo pretendia um automatismo psíquico que expressasse o funcionamento real do pensamento. Você, caro leitor, às vezes não tem pensamentos indesejáveis? É o inconsciente. Assim, e isto é muito importante, o domínio do surrealismo é o que acontece na mente humana antes que o raciocínio possa exercer qualquer controle. O papa surreal André Breton dormia com um caderno em cima do criado mudo para anotar os seus sonhos, chamando, tal comportamento, de escrita automática.
O automatismo provocado pelo surrealismo implica numa transfiguração anárquica do mundo objetivo, cujo efeito imediato é o riso. Mas o humor, aqui, é uma nova ética destinada a sacudir o jugo da hipocrisia. E o sonho é encarado como uma revelação do espírito, sendo afirmada a sua riqueza sob o duplo ângulo da psicologia e da metafísica. Para chegar à consciência integral de si próprio, o homem tem de decifrar o mundo do sonho, pois deixá-lo na obscuridade representa uma mutilação do nosso ser.
Un Chien Andalou e L'Âge d'Or procuravam, pois, o homem integral, "buscando a recuperação total de nossa força psíquica por um meio que representa a vertiginosa descida para dentro de nós mesmos, a sistemática iluminação de zonas ocultas", como consta do manifesto de Breton. Neles têm um papel saliente o grotesco, o cruel, o absurdo, tudo com um sentido de revolta e solapamento.
Segundo Breton, qualquer divisão arbitrária da personalidade humana é uma preferência idealista. Se o propósito é o conhecimento da realidade, devemos incluir nela todos os aspectos de nossa experiência, mesmo os elementos da vida subconsciente. Essa é a pretensão do surrealismo, movimento artístico que abrangeu além da pintura, escultura e cinema, também a prosa, a poesia, e até a política e a filosofia.

17 fevereiro 2013

Charles Molina vai ao paraíso

Carnavalesco ad hoc, jornalista cultural (com passagens pela crítica cinematográfica), cineasta bissexto (Dagoberto vai ao paraíso), autor dos excelentes clipes do Na Cena exibidos em alguns eventos, chef de cuisine nas horas vagas (suas pastas servidas na Praia dos Livros foram notadas por grandes mestres da cozinha internacional), Raul Moreira é uma figura sui generis no cenário cultural baiano. O que o caracteriza é a sua visão anarquizante do mundo e das coisas, seu espírito irônico, sua ânsia e gula pela joie de vivre (alegria de viver). Nunca dorme de touca, o Raul Moreira, apesar da foto, mas esta se refere a um programa que realizou para a Tv Educativa da Bahia durante o Carnaval que passou, assumindo o personagem de Charles Molina em parceria com Daniel Lisboa. O desafio feito pela TvE foi plenamente realizado, e Molina saiu a percorrer os camarotes mais prestigiados da folia momesca a entrevistar personalidades da cena soteropolitana, nacional e, mesmo, internacional. Touca vermelha na cabeça, óculos bem escuros, um arremedo de paletó preto a cobrir a camisa de seda vermelha, e, para dar um touch especial, uma fita que não se sabe se é a do Senhor do Bonfim. O fato é que a sua performance como uma espécie de colunista social a andar pelos interiores dos camarotes não deixa de se constituir numa celebração anárquica e cômica sem perder, contudo, o approach de um serventuário das imagens televisivas. Considerando a mesmice das transmissões da folia pelas canais competentes e incompetentes, quem perdeu Charles Molina na TvE tem a chance, agora, de vê-lo em ação clicando, apenas, no link a seguir:

PS: Roteiro e direção: Daniel Lisboa. A montagem, Daiane Santos. A câmera ficou em mãos de Leandro Caldas, auxiliado, no som, por Leonardo Almeida. Produção de Karem Moraes.

14 fevereiro 2013

Dos clássicos da ficção-científica


Extensão cinematográfica do gênero literário do mesmo nome, o cinema de ficção-científica conta com antecedentes tão ilustres como Viagem à lua(Le Voyage dans la lune, de Georges Méliès, 1909), Aelita (1924), do russo Yakov Protozanov, Metrópolis (1926) e Uma mulher na lua (Die frau im mond, 1929), ambos de Fritz Lang, entre outros.
Metrópolis é, até então, a mais expressiva ficção-científica do cinema. Realizada ainda na estética da arte muda, tem sua ação localizada no século 21 numa gigantesca metrópole autoritariamente governada por um industrial milionário, que vive com o filho num paradisíaco jardim suspenso. Seus operários são relegados aos subterrâneos e exortados à resignação por uma bela integrante do Exército da Salvação. De repente, um inventor louco fabrica uma mulher artificial que é igual a ela, mas que, ao contrário desta, incita os trabalhadores a uma revolta cujas principais vítimas são os filhos dos operários.
No final, um operário reconcilia-se com o grande patrão, enquanto seu filho se casa com a moça resignada do Exército da Salvação. Apesar da beleza de suas imagens, e do imenso sentido de cinema de Lang, o filme tem uma conclusão bastante reacionária, reformista, pregando a reconciliação entre o capital e o trabalho, a demonstrar que uma revolução provocada pelos operários teria como principais vítimas eles próprios e seus descendentes. George Sadoul, historiador francês, classifica Metrópolis como um filme expressionista e medieval.
O auge do progresso científico nos últimos anos - a energia nuclear, os satélites artificiais, as viagens interplanetárias - oferece grande atualidade ao gênero, que começa a se popularizar cinematograficamente a partir do êxito de Destino à lua(Destination moon), em 1950, dirigido por Irving Pichel, e também, do mesmo ano,Da terra à lua (Rocketship MX), de Kurt Neumann, que fazem emergir uma série de filmes americanos interessantes O enigma de outro mundo (The thing, 1951), de Christian Nyby, O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still, 1951), de Robert Wise, Guerra dos mundos (War of the worlds, 1953), de Byron Haskin, baseado em H. G. Wells, O mundo em perigo (Them!, 1954), de Gordon Douglas, Planeta proibido (Forbidden, 1956), de Fred McLeod Wilcox, Vampiros de alma (Invasion of the bodysnatchers, 1956), de Don Siegel, entre outros.
O dia em que a Terra parou pode ser considerado como um dos mais representativos filmes do gênero. Pela primeira vez, o extraterrestre não vem à Terra como invasor e é apresentado como uma figura simpática, pois desce de seu disco voador para evitar uma catástrofe atômica. Mas o filme que, utilizando-se do gênero, propõe-se a uma análise da sociedade americana é Vampiros de almas, que mostra como numa pacata cidade dos Estados Unidos os seus habitantes são, pouco a pouco, substituídos por cópias perfeitas de si próprios (saídas, estas cópias, de enormes vagens de ervilhas). Não estaria Don Siegel, aqui neste filme, numa premonição da clonagem contemporânea?
As cópias perfeitas e iguais dos habitantes são destituídas, no entanto, de sentimentos, de almas e de consciências. Alphaville, de Jean-Luc Godard, da primeira metade dos anos 60, tem influência marcante dessa ficção-científica de 1956. Há, na verdade, em Vampiros de almas, uma grande metáfora de inspiração ideológica: as vagens seriam comunistas infiltrados na sociedade americana (paranóia típica da época em que o filme é realizado, em pleno macarthismo).
Na Inglaterra, também aparecem, neste período, interessantes filmes de ficção-científica, a exemplo de Terror que mata (Quatermass experiment, 1955), de Val Guest, A aldeia dos amaldiçoados (Village of the dammed, 1960), de Wolf Rilla. O mais importante, porém, dos filmes ingleses do gênero, é O mundo os condenou(The damned), do grande cineasta Joseph Losey, realizador de uma obra-prima,O criado (The servant, 1963), entre outros filmes significativos, mas que, atualmente, se encontra esquecido. The damned é sobre crianças contaminadas pela radioatividade que são enclausuradas pelas autoridades inglesas num reduto sigiloso.
A grande maioria, entretanto, dos filmes de ficção-científica, restrito que está, este panorama, aos clássicos, incluindo todos os japoneses, se limita a explorar velhas fórmulas do cinema de terror no esquema de mostrar a aparição de monstros criados pelas explosões nucleares. Diferentemente do que acontece na literatura, que possui excelentes escritores reconhecidos como mestres no gênero e que são capazes de o transcender.
Mas não se pode deixar de registrar algumas tentativas que tentam renovar os clichês do gênero, a exemplo do admirável Ikarie XB 1 (1963), do tcheco Jindrich Pollack, e Alphaville (1964), de Jean-Luc Godard, A décima vítima (La decima vittima, 1968), do italiano Elio Petri, Fahrenheit 451 (idem, 1966), de François Truffaut, Viagem fantástica (Fantastic Voyage, 1966), de Richard Fleischer. Nestes filmes, o cinema de ficção-científica deixa de ser o campo específico da série B para passar com todas as honras ao da A, revelando ambição na abordagem temática e que pretendem dar um testemunho moral e intelectual acerca da civilização do futuro.
Em Fahrenheit 451, por exemplo, filme baseado em novela de Ray Bradbury, num país indefinido, numa época indeterminada, uma decisão governamental proíbe a leitura e condena os livros sob a alegação de que eles perturbam a felicidade e provocam a inquietação. O corpo de bombeiros não mais apaga incêndios (as casas são à prova de fogo), mas é encarregado de queimar todas as obras literárias descobertas. No bosque, escondidos das autoridades, vivem os homens-livros. Cada qual memoriza uma obra-prima literária, a fim de preservá-la para o futuro.
Já em A décima vítima, de Elio Petri, a agressividade dos homens é saciada através de uma grande instituição internacional que promove uma grande caça ao homem, havendo, neste filme, uma nítida preocupação sobre o esmagamento do homem em meio a uma sociedade competitiva. A ação se passa no século XXI, este que já se está, mas A décima vítima é de 1965.
2001: Uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, é um filme que se poderia considerar divisor de águas. A partir dessaspace opera, a ficção-científica no cinema não seria mais a mesma, quer do ponto de vista da temática, quer do ponto de vista estilístico. A época da ficção-científica clássica, cujo apogeu se dá nos anos 50, toma uma nova direção com a utilização do gênero para propósitos de paráfrase, política e indagação filosófica.
Kubrick, aliás, após a sua ópera espacial, retorna à ficção-científica de idéias emA laranja mecânica (A clockwork orange, 1971), tomando como base a narrativa literária de Anthony Burguess. O ficcionista, aqui, colocando-se já no futuro, empreende uma análise cáustica do seu passado que é o nosso presente. Mas a infantilização temática toma conta do cinema americano a partir da segunda metade dos anos 70 com os filmes que se seguiram à explosão mercadológica deGuerra nas estrelas.

12 fevereiro 2013

São Paulo S/A

Primeiro longa metragem de Luis Sérgio Person, São Paulo S/A (1965) pode ser considerado um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Estreia auspiciosa de um realizador, principalmente em se tratando de seu primeiro filme - dois anos depois ratificaria o talento em O caso dos Irmãos Naves (que tem roteiro a quatro mãos com Jean-Claude Bernardet). São Paulo S/A gira em torno de pessoas que vivem na selva paulistana, com suas necessidade de fugir ao tédio, de se divertir, de escapar um pouco da vida agitada da cidade (e numa época, anos 60, que São Paulo era até tranquila se comparada aos dias de hoje). Walmor Chagas (que tem, aqui, uma interpretação inesquecível) vive um operário que se torna sócio de uma firma de autopeças. Apesar do êxito na empreitada, sempre se encontra angustiado e insatisfeito. Em busca de uma nova forma de vida, abandona a mulher (Eva Wilma), o filho e o emprego. Mas vem a perceber que não há muitas saídas na sociedade atual. Person expõe as relações capital-trabalho, a ambição de enriquecer e a desesperada vontade de viver. Um momento antológico: quando, dentro do carro, com a família do sócio Otelo Zeloni, Walmor canta, meio encabulado, um hino (da bandeira?). O argumento é do próprio Person, assim como o roteiro. A fotografia é de um artista: Ricardo Aranovich. No elenco, além dos citados, Ana Esmeralda, Darlene Glória, Nadir Fernandes. Carlão tinha este filme em alta conta e reverencia Person no final de Anjos do arrabalde. Assista o fillme, aqui mesmo, completo.

10 fevereiro 2013

Cinema e Carnaval: as afinidades eletivas

Quando o Carnaval chegar (1972), de Carlos Diegues, com Chico Buarque de Holanda, Maria Bethânia e Nara Leão. Filme completo. Assista aqui.

O cinema sempre teve relações muito afetivas com o Carnaval. Os primeiros registros de imagens em movimento datam de 1908, quando a folia era completamente diferente da atual. Mas foi preciso que acontecesse o cinema falado para que o filão viesse a tomar impulso, principalmente a partir dos anos 30, com a Cinédia, estúdio de Adhemar Gonzaga que ficava no Rio, em Jacarepaguá. O detonador do filão musical-carnavalesco pode ser considerado "A voz do Carnaval", de 1933, dirigido por Gonzaga e Humberto Mauro, com Carmem Miranda, que estréia, aqui, no cinema. Dois anos depois, em 1935, um trio, Wallace Downey, João de Barro e Alberto Ribeiro, realiza "Alô, alô Brasil", que fez imenso sucesso nas bilheterias. Gonzaga, produtor e cineasta, que tinha um faro excepcional para intuir dos filmes que poderiam ser exitosos, resolve filmar, em 1936, "Alô, alô Carnaval", que suplanta o anterior, porque, entre outras coisas, Carmem Miranda já é uma figura de proa no cenário artístico brasileiro. E mais: Francisco Alves, Lamartine Babo, Dircinha Baptista, além dos comediantes Oscarito e Jayme Costa.
Mas estes primeiros filmes musicais carnavalescos são toscos enquanto realização cinematográfica. Há um fio de história como pretexto para o aparecimento dos números, sempre filmados com câmera fixa e em planos-sequências, sem nenhum movimento e sem uma construção espacial através da montagem. Esta funciona apenas como edição, como elo de ligação dos números e dos sketchs primários. Não possuem, os filmes inaugurais do filão, nenhum valor cinematográfico, mas um valor de documento, de resgate da memória, a considerar que vários talentos da música do pretérito se apresentam nestes filmes. Em "Alô, alô, Carnaval", há um número histórico no qual se tem as duas irmãs, Carmem e Aurora, juntas a cantar, antes que a primeira explodisse na constelação hollywoodiana.
Para se compreender bem o fenômeno Carmem Miranda é preciso ler a sua biografia, talvez definitiva, escrita por Ruy Castro. Mas o público gosta dos filmes carnavalescos e muitos diretores se dedicam ao gênero. Já em 1938, dois filmes procuram misturar a chanchada aos números, a exemplo de "Tererê não resolve", de Lulu de Barros, e "Banana da terra", de Rui Costa, obras de grande mediocridade e que revelam um paroxismo, porque excelentes como documentação do Carnaval de antigamente, hoje destruído pelo som eletrônico, pela falta de harmonia, pela algazarra, pela industrialização de seu espaço.
O filme carnavalesco desta época, que tem um valor cinematográfico, segundo os pesquisadores do cinema brasileiro, porque seus negativos são destruídos, é "Favela dos meus amores" (1935), de Humberto Mauro, porque é uma obra que procura registrar o comportamento de favelados (naquela época a favela era romântica) em função do Carnaval. Escrito por Henrique Pongetti, é um dos filmes nacionais unanimemente aclamados pela crítica como obra de arte autêntica. É drama de costumes típico de cidade brasileira mais evoluída, que tenta "respirar o Brasil". É morro, barracão de zinco, crioulos, abismos físicos e sociais, e lirismo, muito lirismo.
Sílvio Caldas, camisa de malandro, violão no peito, canta sambas dolentes de Ary Barroso e apaixona-se por uma professorinha, Carmem Santos, a maior atriz brasileira da época, que, por sua vez, ama Rodolfo Mayer e os casacos de luxo, as jóias, o automóvel, o resplendor da cidade grã-fina. Armando Louzada, camisa listrada, lenço no pescoço, olha as luzes tremeluzentes da grande cidade, o Rio, lá em baixo. Mas "Favela dos meus amores", obra esquecida de Humberto Mauro, com o desaparecimento daqueles que a viram e a admiraram, fica apenas como uma referência na história de nosso cinema.
Para o desenvolvimento de uma estrutura audiovisual mais articulada, é preciso que se espere o fim da década de 40 e os anos 50, quando os filmes carnavalescos misturam a música e a comédia, um roteiro mais preciso e inventivo na configuração das "gags", das situações, como são exemplares, nesse sentido, "Carnaval no fogo" (1949) e "Aviso aos navegantes" (1950), ambos de Watson Macedo, diretor com aguçado sentido de espetáculo, que exerce muita influência entre os cineastas posteriores, a exemplo de Carlos Manga (o responsável por algumas das melhores comédias do cinema brasileiro em todos os tempos: "O homem do sputnick" (1958), e "De vento em popa" (1959). Macedo é um pioneiro, um homem de cinema "tout court", cuja valorização apenas se dá muitas décadas depois de seu auge.
Outro filme importante do filão é "Carnaval Atlântida" (1952), de outro diretor muito bem preparado para o ofício: José Carlos Burle. Neste filme, hoje um clássico do cinema nacional, ainda que na época visto como mera chanchada, desprezada pelos críticos, compareciam no elenco: Grande Otelo, Oscarito, José Lewgoy, como vilão, e Cyl Farney e Anselmo Duarte como galãs. O argumento gira em torno da seguinte situação: Xenofontes (o imenso Oscarito), um sisudo professor de mitologia grega, é contratado por um produtor como consultor da adaptação do clássico "Helena de Tróia" para o cinema. Mas dois empregados do estúdio sonham em transformar o épico grego numa comédia carnavalesca. Carlos Manga é o diretor dos números musicais. No rastro deste filme estão: "Carnaval em Caxias" (1953), "Carnaval em Lá Maior" (1954), "Carnaval em Marte" (1955), mas apenas pálidos reflexos de "Carnaval Atlântida".
Em 1959, o francês Marcel Camus, a tomar como base a peça de Vinicius De Morais "Orfeu Negro", que faz sucesso no Teatro Municipal, com cenografia de Oscar Niemeyer e música do maestro Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, realiza "Orfeu do Carnaval", bastante premiado em festivais internacionais, embora um "filme estrangeiro" que, simplesmente, aproveita a paisagem maravilhosa do Rio de Janeiro, o seu "décor" exuberante, como pano de fundo da tragédia anunciada. Em 1999, decorridos 40 anos, Carlos Diegues, em ritmo de escola de samba, constrói o seu "Orfeu", mas prejudicado por um elenco primário e pouco cinematográfico, com Tony Garrido (um Orfeu desgarrado) e Patrícia França.
Não se pode deixar de citar, em se falando de filmes carnavalescos, "Amor, carnaval e sonhos" (1971), com Leila Diniz, Arduíno Colasanti, Ana Maria Miranda, entre outros, homenagem ao Carnaval da Cidade Maravilhosa, ainda que um tanto "desconjuntado" a revelar defeitos na sua estrutura. Mas vale, assim como tantos citados, como documento precioso de uma época. Outro filme, "A lira do delírio", de Walter Lima Junior, obra cultuada, registra, entre outras coisas, o último baile carnavalesco do Teatro Municipal.

05 fevereiro 2013

Entre as vistas de cinéfilo do blogueiro

Entrevista feita comigo por Teeh Schwarz há alguns anos para o blog Cinema & Afins e depois republicada em Cine Splendor, do qual ela é editora e este blogueiro colaborador mensal.
"Em nossa entrevista, comentamos sobre o interesse pelo cinema, movimentos marcantes na história da sétima arte, novas interações e a indústria cinematográfica.
Iniciamos a conversa questionando os motivos de interesse pelo cinema, como se deu esse envolvimento real. André afirma que a paixão surgiu cedo, quando começou a frequentar as salas de cinema, com apenas 6 anos de idade. “Naquela época, década de 50, menino de calças curtas – era o tempo das calças curtas para garotos – via muito filmes americanos e chanchadas brasileiras, melodramas mexicanos, além, claro, de desenhos animados tipo ‘Tom & Jerry‘. Minha formação cinematográfica inicial se dá, portanto, com o cinema de gênero made in Hollywood, os musicais inesquecíveis da Metro, os thrillers, os filmes de guerra, os épicos históricos, e, principalmente, o western, que, na definição do grande crítico francês André Bazin, ‘é o cinema americano por excelência’. O cinema brasileiro, com raras e honrosas exceções, produzia quase que somente chanchadas. Com o passar do tempo, comecei a frequentar o Clube de Cinema da Bahia, programado por um grande ensaísta da arte cinematográfica, Walter da Silveira. Foi ele quem, no seu clube, mostrou aos baianos os filmes do expressionismo alemão, do neorrealismo italiano, do realismo poético francês, da escola soviética – Eisenstein, Pudovkhin… -, o cinema japonês etc. Tinha por volta de 15 anos quando percebi que o cinema, além de um entretenimento, um espetáculo, era também uma expressão de arte. Fiquei impressionado com ‘A Aventura’ (1960), de Michelangelo Antonioni, ‘La Dolce Vita’ (1960), de Federico Fellini, ‘Os Sete Samurais’ (1954), de Akira Kurosawa, ‘O Encouraçado Potemkin’ (1925), de Eisenstein, por exemplo. Era já um adolescente cinéfilo antes de penetrar na juventude. Vale ressaltar que me tornei um amante de cinema por meio autodidata. Via os filmes com interesse – os mais importantes mais de uma vez – e lia bibliografia especializada e críticas dos grandes suplementos, principalmente os do eixo Rio-São Paulo. Pois nasci no Rio, em 1950 (já estou me sentindo velho), mas desde tenra idade vim morar em Salvador, ainda que todo ano fosse passar, nas férias, um mês na Cidade Maravilhosa”, afirmou, complementando que seu envolvimento com o cinema se deu por uma afinidade eletiva, por uma relação de assombro e admiração, por um ato de amor à arte cinematográfica.
Sobre sua relação com a crítica de cinema, Setaro explica que esteve presente desde o início, contando que“mesmo quando criança, anotava num caderno todos os filmes que via, ficha técnica completa, cinema onde foi visto o filme, e fazia ligeiros comentários. Findo o hoje chamado segundo grau, fiz vestibular para a Faculdade de Direito, onde me formei em 1974, tornando-me um advogado sem futuro. Mas, na faculdade, fiquei responsável pela programação do seu cineclube e redigia comentários sobre os filmes exibidos que eram distribuídos na porta de entrada. Em 1974, comecei a publicar textos sobre cinema no jornal soteropolitano Tribuna da Bahia e, meses depois, fui convidado para escrever uma coluna diária que se alastrou por 20 anos até que, em 1994, passei a escrever a coluna apenas uma vez por semana. Meu envolvimento com o cinema se dá, assim, pela crítica. Mas, preguiçoso, achava que fazer um filme dava muito trabalho e, naquele tempo, não havia a facilidade do digital. Era tudo muito difícil. Mas, mesmo assim, para aprender alguma coisa, trabalhei como assistente de direção de alguns filmes baianos – como ‘Voo Interrompido’, 1968, de José Umberto, filme underground, do chamado Cinema Marginal -, fui ator em ‘O Cisne Também Morre’ (1982), de Tuna Espinheira e realizei um Super 8 cujo título, esdrúxulo, é ‘Pizzaria Eisenstein’ (1984). Frustrado com a experiência como advogado, fui fazer Comunicação, especificamente Jornalismo, e depois mestrado em Artes Visuais, cuja dissertação versou sobre cinema: ‘Narrativa e fábula no discurso cinematográfico’. Em 1979, fiz concurso para ser professor da área de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde ensino até hoje disciplinas da área como Oficina em Comunicação Audiovisual, Linguagem Cinematográfica , Estética do Cinema, publiquei ‘Panorama do Cinema Baiano’ em 1976, ‘Alexandre Robatto Filho, um pioneiro do cinema baiano’ em 1992, ambos editados pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e recentemente três livros que fazem parte de‘Escritos sobre Cinema’.
Mas o crítico é pontual ao dizer que de nada adianta dissertar e realizar cursos de cinema se a pessoa não se interessar plenamente. “Os cursos ajudam e podem ser proveitosos desde que o indivíduo se interesse pela coisa. O que se aplica, aliás, às demais atividades. É importante que se conheça os chamados filmes essenciais, os filmes-faróis da história do cinema, os filmes divisores de água, que contribuíram para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica!” comenta, citando alguns destes títulos, como “Ladrões de Bicicleta” (1948) de Vittorio De Sica – “para se ter uma idéia da importância do neorrealismo italiano” -,“Cidadão Kane” (1941) de Orson Welles, “Hiroshima, Mon Amour” (1959) de Alain Resnais,“Morangos Silvestres” (1957) de Ingmar Bergman, “Oito e Meio” (1963) de Federico Fellini, a trilogia de Michelangelo Antonioni composta por “A Aventura” (1960), “A Noite” (1961) e “O Eclipse” (1962),“Aurora” (1927) de Murnau, “La passion de Jeanne D’arc” (1928) de Carl Theodor Dreyer, “Acossado”(1960) e “O Desprezo” (1963), ambos de Jean-Luc Godard, entre muitos outros. “A citação se faz aqui apressada e de memória”, finaliza.
Seguindo com a conversa, perguntamos se desde o início Setaro já pretendia atuar profissionalmente na área, afinal, muitos acham isso pouco viável, excentricidade. Assim, ele nos explica que foi obra do acaso, e que se atualmente o cinema é estudado nas universidades de todo o mundo, antes, porém, a coisa era diferente. “O cinema era considerado apenas um entretenimento, um divertissement, um passatempo para os momentos de ócio. Com os estudos efetuados a partir da segunda metade do século passado, principalmente por sociólogos e comunicólogos, verificou-se que o cinema invadiu o imaginário coletivo das pessoas e, por isso, era preciso ser estudado. O cinema mudou hábitos, comportamentos, influenciou o way of life. Assim, quando comecei a escrever diariamente sobre a chamada sétima arte, a ganhar alguma coisa com isso, ainda nos anos 70, e principalmente numa velha província como Salvador, certo dia mostrei a uma tia carrancuda minha coluna impressa no jornal e ela me respondeu ‘Você não tem nada para fazer, não?’. Sim, o cinema não era levado a sério profissionalmente, considerado uma utopia, uma excentricidade como você bem frisa na pergunta. Ainda hoje, o profissional da área é marginalizado, inclusive no Brasil”.
Como cinéfilo, responsável por nossa coluna sobre Cinema Nacional, questionamos então o que acha da qualidade das obras brasileiras e sua “baixa valorização” no próprio território. Setaro explica que o nó górdio do cinema brasileiro está no tripé produção-distribuição-exibição. “O mercado exibidor brasileiro está completamente tomado pelas multinacionais – os complexos de cinemas Cinemark, Multiplex etc. -, e é muito difícil para um realizador iniciante encontrar guarida neste mercado. Se a produção de filmes nacionais passa dos 70 por ano, incentivada, principalmente pelas leis de incentivo, que gera a famigerada captação de recursos, a maioria deles, no entanto, não é exibida. O cineasta que consegue exibir seus filmes é aquele que faz parceria, na produção, com as multinacionais. O que adianta produzir um filme se ele não é exibido? A grande platéia do cinema brasileiro se encontra nos festivais que proliferam país afora. O cinema brasileiro está maduro do ponto de vista técnico, mas seus realizadores se subordinam muito ao mercado, porque precisam captar recursos e as empresas apenas se dispõem a doar recursos àqueles filmes que possuem viabilidade e exequiblidade comerciais. Os filmes brasileiros que são exibidos em boas salas são aqueles cujos produtores entram em parceria com as multinacionais, a exemplo de Luis Carlos Barreto, Daniel Filho, Walter Salles, Cacá Diegues etc. Mas não se pode negar que tecnicamente, na última década, o filme brasileiro tem padrão internacional, tecnicamente falando, devo ressaltar, pois não possui a criatividade do passado, principalmente dos anos 60, quando explodiram o Cinema Novo e o Cinema Marginal” informa, exemplificando com duas obras-primas (“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1964, de Glauber Rocha, e “O Bandido da Luz Vermelha”, 1968, de Rogério Sganzerla) e afirmando que os cineastas não se aventuram na busca do novo por impedimento mercadológico. “Na época do Cinema Novo, não havia captação, havia mais liberdade de criação”.
Aproveitando a discussão sobre cinema nacional, aproveitamos para relembrar que Walter da Silveira foi mencionado como responsável por apresentar os filmes internacionais que fogem ao estereótipo de “blockbusters” aos soteropolitanos – e inclusive ao entrevistado. Mas nossa curiosidade foi além, e nos interessamos no campo das produções nacionais, como e quando foram apreciadas (ou não) por Setaro.“Conheci o cinema brasileiro nos anos 50 e, nesta época, a maioria dos filmes nacionais era constituído de chanchadas populares, comédias com Oscarito, Zé Trindade, Grande Otelo, Ankito, Mazzarropi, entre outros… Lembro-me das filas imensas que se formavam nas portas das salas exibidoras. As chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares e, creio, foi a melhor época para o cinema brasileiro em termos de bilheteria. Mas os críticos, a maioria deles, as abominava. Foi preciso que o tempo passasse para que, décadas depois, elas viessem a ser revalorizadas, e atualmente, inclusive, são objeto até de dissertações e teses de mestrados e doutorados. Recordo-me de muitas delas, como ‘Marido de mulher Boa’ (1960), ‘Mulheres à Vista’ (1959), ‘O Massagista de Madame’ (1958), ‘O Batedor de Carteiras’(1959) e ‘Chico Fumaça’ (1956). As melhores, contudo, eram as dirigidas por Carlos Manga, satíricas e paródicas, a exemplo de ‘O Homem do Sputnick’ (1959), com Oscarito, ‘Nem Sansão nem Dalila’ (1954), também com Oscarito (um gênio!) ao lado de Grande Otelo, e ‘Matar ou Correr’ (1954), uma paródia do clássico western ‘Matar ou Morrer’ (1952) de Fred Zinnemann. Gosto particularmente de ‘De Vento em Popa’ (1957), também de Manga. Mas se a chanchada predominava, havia também os filmes da Vera Cruz, a exemplo ‘O Cangaceiro’ (1953), de Lima Barreto, que constituiu-se num grande êxito, assim como ‘Sinhá Moça’ (1953), de Tom Payne, sobre as tentativas abolicionistas no século retrasado numa cidade de Minas Gerais. E ainda podemos mencionar Nelson Pereira dos Santos, que a seguir o exemplo do neorrealismo italiano, plantava as sementes do Cinema Novo com seu pioneiro ‘Rio 40 Graus’ (1955), seguido de ‘Rio Zona Norte’ (1958). Com a decadência das chanchadas, surgiu o Cinema Novo, que acompanhei, praticamente, filme por filme, a destacar o impacto que me causou a primeira visão de ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ (1964), de Glauber Rocha, assim como ‘Vidas Secas’ (1963), de Nelson Pereira dos Santos“.
Ao citar que as “chanchadas se constituíram em grandes sucessos populares” e que a maioria dos críticos as abominava, nos interessamos em saber a opinião de André sobre essa diferença entre o profissional e o popular, ou melhor, por que algo que atinge o público com tanto sucesso acaba por causar essa repulsa nos que se propõem à falar sobre cinema. Afinal, isso tem certa continuidade quanto aos tempos atuais: as obras “meneghelianas” e os contínuos “Didi e não sei lá quem mais” atraem o espectador, mas quem realmente se considera um amante de cinema, as repudia. Parte da resposta está na qualidade, tanto das produções, como o enredo em si, mas além disso, há o preconceito. Setaro explica que a crítica, principalmente na sua fase áurea, caracterizava-se pelo elitismo, a eleger os filmes que possuíam temas nobres como as expressões máximas da arte do filme, ou então, aqueles que influíam na renovação da linguagem cinematográfica (Eisenstein, Orson Welles, Godard) e os movimentos de renovação (expressionismo alemão dos anos 10 e 20, a escola soviética da década de 20, a escola documentarista inglesa, o realismo poético francês, o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa). “Os filmes mais populares, à exceção de um Chaplin, ou popularescos, eram, de imediato, colocados de escanteio. Até mesmo uma boa parte do cinema made in Hollywood – e de alto nível, como Billy Wilder, Vincente Minnelli, Nicholas Ray, Robert Aldrich, George Cukor! – não era considerada, excetuando-se um John Ford, um William Wyler, entre poucos. Foi preciso que o revisionismo crítico praticado pela revista francesa ‘Cahiers du Cinema’ descobrisse o valor de certos cineastas americanos, dando-lhes o relevo e o status que mereciam. Mas se, naquela época, as chanchadas eram ridicularizadas, o passar do tempo se encarregou de pô-las em seu devido lugar. Sérgio Augusto, por exemplo, jornalista e notável crítico de cinema, publicou um livro, ‘Este mundo é um Pandeiro’, no qual faz uma exegese da importância da chanchada para o cinema brasileiro. E há, sim, preconceito em relação ao cinema mais popular. Andrea Ormond, do site Estranho Encontro, procura, por exemplo, através de uma investigação crítica achar atributos em muitos dos filmes que foram rotulados pejorativamente de ‘pornochanchadas’. A crítica, e aqui faço uma mea culpa porque também a exerço há mais de trinta anos, é na maioria dos casos arrogante e dona da verdade, tem complexo de superioridade e de autoridade. É necessária mais humildade e generosidade. Foi o que aprendi em seu exercício. Muitos filmes dos trapalhões são toscos e simplistas, porém há alguns mais elaborados! Porém, a crítica os joga na vala comum do esquecimento sem, ao menos, ter o cuidado de observar um por um. Se, por um lado, há este preconceito, como afirmei anteriormente, é o tempo o crítico supremo que irá julgar a permanência de determinadas obras cinematográficas”.
Falando na diferenciação das produções, aproveitamos para falar sobre o cinema como uma “expressão de arte”, e o encantamento por gênios como Kurosawa e Fellini, tentando compreender o que exatamente diferencia suas obras das dos demais profissionais. Mencionamos que muitas vezes foi dito que Kurosawa“sente seus filmes enquanto outros os vêem”, e nos permitimos encaixar alguém mais em tal posição: Truffaut, excepcionalmente por “Jules e Jim – Uma Mulher para Dois” (1962) e “Beijos Proibidos”(1968). “Existem, como diria Luigi Pirandello, três espécies de cineastas: o autor, o estilista, e o artesão. O cineasta-autor possui um universo ficcional próprio e um estilo particular, pessoal, com uma, por assim dizer, marca registrada. O veículo cinematográfico é um veículo para suas idéias e pensamentos, e nos filmes de um cineasta-autor, há constantes temáticas e constantes estilísticas, isto é, um tema que perpassa todos os filmes e uma maneira muito própria de manipular a linguagem cinematográfica. Ingmar Bergman, por exemplo, cineasta-autor, utiliza-se do cinema como um conduto para o seu pensamento e a sua visão de mundo. São autores realizadores como Federico Fellini, François Truffaut, Charles Chaplin, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Alain Resnais – para mim, o maior cineasta vivo -, Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu, Howard Haws, Hitchcock, Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Glauber Rocha, entre muitos e muitos outros! Já o cineasta-estilista não tem um universo ficcional próprio, mas possui um estilo particular de se expressar estilisticamente, a exemplo de Steven Spielberg – o que tem a ver ‘Parque dos Dinossauros’ com ‘A lista de Schindler’ (ambos de 1993)? -, John Frankenheimer, James Cameron, Sidney Lumet etc. O cineasta-artesão não tem nem universo ficcional nem estilo, mas sabe contar uma história com fluência narrativa, embora não se possa, a investigar a filmografia de um cineasta-artesão, verificar nela, constantes temáticas nem estilísticas, pois não as possui. Em relação à sua inclusão, gosto muito de François Truffaut, principalmente ‘Jules e Jim’, que considero o seu melhor filme. Em relação a‘Beijos Proibidos’, considero-o simplesmente poético e encantador. De Truffaut gosto praticamente de toda a sua obra – há filmes menores, evidentemente – principalmente os citados e ‘As duas Inglesas e o Amor’(1971), ‘Os Incompreendidos’ (1959) e ‘A noite Americana’ (1973), et caterva. Tenho particular admiração por Jean-Luc Godard e Jacques Demy (‘Os Guarda-Chuvas do Amor’ (1964), ‘Peau d’âne’ (1970), ‘Duas Garotas Românticas’ (1967))“.
Após falarmos sobre as diferenças, resolvemos então considerar as semelhanças de dois movimentos definitivos, neorrealismo italiano e o Cinema Novo, traçando um paralelo ao Cinema Marginal. “O neorrealismo italiano se caracterizou pelo despojamento estilístico e pela preocupação em retratar o drama do homem comum e as contradições da sociedade em que vivia. O brado ‘descer às ruas’ de Cesare Zavattini, um dos principais teóricos e roteiristas neorrealistas, significava que os realizadores deviam abandonar os estúdios fechados para que fossem filmar in loco, isto é, nas ruas, abandonando os artifícios dos estúdios e a apreender a realidade em sua essência vital. A problemática social é um dos pontos importantes e a maneira pela qual os realizadores a colocam cinematograficamente, inclusive com a utilização de atores não-profissionais. Ao contrário do herói tradicional do cinema americano, o homem apresentado nos filmes neorrealistas é um não-herói, a diferir, também, do anti-herói da nouvelle vague, cujo maior exemplo talvez esteja no personagem de Michel Poiccard interpretado por Jean-Paul Belmondo em ‘Acossado’. Já o Cinema Novo também tinha os mesmos pressupostos básicos do neorrealismo: abordagem do drama do homem brasileiro, as contradições de uma sociedade injusta e desigual, filmagens in loco etc. Vários dos filmes do Cinema Novo são exemplos desses pressupostos, entre eles ‘Os fuzis’(1963), de Ruy Guerra. Já o Cinema Marginal não tem tais pressupostos, é um cinema anárquico, quase autodestrutivo, que experimenta muito a linguagem cinematográfica. Um cinema que proclama o caos e pergunta pela saída de uma situação aparentemente fechada… ‘O anjo Nasceu’ (1970), de Júlio Bressane,‘Meteorango Kid, o herói Integalático’ (1969), de André Luiz Oliveira, entre outros, exemplificam bem isso”.
Aproveitando a citação à James Cameron como um “cineasta-estilista” anteriormente, aproveitamos para saber o que André acha das inovações que têm surgido no mercado através do mesmo, como pioneiro com“AVATAR” (2009), pois sua produção está fazendo escola. Após o glorioso lançamento e seu incrivel sucesso de bilheteria, a quantidade de filmes lançados na tecnologia 3D e IMAX é imensurável. Poderíamos incluir nas conquistas de Cameron a resposta para levar o público de volta para o cinema? “Sim, acredito que o cinema do futuro esteja em filmes como ‘Avatar’ ou assemelhados, dotados de terceira dimensão, muitos efeitos especiais, espetaculosidade. A indústria cinematográfica está perdendo terreno para os novos suportes, o DVD, a possibilidade de se baixar qualquer filme na internet, a pirataria desenfreada etc., e falo do ponto de vista da estratégia industrial! Mas é evidente que os filmes que não se enquadram no modelo narrativo hollywoodiano vão continuar a existir. ‘Avatar’, por exemplo, sobre ser um grande espetáculo, de impacto visual deslumbrante, é uma obra que reflete sobre o mal-estar da civilização atual e, nas suas entrelinhas, questiona o império americano em sua ânsia expansionista. Cameron é um diretor de rara competência artesanal e sabe usar a tecnologia em proveito de um espetáculo que não cai no lugar comum.‘Aliens, O Resgate’ (1986) e ‘True Lies’ (1994) são exemplares nesse sentido. No último, há uma paródia do próprio espetáculo!.
Mencionamos, então, as mudanças necessárias para o cinema se adaptar às mudanças do formato tridimensional, e André explica que quando, nos anos 40, quando a televisão foi implantada nos Estados Unidos, metade – sim, metade – dos cinemas fechou suas portas, provocando, com isso, um pânico na indústria de Hollywood. “Os estúdios então começaram a procurar novas fórmulas de conquistar o público, lançando, nos anos 50, o Cinemascope (a tela larga com som estereofônico), o Cinerama, e até mesmo o cinema com cheiro, que não deu certo… O Cinemascope, por exemplo, já tinha sido inventado desde os anos 30 pelo francês Henri Chrétien, mas os estúdios não prestaram atenção até a emergência da crise com o advento da televisão. O primeiro filme em CinemaScope (escrevia-se assim naquela época) foi ‘O Manto Sagrado’ (1953), de Henry Coster, com Richard Burton, Jean Simmons e Victor Mature. Com ele, as salas exibidoras precisaram sofrer reformas para a necessária adaptação e a inclusão, nos projetores, de uma lente anamórfica. Como mencionado, com o aparecimento dos novos suportes o cinema, apesar dos grandes êxitos dos blockbusters, entrou em crise nos anos 2000 e foi preciso a recorrência a novos processos de atração. O 3D procura, nesse ponto, conquistar um público arredio que precisa de novas emoções dentro da sala exibidora, e a tecnologia de ponta hoje existe e a isso permite. Mas o que é importante assinalar é que a 3D ainda não se transformou num elemento estético incorporado à linguagem cinematográfica. Ou, melhor dizendo, o cinema como linguagem não sofreu nenhuma transformação com o advento do 3D. Fui rever ‘Titanic’ (1997) neste processo e não gostei, prefiro vê-lo em 2D. O 3D é um penduricalho para atrair público, mas pode vir a se tornar, com o passar do tempo, um elemento estético. Na transição do cinema mudo para o sonoro, o som atrapalhava, mas, aos poucos, houve uma incorporação harmônica entre a imagem e o som. Verdade dolorosa, talvez, mas se o público aumentou com a 3D não se vai ter mais o imenso número de espectadores do cinema do pretérito. E isso não é saudosismo, mas constatação de fatos”, constata.
Encerrando, como usual, perguntamos a André como ele define cinema, o que o cinema significa para ele e em sua vida. Conciso, ele responde explicando que “‘se o filme é uma arte, o cinema é uma indústria’, escreveu o célebre historiador francês Georges Sadoul – nos seus nove volumes de ‘Histoire General du Cinema’. A indústria, porém, condicionou o filme a ser um espetáculo dentro de um modelo narrativo no qual se estabelecem as leis de progressão dramática in crescendo. Mas o cinema é uma expressão da arte, embora a maioria dos filmes que circula nas salas seja apenas meros entretenimentos anestésicos. O cinema é uma arte narrativa que se utiliza do espaço como a pintura e o espaço como a música. Francis Ford Coppola, perguntado, disse que o cinema é a maneira pela qual o realizador usa a lente e Hitchcock, indagado, respondeu ‘O cinema? Ora, uma porção de lugares a ocupar!’. Em 2005, perguntei a Costa Gavras, que estava participando de um seminário em Salvador, e ele me afirmou que o cinema sempre tem que ser um espetáculo“.

03 fevereiro 2013

"Ed elli avea del cul fatto trombetta" (Dante)


Bom, este artigo, que já saiu neste blog há alguns anos, resolvo republicá-lo, é de autoria do saudoso escritor Moacyr Scliar registrado em domingo, dia 9 de março de 2008, no Mais! da Folha de S.Paulo. Não resisto em transcrevê-lo. Em homenagem ao talento de Scliar. Aqui vai:

"A notícia, na Folha do último dia 28, era pequena, mas chamativa: uma funcionária, demitida por "exceder-se em flatulência" no local de trabalho, venceu demanda judicial interposta na 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Os magistrados decidiram pela readmissão da empregada e pelo pagamento de R$ 10 mil por danos morais.

Atrás desse curioso episódio está longa história, que se baseia numa função fisiológica absolutamente normal, mas nem por isso menos perturbadora. Flatulência é a emissão de gases intestinais, uma coisa que poderia passar despercebida, como é a expiração.

Mas essa, em geral, não é ruidosa -a não ser quando a pessoa ronca, o que não raro é fonte de conflito entre marido e mulher- e é sem odor, a não ser quando há mau hálito, o que sempre resulta em constrangimento. Já no flato, existe uma complexa mistura de gases, alguns dos quais, os compostos sulfurosos, principalmente, produzem aquele característico odor, que há milênios ofende narinas.

Ah, sim, e o ruído. A última linha de "O Inferno", de Dante, parte da "Divina Comédia" [editora 34], diz "Ed elli avea del cul fatto trombetta"/ "E ele usou o traseiro como trombeta", o que pode parecer um exagero, mas traduz a indignação das pessoas.

Não só Dante se entregou ao exercício dessa forma de escatologia literária. Na clássica comédia "As Nuvens" [ed. 34], de Aristófanes [comediógrafo grego do século 5º a.C. que se celebrizou pela irreverência], há um diálogo no qual Sócrates sustenta que, quando as nuvens colidem, se produz um forte ruído, ou seja, o trovão.Para explicar o fenômeno, compara-as com o homem que, tendo comido muito, produz gases. E pergunta: "Se o ventre humano, que é relativamente pequeno, faz tanto barulho, como não o farão as nuvens, que são muito maiores?"

Nas "Mil e uma Noites" [ed. Globo], lemos a história de um homem que, tendo soltado gases durante a cerimônia de seu próprio casamento, não vê outra solução senão fugir para o exterior. Em "Gargântua e Pantagruel" [ed. Itatiaia], Rabelais assim descreve a ressurreição de Epistémon: "De repente Epistémon começou a respirar, depois abriu os olhos, depois bocejou, depois espirrou, depois soltou um grande peido. Ao que disse Panurge: "Agora está certamente curado'".

Em "Contos de Cantuária" [T.A. Queiroz], de Geoffrey Chaucer, autor inglês do século 14, o flato é usado como agressão. O conquistador Absolom está tentando roubar um beijo da trêfega Alison, mulher do carpinteiro Nicholas. Na escura noite, sem quase nada enxergar, aproxima-se da janela da casa e, sussurrando, pede que a mulher diga onde está. Mas é Nicholas que responde -soltando, pela janela, um agressivo flato.Em "Molloy" [ed. Globo], de Samuel Backett, há uma certa condescendência para com os gases: "Trezentos e quinze peidos em 19 horas, uma média de 16 peidos por hora. Não é demais. Quatro peidos a cada 15 minutos. É nada". A mesma tolerância mostrou o imperador romano Claudius, que assinou lei permitindo a emissão de gases em banquetes, mas fê-lo movido por supostas razões de saúde: acreditava-se à época que reter os gases era prejudicial para o organismo.

De maneira geral, soltar um flato era falta grave. Edward de Vere, duque de Oxford, teve o azar de fazê-lo (coisa que Freud explicaria) no exato momento em que prestava juramento de lealdade à depois cinematográfica rainha Elizabeth 1ª.

Tão envergonhado ficou que se impôs um exílio de sete anos. Quando de seu retorno à corte, Elizabeth teria dito, para consolá-lo: "Meu senhor, para dizer a verdade, já esqueci aquele flato".Aliás, em termos da associação nobreza-flatulência, o duque não ficaria sozinho. Segundo nos conta Jô Soares, em "O Xangô de Baker Street" [Cia. das Letras], dom Pedro 2º soltava gases em pleno palácio, o que, aliás, no julgamento mencionado, foi usado como argumento pelo juiz Ricardo Artur Costa e Trigueiros.

A pessoa pode reter os gases, mas será que consegue emiti-los voluntariamente?Em "A Terra", de Émile Zola, há um personagem que consegue fazê-lo e ganha apostas com sua habilidade. Houve um contemporâneo do escritor que conseguia fazê-lo e se tornou famoso por isso: Joseph Pujol (1857-1945), autodenominado Le Pétomane (O Peidômano).

O marselhês Pujol tinha um extraordinário controle de seus músculos abdominais e do esfíncter anal, o que lhe permitia façanhas assombrosas. Exibindo-se no célebre Moulin Rouge, para audiências que incluíam Edward, príncipe de Gales, e Sigmund Freud, conseguia tocar flauta por meio de um tubo de borracha inserido em seu ânus, emitindo também os sons do hino nacional e de melodias por ele compostas.

A história de Pujol inspirou pelo menos dois filmes -o britânico "Le Petomane", de 1979, com Leonard Rossiter, e o italiano "Il Petomane", de 1983, com Ugo Tognazzi-, o musical "The Fartiste" -premiado como melhor do ano em 2006, no festival internacional Fringe, em Nova York-, vários artigos e livros, incluindo o best-seller "Quem Comeu meu Queijo?", de Jim Dawson, uma abrangente história da flatulência.Uma história que, como se constata, mostra aspectos curiosos e surpreendentes da relação humana com o corpo, particularmente no que se refere ao componente gasoso deste."